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Contos-->O Naufrágio de Julián Fernández - Tradução -- 04/08/2003 - 09:45 (Gildo Henrique) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Naufrágio de Julián Fernandez

Para Antonio Roberto Fernandes

Quando, já nas últimas semanas do estágio de espanhol no Centro de Estudos de Pessoal (Rio-97), ouvi um aluno fazer a apresentação deste conto, não pude deixar de me lembrar de A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, e de Rosinha, Minha Canoa, de José Mauro de Vasconcelos. Esse naufrágio é de um envolvimento febril, um quadro que resgata, com todas as cores, a alma dos humildes, dos puros, num cenário que nos lembra, cheiro e paisagem, as vilas da
minha infância: Farol e Furado.

A última parte do conto é de uma tristeza infinita ou é exagero de minha parte. Não tenho muita certeza porque quem viveu às margens da Lagoa Feia não sabe muito bem o que diz.

A tradução é relativamente literal. Claro que algumas expressões - muito poucas - foram obrigatoriamente comparadas ao falar da nossa gente. Traduzir textos não é traduzir sentimentos e estes, via de regra, tem maior ou menor intensidade, de acordo com a cultura de cada povo.

Logo na primeira frase do texto,"La ciudad habia sido tibia y dulce, y a veces todavia podia serlo" já há a idéia de redundância e quase nos leva a desistir e reescrever tudo livremente. É quando nos damos conta de que temos que respeitar a idéia do autor. Aí começa o dilema. Trechos como "pa champán no va a dar la cosa”, que traduzimos "pra champanha a grana não dá" ou "cayendo en él con un chapoteo estrepitoso y retozón" ( se jogando nele com um barulho típico de algazarra de crianças) são exemplos dessa dificuldade.

Porque sei da sua poesia, lugar onde esse barquinho jamais naufragaria, é que traduzi esse conto. Porque corria o risco de você não conhecê-lo.

Gildo Henrique
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O Naufrágio de Julián Fernández

a John Steinbeck


A cidade outrora era aconchegante e agradável e, às vezes, voltava a ser. Talvez por isso é que Julián Fernández ficou por ali, com seus baldes, seus pincéis e sua escada que pagou com as primeiras economias. Com o passar do tempo, Fernández foi um a mais na cidade, ainda que raramente aparecesse na avenida principal, cujo nome lembrava seu famoso fundador. Mas, passando ainda mais o tempo, Fernández realizou seu sonho de ter um barco. Ele mesmo o construiu. Era uma embarcação muito bonita, com cabina e tudo. Mas ele a fez muito no alto, longe da praia e no meio de um pinheiral. Os moradores do lugarejo perceberam que alguma coisa não ia bem quando viram Fernández trabalhando e se perguntavam como iria fazer o pintor para levar o veleirinho ao mar. Mas Fernández, alheio a tudo, mantinha o barquinho apoiado sobre vários cavaletes e era muito feliz retocando-o e polindo suas partes metálicas. Foi ganhando fama de louco por haver trabalhado tanto numa embarcação que evidentemente nunca navegaria, mas ele sabia o que estava fazendo. Sempre sonhou ter seu próprio barquinho; só que o mar não estava em seus planos. Cada vez que ia ao cais não podia evitar a vertigem que lhe provocava as embarcações e seus tripulantes, suspensos na água sobre um abismo de muitos metros, centenas, milhares de metros. O mar, essa massa gelatinosa, crespa e amarga, esse poço enorme e cheio de água, que chegava até à África e à China, não apresentava razão suficiente para satisfazer à necessidade que ele tinha de sentir-se bem seguro no mundo. Custou-lhe muito encontrar seu canto e não estava disposto a arriscar-se por essa imensidão em que todos os caminhos eram iguais e cada lugar idêntico aos outros. Quase nunca descia à praia e, a bem da verdade, tinha verdadeiro pavor de água. Mas gostava de desfrutar do mar como se fosse uma grande tela, lá longe, pendurada no horizonte; poder mirá-lo da cobertura de seu barco, por entre os troncos e galhos de pinheiros. Sabia que alguns pensavam que estava maluco, mas não se preocupava. Na cidade conhecia vários, muito mais dementes que ele - ele que fazia seu trabalho com toda a eficiência, não se permitindo mais que, de vez em quando, tomar umas garrafas de cerveja ou uns copos de vinho tinto e barato, envelhecido nas imediações do povoado. Não havia nada de estranho, acreditava ele, que um homem fizesse o que quisesse com sua embarcação, especialmente se ele mesmo a tinha feito...

