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Cronicas-->Algumas Razões -- 02/02/2003 - 22:44 (Adriana Engelbart) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Algumas Razões
Adriana Engelbart

A vida irrompe. Alguma fórmula mágica permite que os seres pareçam no universo. Um fato corriqueiro: nascemos, crescemos... e aprendemos. Nos modificamos de acordo com as convenções que nos são transmitidas - e, por que não, impostas? A realidade se mostra crua, básica, envenenada por pseudo-imagens. Seguimos a onda. Muitos que tentaram furá-la se perderam na tempestade mas, quem sabe, se acharam no fundo do oceano, onde as colorações têm mais exatidão, onde a vida é mais precisa.
Ao nascer do sol, a vida brilha com intensidade feroz! Resplandece, é aurora é vastidão...como se fosse possível caminhar por uma vereda sem fim, cercada de muito verde, iluminada pela luz de um olhar meticuloso, denso. Acordamos, nos dedicamos às primeiras palavras próprias do amanhecer. Bom dia! Café com leite? O pão está quentinho...e seguimos, certos do melhor a ser feito, à nossa batalha diária. Não só a batalha da labuta, mas a da convivência.
Quem mora em apartamento se depara com as demais portas do corredor. Cuidadosamente trancadas, elegantemente imponentes. Lá estão elas, as portas, identificadas com números. Números estes a que pertencemos logo no primeiro momento do dia. Dezenas, centenas... algarismos empilhados - e aqui estamos. E eu nem sei o seu nome. Cá está você, ajeitando o terno ou o vestido, dando a última olhadinha no espelho do elevador antes de encontrar-se com o asfalto. Você está aceitável? Os vizinhos o cumprimentam. Sorrisos opacos, passos airosos e onipotentes. O elevador chega ao térreo... e lá vão vocês.
O sujeito privilegiado, que tem sua casinha com quintal e uma mangueira linda chamada Carlotinha, tem a oportunidade de olhar o quintal alheio. Todos se movimentam. O burburinho da manhã nada tem de incómodo. Todos permanecem serenos, arejados, conscientes. O papel deve ser cumprido com rigor. Bem... finalmente deixamos nossos lares.
Para se informar sobre a cotação da Bolsa de Valores você pára no jornaleiro com uma certa naturalidade. O sujeito tem um bigode fenomenal, que lhe tapa os lábios superiores. A camisa dele já não fecha completamente - por causa da barriga que cresceu na mesma proporção da ociosidade diária por ficar trancafiado em uma banca de jornais. Já estafado por ter que acordar às 4 da matina, ele não se mostra tão simpático como um bom jornaleiro deveria ser. Que homem asqueroso e suado! Indiferente, você se recolhe. Passa a olhar ao seu redor e percebe que a banca está rodeada de curiosos...transeuntes que ali param por um instante, a fim de se informarem um bocadinho mais.
Mas você não. Você vai escolher seu jornal com o esmero atribuído aos homens de bem. Vai logo à editoria de Economia. Dá uma "passada de olhos" nas notícias mais importantes...aquelas que interferem no seu emprego, no seu status, na sua noção do que é realmente fundamental. E lê, apenas. Que bom. A taxa de desemprego "estacionou", a balança comercial está positiva. Após uma leitura tosca de tantos assuntos importantíssimos, alguma coisa lhe chama a atenção. É o caderno de automóveis. Quando você vai poder adquirir - esta é a melhor palavra - o último modelo da linha Tal, com aerodinàmica ultramoderna, design magnífico? Bem, como o País vive um momento de prosperidade (levando-se em conta que você ouve esta falácia há uns 20 anos), não deverá demorar até você conseguir realizar seu sonho de consumo! Aguente aí. Ponha "um sorriso nos lábios", como disse certa vez o Gonzaguinha.
O restante do noticiário é irrelevante. Só tragédias. Artigos só servem para encher linguiça e é coisa de quem não tem com o que se preocupar. Esses sociólogos de araque, esses escritores bestiais... a quem interessam os problemas sociais? Isso não é problema seu e de nenhum cidadão considerado são - na sua noção de sanidade, é claro. Muitos desses homens que escrevem as poucas baboseiras nos jornais já foram inimigos declarados do Estado. Por que confiar neles? O mundo está ali, de braços abertos para você, cara!! Lembre-se: você é um cidadão de bem.
Dali, você embarca no metró. Todos aglutinados, encarcerados nos modernos vagões de trem subterràneo. A composição solavanca. Um cai por cima do outro...uma tragédia. Finalmente, próximo a sua estação, consegue se sentar. Você não percebe a dificuldade de uma moça ao tentar segurar seu filho, um garotinho portador de Síndrome de Down, naquele grau bem desconfortável: O menino esperneia, balbucia. Tudo acontece bem ao seu lado e você está inerte. Você se basta e isso é essencial.
Lá está o prédio em que você trabalha. Que belo edifício. Uma referência em Arquitetura. Como você fica satisfeito em pertencer a uma empresa que ganhou o certificado Iso 900000000... e lá vai varada! Novamente o elevador. Você faz questão de cumprimentar todos os funcionários. Não quer quebrar o protocolo. Chega até sua sala e percebe que a papelada se acumulou depois do feriado. Sua mesa parece setor de repartição pública. Pega o telefone, lê os e-mails, vai produzindo. Sua colaboração diária com o sucesso está apenas começando.
A hora passa e um singelo aviso do estómago anuncia que a hora da bóia está próxima. Mas você não se permite. Acha melhor encomendar um sanduíche bate-entope. Você não pode perder tempo, que é dinheiro, que é cargo, que é tudo o que você mais almeja na vida. A funcionária mais elegante do setor, a Mariazinha, faceira se debruça sobre sua mesa e faz o convite: "Armínio, vamos almoçar juntos"? Sua resposta é seca. Um NÃO, redondo e sonoro, ela ouve. Para você, a negação é fácil e simples. Admirável a sua capacidade de concentração. Você simplesmente não se permite aos devaneios do mundo e, discretamente, se enche com o sanduba de carne, queijo e bacon. É só.
Recluso, fechadão... sua imagem parece petrificada. É como se fosse, de repente, um vidro translúcido. Não é possível enxergá-lo completamente. E é frio, segregador, prepotente. Só deixa passar por você mesmo o que lhe é interessante. Mas as imagens vistas através do vidro são disformes, descontínuas, assim como é a sua vida. E basta uma pequena pedra, atirada no seu corpo, para você simplesmente se despedaçar, passar ao estado físico de caco, um resto nem sempre reaproveitável.
Seu colega entra na sala. Colega, sim, pois você já não admite a possibilidade de ter amigos. O seu olhar consegue apenas captar as intenções maléficas e o mundo, na sua visão apocalíptica, é uma bola hipócrita, desagregada. E você aplaude a eficiência do planeta, a Terceira Onda, a geração "Y", que dominará as massas por meio de monitores - e você não é massa; é um ser digno de atenção especial. Você não perde tempo, não se ilude com as emoções que, por vezes, atingem o seu peito. Como quem mata um mosquito ou uma mosca varejeira, trata de assassinar seu sentimento. O colega citado no início do parágrafo vem questionar-lhe sobre uma conduta no trabalho. Ali está ele! O inimigo declarado, intrigueiro, alcoviteiro desgraçado! Ele vislumbra o seu posto, isso sim. Está trabalhando ardilosamente, jogando um xadrez mal intencionado. Irritado, você esbraveja e enxota imediatamente o bicho do seu território. Ufa...menos um.
O dia segue na mesmice a que você se acostumou. Seu terno já não está tão impecável, você sua horrores. Porém, mantém a linha; a linha reta que você mesmo traçou e por onde passa a sua vida. Não há uma curva, um planalto, um acidente geográfico. Você é coerente. O crepúsculo se mostra intenso lá fora quando, de repente, o chefe lhe chama. Pensativo, você acha estranho. Àquela altura do campeonato? O que ele quereria? Após um aperto de mão flácido, você se senta à mesa, circunspecto. O pulso está a mil, sua face denota uma certa palidez. Seus olhos miram os movimentos do chefe, que lhe parecem óbvios demais. Ele anuncia: "Bem, Sr. Armínio, é bem sabido que as contas da nossa companhia não vão muito bem. Por isso, o presidente resolveu enxugar os quadros..." Antes dele terminar, um pànico toma conta do seu corpo. Seus nervos respondem precisamente ao estado de desespero. Sente tremedeira, sua frio, afrouxa a gravata.
Sim, meu amigo. Eis o seu fim. O mundo está inteirinho sobre seus ombros, já fatigados. Olha lá na frente; nada a vislumbrar. Sai da sala diante dos olhares fingidos, das posturas retilíneas... onde está você, senão agora fora do seu próprio ego? Você já busca uma outra noção da vida e desencadeia em si mesmo um processo de autolamentação. Onde estão seus sonhos, as quimeras? Foram afanados, de um segundo para outro! Que mil raios partam!
Parte para a rua. Os carros se movimentam de uma maneira menos frenética. Os passos das pessoas podem ser melhor observados. Você não sabe muito bem para onde está caminhando. Poderá ir até a praia - coisa que não faz há uns bons anos. Sentará em um boteco e beberá goles regozijantes da melhor cachaça? Ou vagará sem rumo, agora ciente da sua condição de número, mero número. Senta no meio-fio e observa como a vida é vasta. Como as pessoas circulam, riem, choram, xingam na correria do rush. Outros compram pipoca em frente ao cinema...meninos jogam capoeira ao som de muitas palmas. Moleques vendem doces quando deveriam estar na escola. Senhoras aventuram-se entre os carros comercializando paninhos de prato. Um alarde o fim do dia! Um pesadelo o início da noite.
Você há muito não percebia as particularidades, os detalhes. Não se indignava, não cometia atos impulsivos. Era um ser resignado, um propagador da falta de ação. Agora, quando o mundo parece apunhalar-lhe pelas costas, as impurezas aparecem bem claras na sua mente. Sente-se,então, um parasita... um instrumento do nada. De repente, uma menininha surge na sua frente. Olha bem fundo nos seus olhos, que, involuntariamente, derramam a lágrima tão necessária. Ela pega sua mão. Sente a carne. E, num rompante, lhe dá um beijo. Você voltou, amigo. Bem vindo à vida!

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