MINHA PARTE (*)
Deus, deste voz ao vento (na canção)
E sem que o peça dás-me o dom de ouvi-la...
Pássaros, um a um, todos em fila,
Cantam alegremente em minha mão!
Sinto o frescor das flores que baloiçam
Na flexível haste onde o grilo trila...
Pressinto o cheiro doce dessa argila
Que de molde serviu na criação!
Das libélulas ouço o balançar
Das asas transparentes e serenas
Beijando a água ou pairando no ar...
Falo com as borboletas tão pequenas,
Que andam em bandos e a grande, solitária
Princesa, apenas de tudo rainha.
Nessa felicidade imaginária,
Já vou cismando nessa vida minha...
Puseste no meu peito um coração
Capaz de ouvir a “estrela” do poeta,
Com os anjos falar numa oração,
Rir de tudo, brincar, sem ser pateta...
.................................................
Sentir o cintilar das estrelas,
o brilho inusitado da lua cheia,
o pio plangente da coruja no alto das torres e ciprestes,
o cheiro da terra calcinada,
o vento uivando por entre frestas e vales e depressões.
O canto sensual das pererecas buscando macho,
o trilo inesgotável dos grilos,
o pio soturno dos animais desconhecidos,
a visão da alma do outro mundo,
o medo das assombrações.
A desova das tartarugas,
o vôo cego dos morcegos,
o vôo rasante das andorinhas e dos gaviões,
a algazarra barulhenta dos pássaros-pretos e das maritacas,
o latido angustiante do cão preso e com fome.
A inconstância e o estupro das galinhas,
o ruído da relva crescendo,
o som das formigas cortando as folhas,
o zumbido da mamangaba,
a cantilena estúpida dos cocares.
O silvo moleque dos macacos,
a cantiga estridente das seriemas,
o relincho das éguas no cio,
o canto mavioso da corruíra,
o golfinho treinado para matar.
Falar com as plantas, ouvi-las e entendê-las,
o arrulhar da juriti nas palhadas de arroz,
a menina que não vem nem telefonou,
o primeiro e o último beijos e os do meio também,
essa excitação que não passa.
O corno do vizinho,
as infindáveis reuniões de condomínio,
o sorriso maroto das crianças,
o jabuti na forquilha da árvore,
as bundas, cartilagens e entranhas à mostras na televisão e na internet.
A chuva de prata dos lambarizinhos na beira dos rios,
o chefe que subiu no tijolo,
o bicho e a frieira nos pés,
esse fecho que não abre,
o sutiã arrebentado.
A menstruação fora de hora,
o cheiro de terra molhada,
o vento frio no rosto,
a chuva fina que não passa,
o relâmpago e os trovões que encantam e apavoram.
Uma dor-de-barriga insuportável,
vontade incontida de ir ao banheiro,
a pele macia do rosto,
o olhar carinhoso de quem ama,
as “mulheres“ da beira da estrada.
Os travestis imitando a vida,
o sol traspassando a folhagem verde das árvores,
o amassar do capim pelas vacas pastando,
o cheiro forte dos estrumes,
a visão angelical do Fernandinho (ponta de praia)...
O frescor da brisa da manhã,
o por do sol no Araguaia,
a relva macia,
o orvalho que rutila as folhagens,
as pobres mulheres feias.
O enterro de anão,
isso nunca me aconteceu antes,
o suor do amor e a seiva da vida...
a ferida que não sara,
este problema eu não sei.
A gripe asiática, americana, européia, africana,
o assaltante cara-de-capeta,
o desodorante vencido antes do tempo,
a mão gelada de emoção,
as pessoas sem escrúpulos.
A espera de qualquer coisa boa,
o político safado e desonesto,
o imposto de renda,
o orgasmo consentido sem remorso,
o aluguel vencido, a conta vencida, o salário vencido...
A guerra inútil, mas muito inútil mesmo,
as mães chorando,
a mãe de todas as bombas,
as crianças morrendo de medo e de fome sem razão,
os homens imprecando contra Deus e contra tudo...
A terra devastada e o povo humilhado,
A memória da humanidade perdida,
A blasfêmia sem-vergonha,
esse cara não tem mãe,
Boomba-filha-da-puta!
.................................................
Meu Deus, como este mundo é biodiverso!
Quanta alegria e tristeza contida
Num simples e desajeitado verso!
Como é complexa essa nossa vi... vida!
Dos seres que vi todos têm seu par
E trocam tudo, até carícias plenas.
Só eu, Senhor, só eu vou devagar...
Fico só a vagar, vagar apenas!
Adelay Bonolo
abril/2003
(*)Inspirado no cancioneiro português,
nos versos de Bilac, em Chico Buarque e,
sobretudo e principalmente, no majestoso cerrado goiano!
|