Garza e seus amigos gostava de zombar dele. Uma vez, fingindo falar sério, Garza perguntou-lhe:

- Não vai batizar o veleirinho, Fernández? Todos os barcos tem nome e são batizados como gente...

- Você acha que eu tenho que batizá-lo?

- Claro, onde já se viu um barco sem nome? Não é verdade, rapazes?

Fernández tinha dúvidas. Não via porque não poderia continuar chamando "barco" como até agora. Não lembrava que seu padrastro lhe houvesse chamado alguma vez de outra maneira que não de "guri", mesmo que não fosse um bom exemplo, porque o homem nunca gostou dele. Mas um dos amigos mais chegados a Fernández, naquela triste época de sua vida, tinha sido o cachorro herdado de um mendigo, que também não havia tido outro nome além de"cachorro" e tampouco precisava dele para ser o melhor animal do mundo. Mas ao mesmo tempo gostava da idéia de uma cerimônia. Via-se quebrando uma garrafa de champanha na proa do esbelto veleirinho, com o caloroso aplauso dos rapazes. Eles tanto insistiram que Fernández foi aceitando a idéia. Um dia cruzou com a turma, que voltava da pescaria.

- Olá, Fernández! - disseram os rapazes.

- Bom dia. - disse ele - Como vai, Garza?

- Bem, e você? - respondeu ele.

A turma seguiu à parte, como se estivesse procurando algo urgente para fazer. Fernández ficou olhando para eles, pensativo.

- Espera, Garza! - quase teve que gritar, antes que estivessem longe demais. A turma parou e o líder voltou para se encontrar com o pintor.

- Lembra do que me disse do veleirinho? Tem razão, vamos ter que batizá-lo.

- Até que enfim, Fernández. Nós levamos o vinho.

- Quero dizer... Pode-se usar vinho? Porque para champanha a grana não dá.

A turma provocou um momento de confusão discutindo se o vinho poderia substituir legalmente o champanha. Vendo a tristeza que abatia Fernández, Garza acabou com o assunto:

- O vinho serve perfeitamente - disse. Digam-me quando na vida tomaram champanha, cambada de vagabundos?

Todos concordaram em que pelo menos desde a boca-livre da inauguração do novo porto, quando veio o ministro e a festa terminou em bacanal, champanha só viram de longe, talvez na mesa de algum turista. Por um momento lembraram-se daquele ato cívico-militar com epílogo de gravatas perdidas, uniformes salpicados de bebida e maionese, boinas torcidas e mulheres que perdiam seus saltos, suas peles, suas máscaras cosméticas e com elas sua trabalhosa dignidade.

- Tem que haver uma garrafa de vinho pro batismo e aguardente de vinho pra festejar. Nós levamos o vinho e Fernández a aguardente, tá? - disse Garza.

A decisão salomônica agradou a todos, mesmo àqueles que já estavam pensando no desperdício do litro de vinho que se derramaria sobre a proa do barquinho. A cerimônia foi agendada para a manhã seguinte, mas as coisas não saíram conforme o previsto. Os responsáveis por guardar a garrafa de vinho, desonestamente conseguida, não puderam resistir à tentação. Nem sequer o medo da represália pôde impedir que durante a noite fossem trasladando-a a seus respectivos estômagos, gole a gole, a princípio só a título de experimentá-la. Obviamente não compareceram ao encontro, e quando os outros foram chamá-los, encontraram-nos envergonhados e com certa dor de cabeça. Mas Garza notou que, disfarçando a bebedeira, reinava um ar satisfeito que nada poderia modificar.

O que foi feito, feito estava; e ele não se prolongou nas reprimendas, embora tivesse ficado preocupado.

- Não podemos deixar Fernández sem uma festa. Deve estar nos esperando; temos que dizer-lhe algo.

Tratando de procurar uma boa desculpa, o bando tomou o caminho do morro, em direção ao rancho de Fernández. Ao chegar, Garza já tinha elaborado um argumento. Depois dos elogios, lançou-se ao ataque.

- Sabe, Fernández, eu e os rapazes pensamos que não se pode batizar o veleirinho sem levá-lo ao mar... E você o que acha?

A defesa que ensaiou o pintor foi insuficiente diante da força desse argumento. Nenhum dos rapazes mostrou-se disposto a permitir tamanha exceção ao protocolo de marinha. E os olhares já se dirigiam nervosos às duas garrafas de aguardente que Fernández tinha preparado para a cerimônia, uma delas com limão. O pintor não era bobo e disse que não havia nenhum motivo para não festejar conforme previsto, repartindo a bebida com seus convidados.

Mesmo que não pudesse haver batismo sem mar, os rapazes estavam ali, a bebida também estava, e "barco" era o nome que mais convinha ao seu veleiro. Dadas as circunstâncias, não foi preciso confessar que durante toda a noite não conseguiu pensar em outro que pudesse substituí-lo. De modo que todos ficaram satisfeitos e nada impediu que Fernández continuasse chamando "barco" ao seu barco, nem que todos soubessem exatamente quando se referia ao seu e não a outro
qualquer.

Entretanto a jogada de Garza teve um efeito inesperado. Fernández começou a sentir remorsos. Ele se sentia feliz, mas despertou dentro de si a suspeita de que seu barco podia não sê-lo. Tratou de descobrir quais eram os indícios capazes de evidenciar os sentimentos de uma embarcação. Para isso, vencendo seus temores, passeou vários dias pelo cais. Viu barcos de vários tipos, em melhor e pior estado; lentos pesqueiros e velozes iates esportivos; guarda-costas supérfluos e, inclusive, dois baleeiros russos que deixariam duradoura lembrança de sua presença; observou o velho rebocador-guia e seu piloto - não se recordava de que algum outro tivesse posto as mãos sobre a roda desse timão - sem chegar a nenhuma conclusão. Depois passou a examinar detalhadamente qualquer sinal que pudesse ajudá-lo a decifrar os sentimentos de sua própria embarcação. Pareceu-lhe muito mais bela que as outras, com sua pintura imaculadamente branca, seus brilhos e seu mastro, nesse dia engalanada com bandeirolas de festa. Mas não tinha certeza. As outras singravam livre, animalescamente. Mesmo amarradas, agitavam-se com o efeito da maré, enquanto a sua estava sempre estática sobre seus gigantescos suportes. Um dia foi até a areia e viu como um pesqueiro reformado deslizava pelas guias até o mar, se jogando nele com um barulho típico de algazarra de crianças. Seu barco seria capaz de entrar na água com a mesma alegria? Se isso acontecesse, sentiria como uma traição pessoal, como uma mostra de ingrata infidelidade de parte de quem, somente com sua ajuda, havia adquirido forma e vida a partir das tábuas nas quais estava repartido. Ao mesmo tempo, a dúvida fez-lhe suspeitar de que o seu era um barco falso, incapaz de sentir e fazer como os outros de sua espécie. Não sabia a verdade, e preferia que assim fosse. Mas, por precaução, acrescentou umas capas de carro para tomar mais confortável o repouso do veleirinho sobre os blocos, que às vezes pareciam machucar suas costelas. Ainda assim, e cada vez com mais freqüência, havia momentos em que Fernández disfarçava uma olhada de remorso, ao transpor a borda para chegar à cabina, onde dormia suas sestas embalado pelo cheiro de madeira verde.

Assim ia vivendo Fernández quando os rapazes, totalmente alheios às suas preocupações, decidiram pregar-lhe uma peça, aproveitando que estava longe do seu rancho, repintando um bar com novo dono. Chateavam pra valer mas não tinham a intenção de causar danos, nem Garza, seu médico explicou anos depois. Desceram até a praia e, entre as pedras descobertas pela baixa-mar, recolheram uma boa bolsa de mexilhões. Na loja de ferragens, depois de um bom papo, conseguiram que lhes presenteassem uma latinha de cola. Com todo o material subiram até o rancho de Fernández, embora no caminho houvesse várias ameaças de deserção diante de semelhante travessia sob sol a pino. Fixaram os mexilhões na quilha e no casco do barco, e se esconderam aguardando o regresso do pintor.

Ficaram horas deitados sobre folhas de pinheiros, cansados de esperar. Não contavam com que demorasse tanto e, por fim, irritados e mais aborrecidos que
antes, decidiram voltar. Fernández apareceu já de noite. Sem reparar no aspecto de seu barco - e nem podia no meio de completa escuridão - deixou suas coisas embaixo da calha do telhado e foi dormir.

Foi na manhã seguinte, cedinho, que descobriu a falcatrua. Tinha o costume de abrir sua janela ao se levantar para alcançar com a vista toda a paisagem, o morro em declive, a praia, o mar. Nesse primeiro gesto matinal, apesar de seu olhar ter passado sobre o barco, não viu mais do que aquilo que esperava ver. Depois de um minguado café da manhã, saiu e se agachou para acariciar a cabeça de um dos gatos cuja propriedade repartia com os raros vizinhos. Foi nessa posição que as manchas negras sobre o corpo de seu veleiro lhe golpearam os olhos. Chegou perto, incredulamente passou a mão pelas aderências, procurou impossíveis explicações. A verdadeira e a mais óbvia nem sequer apareceu na sua
cabeça. Para sua desgraça, a única pessoa que poderia tranqüilizá-lo, o médico, estava ainda longe, num frio país do outro lado do terrível oceano, médico exilado entre gente de língua estranha. Para Fernández os outros não contavam, pelo menos numa questão tão importante e misteriosa como a que se lhe apresentava. Ainda fora de si, procurou uma espátula e raspou as aderências rapidamente. Depois foi para o bar reformado terminar seu trabalho; e nunca pintou tão mal em sua vida, nem com tanta dificuldade.

Nos dias que se seguiram dedicou-se a calafetar cuidadosamente o barquinho e aplicou-lhe umas boas demãos de tinta branca. O veleiro voltou a reluzir, tão impecável como antes. Mais calmo - mas decidido a perguntar ao médico mesmo que passasse muito tempo - Fernández desceu mais uma vez ao passeio público, para uns retoques numa inverossímil paisagem lacustre que o fizeram pintar no movimentado local. Mas o inocente atentado, fruto da falta do que fazer, havia despertado suas especulações sobre o destino de seu veleirinho. Os rapazes ficaram decepcionados porque não puderam saber o resultado de sua brincadeira. Tendo comprovado que Fernández havia raspado e voltado a pintar o barco, decidiram repetir a experiência, acrescentando algumas algas para dar um toque maior de realismo. Fizeram o trabalho durante a noite, com todo sigilo, e esconderam-se por perto, abastecidos com forte vinho, para esperar o despertar de Fernández e suas reações.

Desta vez também ficaram decepcionados. O pintor, contrastando com seu costume de abrir a janela para contemplar o dia, apareceu de surpresa por baixo da calha do rancho. Aí, quando pensaram que havia percebido a camuflagem que outra vez adornava a quilha e o casco do veleiro, e esperavam a ocasião para saltar do esconderijo e rir dele, Fernández entrou de novo no rancho, fechando a porta com uma batida que fez estremecer as folhas das acácias mais próximas. Cansados por terem pela segunda vez frustrados seus projetos de diversão, os rapazes foram embora. Por isso não viram como um pouco mais tarde Fernández saía apressadamente, carregando uma enorme bolsa marinheira.

Nessa tarde correu a notícia de que Fernández tinha vendido o rancho, com barco e tudo, na primeira oferta que fizeram. A informação seguinte indicava que Fernández havia tomado o ônibus das oito. Os rapazes, por pura curiosidade foram até “La Onda”. Quiseram morrer quando souberam pelo pessoal da agência que Fernández, quando comprou sua passagem, parecia bêbado ou louco e que falava incoerências sobre seu barco.

Nesse preciso instante, enquanto se afastava a oitenta por hora, e já a duzentos quilômetros dali, encolhido na última cadeira, Fernández continuava delirando. Não podia afastar de si a terrível e persistente idéia de que o barco ia ao mar enquanto ele dormia.





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Elbio Rodríguez Barilari, escritor, compositor e jornalista uruguaio. Nascido em Montevidéo em 1953. Reside nos Estados Unidos desde 1997. Morou no Brasil, no Chile e na Alemanha, e ocupou o cargo de Delegado Cultural do Uruguai no Mercosul. Publicou quatro livros de contos e uma novela. Também participou da novela coletiva ¿La Muerte Hace Buena Letra? junto com Mario Benedetti e outros destacados escritores do seu país. Escreve desde 1977 para o jornal El País (Uruguai) e atualmente é editor-chefe do semanário La Raza de Chicago, a mais antiga das publicações periódicas em espanhol nos EUA, e diretor da revistal mensal Arena Cultural.










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