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Humor-->O Aparelho -- 28/01/2003 - 15:59 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Foi em uma das consultas, após quatro anos tendo que usar o maldito aparelho móvel, que ele resolveu que não agüentava mais. Decidiu pressionar o dentista.
- Não agüento mais, doutor. Não dá.
- Sérgio, o processo é assim mesmo, tem que ter paciência. Ainda falta pelo menos um ano pra usar o móvel, senão, como eu já te disse... seus dentes vão voltar a ser como eram, separados.
- Mas... como eu vou explicar... as garotas, doutor... as garotas! Já estou com trinta e um... sair com elas usando aparelho, sabe... não dá, francamente!
- Tem que ser paciente.
Agora ele entendia. O paciente tem que ter, acima de tudo, paciência. Belo trocadilho... Mas não se controlava mais. Após insistir com o dentista, até se sentia melhor. Depois a revolta por não ter colocado aquilo quando mais novo voltava e ele mal podia dormir, inconformado.
Mas usou. Convenceu-se a si mesmo de que, usando corretamente a maldita peça, daqui a um tempo estaria livre e, é claro, com um sorriso invejável, e, aí sim, as mulheres lhe pulariam ao pescoço.
Um ano atrás a mulher terminara com ele alegando que o aparelho era um incômodo e influenciava até mesmo no sexo, prejudicando o total desempenho dele na cama. Neste período passou por uma crise e demorou a se recuperar. Agora sua filosofia era outra. Prenderia-se infalivelmente ao aparelho, era para o bem dele, as coisas seriam melhores quando acabasse o tratamento.
Virou outro homem. Ia a todo lugar com o aparelho nos dentes, com um controle invejável. Não tirava pra nada. Durante um almoço com os colegas do trabalho, o Jorge resolveu perguntar.
- O aparelho, Serjão. Não vai tirar pra comer?
- Não. Não mais.
E não dizia mais nada. Mastigava orgulhoso a comida que, agora, levava mais tempo para engolir. Os colegas terminavam bem antes e esperavam impacientes pelo amigo teimoso. Várias vezes foi deixado sozinho à mesa do restaurante, os amigos alegando que iriam se atrasar. Ele se atrasou muitas vezes. O dentista começou a se preocupar.
- Pode tirar pra comer, Sérgio. Não há necessidade...
- Mas eu quero. É para o meu próprio bem.
E não tirava mais o aparelho.
Saiu com uma moça, a Cláudia, e ela, ao se beijarem, sentiu restos de comida presos nos cantos do aparelho na boca dele.
- É assim mesmo. Melhor se acostumar.
- Mas... como, me acostumar?! É nojento, Sergio!
- Então, tchau.
- Mas...
- Ou se acostuma com os pedacinhos de carne, ou então tchau.
Ela não tinha palavras. Pegou a bolsa e se foi, ele ficou na mesa do bar, a determinação em pessoa. Agora percebia como era a vitória da vida, o prazer de conquistar algo com empenho. E ela era bonita, mas o mais importante é que o aparelho estava na boca, intocável. Ele e o aparelho.
Aquilo virou neurose.
- Serjão, o pessoal do escritório tá estranhando. Você tem escovado os dentes?
- Pára.
- Eu só estou...
- Você quer me influenciar, Pedro. Eu estou ciente.
O outro não disse mais nada, assustado.
Acordava no meio da noite ofegante após sonhar que perdera o aparelho. Viu se ainda estava lá e suspirou aliviado. Um dia teve um pesadelo horrível. O dentista estava lhe dizendo que o tratamento acabara e ele podia tirar o aparelho para sempre. Ele se debatia na cadeira do consultório, gritando, como se tivesse acabado de receber a noticia da morte da mãe.
Perdeu o emprego. Os amigos se afastaram, a família não mais o chamava pros almoços de Domingo. Brigou com Deus.
Um dia um carteiro tocou em seu apartamento e o encontrou sentado no chão, pelado, pintando uma tela. Era uma réplica de um aparelho móvel, ninguém soube como aprendera a pintar de uma hora pra outra. Já era tido como louco, desequilibrado. Passava fome. Não tomava banho. Escreveu um livro.
Passou-se um ano nessa situação até que ele retornou ao dentista para mais uma consulta. O doutor olhava satisfeito para seus dentes, com um olhar de admiração acadêmica.
- Hum...
- Que foi?
O doutor tinha um sorriso nos lábios.
- Seus dentes estão ótimos. Não precisa mais de aparelho, Sérgio!
- Há.
- Nunca mais. Eu realmente nunca vi coisa parecida. Você o usou com muita disciplina. Meus parabéns. Não está contente?
Ele não respondeu. Mantinha o olhar fixo num ponto distante, tenso. Passaram-se três segundos assim e então ele rolou pra fora da poltrona, caiu no chão e saiu correndo pela porta do consultório, o dentista foi atrás desesperado já esperando essa reação.
Saiu suando na rua e continuou correndo no meio do trânsito, quase foi atropelado, foi xingado, o dentista de luvas de borracha vinha atrás como um louco. Era o pior dia de sua vida. Não iriam arrancar o aparelho de sua boca. Mesmo que ele morresse.
Foi parar num parque, sem noção de onde estava, e, exausto, caiu aos pés de uma estátua. As crianças pararam de brincar e olhavam assustadas. O dentista chegou logo depois, caiu em cima dele e foi uma briga incrível, os dois cheios de determinação. O dentista gritava.
- Eu quero terminar o meu trabalho! Não está terminado ainda, Sérgio!
- Não! Eu não quero! Vá embora, pelo amor de Deus!
- Não!
A polícia chegou e separou os dois, foram pra delegacia. A mulher do dentista foi chamada sem entender nada, preocupadíssima. O doutor tinha um olho roxo. Ambos descabelados.
O dentista explicou a história pro delegado, que mandou ligarem pro hospital. Sérgio foi levado numa camisa de força dentro duma ambulância e, posteriormente, internado numa clinica psiquiátrica. Amarraram-no, dizendo que era pelo seu próprio bem, e tiraram o aparelho, a muito custo, que há mais de um ano não saia da boca.
Foi naquele momento que Sergio perdeu sua alma. Sentiu um pedaço de si mesmo sendo arrancado por aquele bando de gente hipócrita e falsa em volta dele.
Ficou duas semanas em recuperação na clínica, o caso saiu até nos jornais.
A imprensa vinha entrevistar ele, vinham familiares chorando copiosamente em volta de sua cama, e ele não dizia uma palavra. Havia revolta e desilusão em seu rosto. Mais uma vez a sociedade transformara ele em outro homem. Escreveu outro livro e se sentiu melhor.
Quando saiu do hospital estava recuperado do choque e procurava manter a calma quando se lembrava que não usava mais o aparelho. Quando via algum, em alguma revista ou na boca de alguém, sentia aquele impulso instigando-o a arrancar da pessoa ou então a se matar.
Mas o tempo é o melhor remédio, e ele ficou bem. Um dia, o telefone tocou.
- Alô?
- Sérgio?
- Quem...
- Oi, é a Cláudia...
- Cláudia? Que... você, Cláudia?
- Eu mesma. Lembra de mim?
- Mas é claro! Você me deu o fora no bar por causa do ap... bem... por causa do meu pequeno probleminha – ele evitava pronunciar a palavra “aparelho” para não voltar a ter uma crise de abstinência.
- Então. Eu estava pensando, sabe... e acho que a gente pode tentar de novo.
- Claro que podemos. O que passou passou!
- Claro! E adivinha só.
- O quê?
- A gente ainda pode se dar super bem... agora eu também uso aparelho móvel!


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