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Cronicas-->À Procura do Dom de Viver -- 02/02/2003 - 22:48 (Adriana Engelbart) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Procura do Dom de Viver
Adriana Engelbart

E lá vão eles, os homens, levantar mortos! Como se à natureza ou, indo mais além, ao inimaginável, não coubesse a tarefa de tirar e pór seres na Terra, de conceder o ar vital, o sopro primeiro e, num momento qualquer, tirá-los, sem interferências ou abusos. Daqui a uns anos, nós, os imortais, olharemos para trás e veremos séculos infinitos. As lembranças já não caberão em nossas memórias, tal a quantidade e variedade de detalhes agregados às nossas existências. Seremos seres de um presente que, um dia, não será passado - porque o passado será distante demais para nos preocuparmos com ele.
Sexta-feira, 9 de fevereiro de 2001. A reportagem chama a atenção na noite recém-chegada. Homens estão sendo congelados após a morte. A intenção é fazer com que voltem a viver, permitir que aquele corpo (a matéria), seja cientificamente ressuscitado. Os cadáveres, mediante pagamento antecipado de uma bela e razoável quantia (em dólar, please), são postos em grandes caixões, estes adaptados para resistirem a temperaturas baixíssimas. A forma pela qual se devolverá a vida ao corpo, dizem, está sendo profundamente estudada. Mas há de surgir qualquer hora dessas e o cientista, de certo, será premiado com o Nobel! Vamos lá.
Aos olhos megalomaníacos, uma proeza. É a imortalidade certa. Convictos da nossa estada eterna no mundo, exercitaremos as nossas vontades com mais vigor. Que mansidão, amigos. O temido fim já não é fim. É, no mínimo, um recessozinho. Só o tempo de ficar uns anos congelado (umas férias na Antártida). Pensando mais alto, quem sabe modificar sutilmente o genoma a fim de se conseguir uma criatura mais adaptada, aperfeiçoada. Substituir as características originais, "montar" seres acima de qualquer suspeita, sacerdotes impecáveis. A idéia do clone já está até ultrapassada, pois sairá mais caro fazer cópias do que simplesmente usar material antigo. A nova técnica permite o reaproveitamento, a reciclagem de um corpo. Sai mais barato e não polui o meio ambiente. Também resolve outro problema crucial: o que fazer com os mortos? Os cemitérios já estão bastante lotados, não é mesmo?
Outra coisa. Já não mais nos preocuparemos com o castigo divino. Que coisa ultrapassada, demodê! A mente aguçada venceu a espiritualidade, a caridade. Agiremos, daqui em diante, aleatoriamente. Esqueçam as crenças, as razões, transcendências. Quem fizer um ato de caridade, o fará por puro sentimento humanista e não como forma de acertar as contas lá no purgatório - que a essa altura nem tem mais razão de ser sugerido, quanto mais de existir realmente. Anos e anos submissos, servis, escravos das anunciações de penitências. O homem, agora, é soberano.
Como disse um certo sujeito que habitou o planeta - com precisão, um país chamado Bre...Bra...Brasil - há uns séculos, esqueçam tudo o que foi dito anteriormente. O que foi escrito naquele tempo anacrónico precisa ser deletado, banido das mentes superiores que se formam hoje. Qualquer mecanismo coercitivo também não tem mais sentido. Somos uma sociedade singular. Não há mais déspotas, fascistas, primeiros-ministros, presidentes... uma anarquia autêntica. Somos senhores de nós mesmos e ponto final!
A atividade sexual perdeu o sentido também. Mães e pais já não ficam sem seus filhos e vice-versa. Contamos agora com um modelo atualíssimo de TFP s. Mantemos contato estreito com nossos familiares, porém, evitamos nos aproximar de outros grupos. É por pura precaução, já que não mais dispomos daquela velha Justiça de Deus, nem tampouco da criada pelos nossos antepassados. Em ambiente familiar, ficamos menos suscetíveis a matanças... ou, ao menos, a tentativas de homicídios.
Na natureza, agora, nada se perde, tudo se cria e nada mais se transforma. Nos tornamos seres estáticos no momento em que nascemos. As nossas profundas mudanças, as fases da vida, o primeiro cadarço amarrado, o beijo roubado, as descobertas, os nossos sentimentos humanistas... parece tudo um grande bloco de passado. O pensamento é linear, os nossos atos, previsíveis.
Considerações Finais
Fomos reduzidos a isso, meus caros. A elementos toscos, seres quase inanimados, amorfos. Pertencemos à forma mais lamentável do que um dia se chamou humano. Criaturas automatizadas, desprovidas da vontade latente e natural de sentir prazer. Assistimos, boquiabertos, à passagem dos outros seres pelo planeta: o nascimento, a vida, a morte. Como disse o Padre António Vieira, no Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, fazendo alusão aos nossos estados físicos básicos: "O homem em qualquer estado que esteja, é certo que foi pó e há de tornar a ser pó. Foi pó e há de tornar a ser pó? Logo é pó. Porque tudo o que vive nesta vida não é o que é, é o que foi e o que há de ser".
Ora, ora. Sim, se antes tínhamos a certeza do fim e sabíamos do pó que seríamos e, mesmo assim, mantivemo-nos alardeados, soberbos, ardilosas serpentes viciadas durante nossa existência, que esperar da humanidade quando ela não mais temer o julgamento final? Quando puder escapar, moldar-se ao mundo, negar a falência da sua própria carne... quem será o mediador dos ànimos, quem se posicionará no centro em meio à grande confusão que será a vida sem mais nenhum temor?
Há que se pensar com grande atenção. Há que se rever papéis, posturas, valores. Ressuscitar não a carne, mas a consciência de que o ego humano não deve se sobrepor à natureza, ao encadeamento das coisas. E precisamos urgentemente parar de morrer para a vida. Tratemo-nos com amor e sem astúcia. Apenas com o amor gratuito, elevado... certos do pó que fomos, seremos um dia e já somos.

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