Usina de Letras
Usina de Letras
97 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62296 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22541)

Discursos (3239)

Ensaios - (10392)

Erótico (13574)

Frases (50681)

Humor (20041)

Infantil (5461)

Infanto Juvenil (4783)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140824)

Redação (3310)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6212)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Fugindo do sangue frio -- 30/07/2003 - 17:58 (Paulo Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Você percebe o naufrágio iminente, quando os ratos começam a abandonar o navio.

Benedita lavadeira, Bene. Uma lapa de nega que fazia medo, só de canela tinha um metro e meio. Tinha o cabelo crespo e grisalho, estilo Black Power, uma juba que fazia gosto, parecia um amontoado de esponjas de aço. Tinha o rosto tomado de rugas que nem a pele escura conseguia esconder. A idade era mistério. Lavava as roupas da minha casa quando eu morava no interior, nunca mais eu vou me esquecer de Bene.
Tinha uma filha. Puta ate os ossos. Conhecida como Maria de Bene. Como muita gente no interior era alguma coisa de alguém, Maria era a filha de Bene, Maria de Bene.
Os filhos de Maria de Bene, valem um parágrafo. Eu não lembro o nome da filha mais velha, mas lembro que ela era deficiente mental, vivia sentada no chão encostada na parede num canto qualquer da casa. Com as pernas cruzadas, balançava o tronco e cantava olhando para a mãe: “Mãe da gota serena. Putinha safada.”
Mosquito era o mais novo, tinha uns 10 anos, magro como um mosquito, não sei se de fome ou de desgosto. Assim como a irmã não conhecia o pai, provavelmente nem eram filhos do mesmo homem. Por vezes acompanhava a irmã na cantoria de lamento, sofria com surras de Maria de Bene quando isso acontecia, ela não batia na filha doente, dizem que não era pena do estado da menina, mas era o olhar. O olhar da menina enquanto cantava as desgraças da mãe possuía alguma coisa difícil de explicar, ate a velha Bene não conseguia encara-la enquanto ela cantava: “Mãe da gota serena. Putinha safada.”
Bene lavava as roupas de toda a cidade e sustentava a miséria daquela família atípica, não tão atípica na miséria daquele sertão nordestino.
Por que eu nunca vou esquecer de Bene? Simples. Bene foi a primeira pessoa que eu vi morta.
Eu tinha mais ou menos 8 anos quando ouvi a noticia. “Bene morreu.” Falaram que morreu dormindo, teve na morte o sossego que a vida lhe negou. Eu lembrava dela apenas como a lavadeira, nunca dera importância aquela negona que vinha uma vez na semana e lavava as roupas enquanto cantava coisas antigas.
Levantei-me de onde estava, e com o ímpeto de uma criança, tomei rumo para a casa de Bene. O que me fez ir? Nunca vou saber. Apenas tinha vontade de ver o enterro daquela lavadeira. Com 8 anos eu queria ver Bene morta.
Na frente da minúscula casa, parei. Poucas pessoas. Entrei relutante, nunca tinha ido a um enterro. A filha de Maria de Bene estava sentada no chão, encostada parede balançando o tronco em silencio, com o olhar perdido em algum ponto da pequena sala. Mosquito ao lado da mãe junto ao caixão, não parecia triste. Maria de Bene, ao lado do corpo da mãe, impávida, herdeira das lavagens de roupas sujas. Bene coberta de flores.
Fiquei por alguns minutos junto ao corpo, solidário a dor, estranha, daquela estranha família que não derramava uma lagrima. Foi quando eles apareceram.
De repente.
Um por um foram saltando sobre o rosto de Bene.
Depois vários.
Muitos.
Enormes.
Os piolhos.
Saltavam da cabeleira de Bene e caiam sobre as flores e sobre o seu rosto, Maria, com um lenço, tentava livrar a mãe daquele constrangimento póstumo.
Nunca esquecerei como eram grandes os piolhos de Bene. Abandonavam sua morada de anos e buscavam sangue em algum corpo vivo. O segredo que Bene guardou sob o seu cabelo, se revelou com a morte. Não havia mas razão para esconder os piolhos, não havia mais sangue para alimenta-los.
Enquanto os piolhos saltavam, a menina gritava, sentada no chão encostada na parede e balançando o tronco.


Paulo J. T. Lima
03.04.2003


Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui