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Humor-->A vida moderna -- 28/01/2003 - 16:27 (William Henrique Pereira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Vida Moderna

Arnaldo estava inquieto, pois aquela ia ser uma noite muito diferente das outras. Era Sábado, e este, em especial, prometia ser muito divertido, e não aquela mesma monotonia de sempre. Todo Sábado à noite ficavam ele e a mulher, Ana Maria, sentados no sofá vendo aqueles mesmos programas na TV e reclamando da vida, ou então o Arnaldo começava a dormir e tombar a cabeça no ombro da mulher a cada três minutos.
Hoje a Ana Maria estava cismada. Duas horas atrás, quando o Arnaldão havia chego do trabalho (o nosso grande batalhador era um cidadão desta nossa vida moderna, dura e longa, onde cada vez mais o trabalhador perde seu tempo livre, seus Sábados e feriados), a mulher logo pulou em seu pescoço com toda o vigor e disse:
- Hoje eu não mofo aqui em casa, Arnaldo.
- O que houve, querida?
- Não é o que houve, Arnaldo. É o que vai haver. Diz, o que a gente vai fazer hoje à noite? É Sábado, Arnaldo!
- E daí? Não vejo a hora de sentar no sofá e assistir minha programação notur...
- Nada disso – Ana Maria fechou a passagem do corredor do apartamento e desafiou o marido com os olhos.
- Ana Maria...
- Quer apanhar, quer?
Ana Maria venceu a primeira etapa. Domou o Arnaldo. Ele obedeceu a mulher e foi se sentar no sofá para ouvir o que ela tinha a dizer.
- Arnaldo, hoje em dia os casais por aí se divertem, saem, vão dançar, não ficam parados em casa. O chique é sair, Arnaldo.
- Mas eu não gosto de sair, Ana.
- Ai, Arnaldo... desse jeito não dá. Já sei. Tive uma idéia. Vamos chamar uns amigos aqui.
- Amigos?
- É! Isso também se faz bastante por aí. Vamos chamar alguém, pega a agenda.
Decidiram por fim chamar um casal que era vizinho deles, o Fernipe e a Bia.
- Eu não gosto deles – disse o Arnaldo, contrariado, com o fone na mão.
- Anda, liga lá, seu chato. E trate de ter alguma boa idéia pra gente se divertir com eles. Alguma atividade nova...
- Atividade? Mas o que...?
- Pensa!
Arnaldo discou e o tal do Fernipe atendeu.
- Sim?
- Alô, Felinando?
- Quem?
- Ops, desculpe. Fernipando... gasp! Fernipe?
- Sou eu mesmo. Quem fala?
- Aqui é o Arnaldo, seu vizinho.
- Ah, percebo. Como está o senhor?
- Tudo bem. Estou ligando pra convidar você e a Bolota... digo, a Bia, pra virem jantar com a gente hoje...
- Ah, percebo. Sim, seria uma atividade de grande prazer para nós. Creio que não há nenhum problema. Vou ver com a Bol... com a Bia. Gra-ham.
Houve um momento de silêncio.
- Alô? Sim, iremos até aí, Arnaldo.
- Ótimo. Espero por vocês.
- Até logo.
Arnaldo desligou.
- Não gosto do Felinando.
- Fernipe!
- O que?
- Fernipe, o nome dele!
- Ah. Vem cá, por que ele tem esse nome estranho?
- O pai dele gostava do nome Felipe e a mão do nome Fernando. Aí tiveram que juntar os dois nomes, mas o resultado não ficou muito bonito.
- Também acho. Por que não botaram Felinando?
Ana Maria nem respondeu.
E duas horas depois lá estão o Arnaldão e a mulher sentados, esperando o casal chegar, e um enorme lençol ocultando algo no canto da sala ao lado do Arnaldo.
- Me fala o que é – repetia Ana Maria, curiosa.
- Não falo – Arnaldo de braços cruzados, grave, fazendo suspense sobre a surpresa que tinha preparado para a noite – É surpresa – E ele se aproximava cada vez mais do lençol, com medo que alguém se aproximasse.
A campainha tocou.
- Vai atender – disse Ana Maria.
- Não vou – Arnaldo abraçou o objeto oculto com os dois braços e olhou em volta, desesperado – Vai lá.
- Você tá lascado na minha mão.
Nessa hora, deu medo nos dois. Ninguém sabia o que a noite ainda reservava para o grupo de amigos. E se o casal não gostasse? E se achassem que a casa fedia? Ana Maria hesitou antes de abrir a porta.
- Olá! Entrem, entrem!
- Boa noite!
- Oi!
Aquele talvez fosse o casal mais peculiar da vizinhança. Um par perfeito. Bia Bolota Calor era uma mulher gorda de seus trinta anos e que falava que nem uma desvairada, toda afobada, querendo dizer tudo ao mesmo tempo. O pior era que ela cuspia na cara dos outros quando falava, com aquela língua enrolada. Parecia um hipopótamo. Era uma pessoa desagradável, mas ninguém dizia isso pra ela. Estava sempre falando mal dos outros, era a legítima fofoqueira que não tem o que fazer da vida. Ficava o dia todo indo na casa das vizinhas, falando da roupa que fulana usava e de sicrano que ia casar com beltrana. Não trabalhava, tinha empregada. Adorava cortar as unhas dos pés e elogiar o marido. Esse era um tapado. No bom sentido. Boa pessoa. Aliás, boa demais. Fernipe Hércules era o cara mais correto do mundo. Um sujeito que todo mundo conhece pelo menos um do tipo. Aqueles caras certinhos, que andam com uma roupinha à moda antiga e falam corretamente. Pra começar, o nome era estranho demais. As roupas: paletó marrom extremamente brega, apertadinho, gravata, coletinho, sapatinho lustroso, meias verde-escuro, camisa de flanela, chapéu (pode acreditar), cabelinho penteadinho, engomadinho, cheirosinho, desodorantezinho, bigodinho alisadinho, corretíssimo, tudo simétrico e ajeitadinho. Um saco. Alto, magro, com um olhar grave e muito sério, todo polido e educadérrimo. Este era o tal do Fernipe, essa figura da sociedade. Falava vírgula por vírgula, tudo correto, sem erros de pronúncia, era todo letrado e limpinho. Impecável. Viciado em limpeza. Chegava a ser esquizofrênico. Os óculos eram aqueles de aros bem grossos, negros. Quando pequeno, era nerd, com certeza. Falava inglês perfeitamente, além de espanhol, francês, latim, italiano, japonês, alemão e uma arranhada no russo. Lia muito e só ouvia música erudita e clássica. Medo de avião, aranha e barata. Hobbies: ajeitar a gravata, cuidar das flores que cultiva em seu jardinzinho, pigarrear com um ar grave e fazer comentários curtos, objetivos, rápidos e inteligentes sobre as coisas que observa. Era um pouco mais velho que os amigos, já devia ter cinqüenta anos. Como todos podem ver, um cara muito legal de se viver junto, é claro. Mas Bia gostava dele justamente por causa disso. Por ser tão pacífico, um santo, e tão conformado com as coisas. Se acontecesse um desastre, o Fernipe não se exaltaria. E deixava a gorda ficar falando mais que a boca o dia todo, pois ele não se irritava.
- Muitíssima boa noite – disse Fernipe. A Bolota se enfiou na frente dele, pisou sem querer no pé dele e saiu correndo.
- Ai, que casa linda! Amei! Oi, Arnaldinho! Como vai? Quais são as novas?
Ana Maria, apertada atrás da Bia, mexeu a boca pro Arnaldo, inconformada: “Arnaldinho?!”.
Fernipe se sentou e quase caiu no tapete, pois quando ia sentar sempre fazia a maior cerimônia, todo sério e polido. Ele exagerava, e ninguém gostava do jeito dele.
- Desculpem. Gasp. Há-hãm – ele sempre tossia quando ficava sem jeito, e ajeitava o canto dos óculos com cuidado, todo grave. Só o Fernipe, mesmo.
Em seguida drinques foram servidos e houve um pequeno instante de constrangimento. Aí Bia começou:
- Ai meu Deus, deixa eu ver o que tem embaixo desse lençol, deixa, vai!
- Não! – Arnaldo pulou em cima do objeto e começou a suar. A Bolota ia estragar tudo.
- Diz que é surpresa – informou Ana Maria com desdém.
- Surpresas são do meu agrado – resmungou Fernipe, mas foi interrompido pela gorda:
- Ih, fiquei curiosa, gente, dessi jeito cês me matam. Anda, Ana, fala que qui tem lá dibaixo.
- Não posso, o Arnal...
- Que tal falarmos de outra coisa? – Arnaldo estava uma pilha de nervos.
- Vamos ter atividades divertidas hoje pela noite? – disse Fernipe, divertido.
- Eu disse pra falarmos de outra coisa! – exaltou-se Arnaldo.
- Ai, cês viram só aquela tal da Gabi da esquina? Tá de namorado novo, acreditam? Vocês acreditam? É verdade, eu vi! Ela, imagina, aquela mulher gorda!, feia, descabelada, vocês sabiam que ela põe enchimento nos seios, sabiam? Pois é, me contaram, mas isso eu já não sei, né? As pessoas falam muita coisa por aí, né? Ah, e o sobrinho da Andressa, aquela da festa mês passado, ele vai casar com a filha da tia do segurança do prédio da dona do cachorro que é irmão do pastor alemão do Rogério... sabiam? Bom, eu fui convidada, e vocês? Não foram? Que pena, vai ser uma grande festa, mal posso esperar pra ver todos por lá, e fofocar com todo mundo, ai, que calor, vocês não estão com calor não? Sou só eu? Vocês não falam nada? Só eu, é? Ai, vamo agitá a noite, gente! Nossa, que calor! Tá muito quente aqui, abre essas portas todas, vamos sambar! Ai meu Deus, quero sambar! Vamos sambar, Fernipinho?
- Só se for agora.
- Quero sambar, adoro samba, e axé, e um pagodão na avenida, amo Carnaval, vocês não?! Ai!
A gorda levantou do sofá com um esforço tremendo e começou a se sacudir que nem uma louca no meio da sala. Tirou os chinelos e rodou toda, com aquela banha, no meio dos amigos. Cantava, gritava, passava calor que nem uma louca. Era uma imagem muito desagradável de se ver. Pode-se notar isso pela cara que o Arnaldo fez ao olhar pra ela. Fernipe permanecia constrangido e tímido, sério, limpando pequenos fiapos de tecido da calça limpa.
Arnaldo estava prestes a ter um chilique, quando Ana Maria decidiu servir o jantar.
Na mesa posta, eles começaram a comer. O Fernipe agia como um perfeito idiota, todo sem jeito com os talheres e com o copo.
- Quer vinho, Fernipe?
- Não, não bebo.
- Ele não bebe? – admirou-se Ana Maria, acostumada com o marido que às vezes enchia a cara.
- Eu não vivo sem bebida – disse Arnaldo. Ana bateu no braço dele.
- O Fernipe não toma uma gota de cerveja, o meu querido! Ele não é lindo? – Bia cuspia farofa pra todos os lados, eufórica, querendo dizer tudo ao mesmo tempo e elogiar o maridinho. Este ficou vermelho, orgulhoso, com a honra de ser um homem sem vícios e defeitos.
- O álcool é algo... – o janota ia começar a falar algo, mas a gorda, como sempre, interrompeu sua brilhante observação:
- Ele é maravilhoso, um santo de homem! Eu amo o meu Fernipe, olha que correto que ele é! Uma graça.
Fernipe tossia desesperado. Engasgara com o frango.
- Que foi, Felinando? Ops, Fernonte... ai, opa, como é mesmo o nome dele? – Arnaldo cometia uma gafe. Fernipe morria com o frango.
- Bate nas costas dele.
- Ai meu Deus, meu Fernipe.
Ele tomou um gole de leite quente e melhorou. Estava acostumado a beber somente leite quente, nem seuqer bebia refrigerante ou suco. Cerveja, jamais. Fumar, nunca. Magina.
Depois do jantar todos voltaram pro sofá da sala e continuaram o papo animado.
- E o que o Fernipe faz? – perguntou Ana em certo momento.
Ele ia se preparar para falar sobre sua interessante área profissional:
- Bem, digamos que a minha pessoa, nos últimos anos, tem se mantido ocupada com a atividade que consiste em...
Mas a Bolota cuspiu tudo e se adiantou toda afobada:
- O Fernipe é floricultor, olha só como ele é lindo! Trabalha cas frôzinha, as frô bunitinha, acredita nisso? Não é maravilhoso? Ele adora frôr.
- Ah, é mesmo? Não sabia – disse Ana Maria, mostrando-se interessada mas na verdade entediada com o papo – Que lindo, ele gosta de flores, Arnaldo. Olha lá.
Arnaldo estava quase dormindo sentado.
Fernipe espirrou, ficou trêmulo, sem ter pra onde olhar e onde pôr as mãos, e limpou o nariz num lenço aflanelado xadrez que sempre levava consigo. Ficou com um ar honroso todo pomposo, fino.
- Ele adora flores. Tem um monte lá em casa, precisa ver! Não é, Fernipe? Fala pra eles.
- É...
- Ele é uma graça, o meu Fernipe. Precisa ver. Coleciona os tipo de flor. Ah, fala pra eles do cachorro, Fernipe.
- Hã... eu... vejamos que ao cães são...
- Não, deixa queu falo. O Fernipe comprou um cãozinho, gente. É lindo. O Fernipe se dá tão bem com ele, pessoal, precisa ver! Nossa, eu olho os dois juntos e fico boba, menina, tem que ver, é uma coisa, assim, que cê olha e dá até gosto! Eu me esbaldo. O Fernipe tem um jeito, uma intimidade com os animais, inacreditável! O Fernipe brinca com o Jasão todo dia, tem que ver os truques que ele... ai meu Deus, Fernipe, os truque! Fala pra eles dos truques do cachorro!
- Pois é, os animais possuem um certo...
Fernipe é novamente interrompido em seus comentários objetivos e inteligentes. E fica sem graça. A Bia ataca:
- É lindo, Ana, menina, nem te conto! O Fernipe ensinou uma porção de brincadeiras pro Jasão! Como é que é mesmo, Fe? Fala pra eles, fala... fala aquele da bolinha... eu fico boba... tem o da bolinha... o Fernipe tem o dom, gente, ele sabe lidar com...
A fala da gorda foi subitamente interrompida por um bocejo de Arnaldo, que escapou alto demais.
- Qué isso, Arnaldo? Isso não modos? Parece criança!
- Tô com sono.
A Bia continou:
- Ai, mas a vizinha do lado, a Barata, ela não larga o nosso pé, desde que o cachorro chegou. É um tal de reclamar do bichinho, sabe? Ai... eu fico louca. Só falta envenenar o pobre. E o pior é que o papagaio dela também não dá trégua, é o dia inteiro xingando o meu Fernipe. Acredita que o papagaio deu pra aprender o nome do Fernipe errado? Fica ofendendo ele e chamando ele de Felinando.
- Ué, mas o nome não era este? – soltou Arnaldo. Tomou outro tapa no braço da mulher.
Fernipe enrubesceu. Ia fazer algum comentário culto, mas a Bia gritou antes:
- Ai que calor, quero sambar!
- Vamos jogar – a fala cortou o clima de tédio. Era hora do jogo. Algum jogo, não se sabia qual.
O homem da casa se levantou, sóbrio e solene, cheio de segredos, e se dirigiu até o lençol no canto da sala. Todos ficaram em expectativa. Ouvia-se as batidas do pequeno coração do Fernipe.
- Abre logo – disse Ana.
Quando Arnaldo puxou o pano, Ana Maria espirrou, Fernipe se engasgou gravemente e Bia soltou um pum ousado. Tudo virou loucura. Era uma grande tela com um bloco de papéis e canetas de desenho.
O jogo era a velha competição de casais onde um tentava adivinhar o desenho do outro. Não era nenhuma idéia genial, como o autor da idéia deixava parecer. Todos se decepcionaram. Mas começaram o jogo.
Era um tédio. Bia era burra demais para desenhar e para adivinhar os que o marido fazia. Arnaldo tinha preguiça de jogar e queria ir dormir. Ana ficava irritada e brigava toda hora com ele. E Fernipe queria sempre dar uma de mais culto, mais letrado, e ficava tentando dar novas interpretações para os desenhos, ou demorava um tempão para desenhar, sempre caprichando na arte da coisa, e ninguém gostava desse jeito todo certinho dele.
Eram onze e meia da noite e o jogo chegava ao fim. Era a rodada final, o desempate decisivo. E era a vez de Fernipe desenhar. Bia ia tentar adivinhar. Mas ela não conseguia, pois o desenho era muito complexo. Deste jeito Arnaldo e Ana iriam ganhar. Mas então eles combinaram de mudar um pouco as regras. A pessoa que não conseguisse adivinhar tinha mais uma chance, e o parceiro podia fazer mímicas para ajudar. Assim, Bia pediu para Fernipe fazer as mímicas, e foi aí que começou o desastre.
Fernipe era muito desastrado, desajeitado. Cmeçou a gesticular que nem um desvairado, louco, vermelho e afobado, afinal queria ganhar o jogo. E nada. Corria, abria os braços, dançava, arregalava os olhos. Arnaldo e a mulher observavam a cena incrédulos. O homem era louco.
Aí a coisa foi ficando séria. A gorda também enlouqueceu, pois e tempo estava acabando:
- Não sei o que é isso, Fernipe! Ai meu Deus. Faz direito, Fe! Mas que que é isso? Ai meu santo. É um avião? Uma mochila? Hot dog? Cachorro? Coca? Seu pai? É um morcego? É um morcego, eu sei que é um morcego! É violão? Já sei! É o “Pagode da Rua Louca”? “Samba dos Loucos”? “Quero sambar”? “Ai que calor”? “Quero ser gorda”? “Pagodinho da titia”? Carro? Estrela? Cueca? Sou eu, Fernipe? Esta sou eu, desenhada? Ai meu Deus.
E Fernipe ficou louco de vez. Se sacudia que nem louco, pulava até o teto, rolava e se esfregava no tapete, se retorcendo e mordendo o queixo. As veias saltavam do pescoço, ele estava mais vermelho que um pimentão, quase estourando. Os olhos fora da órbita, os óculos voando longe, os cabelos eriçados, um pileque total. Começou a espumar e caiu no chão, tremendo.
- Ai meu Deus! Meu marido! Meu pobre! Meu Fernipe!
Todos perceberam, tarde demais, que era coisa séria, não era mais brincadeira. Acontece que nesse tempo todo ele estava tendo um ataque, e todo mundo pensava que era só a brincadeira. Mas era grave. Ele era cardíaco.
- Ai, meu santo! O Fernipe tem problema do coração! Ele é cardino! Ele é cardino, o dotô falô! Eu sei! Ele tá tendo os ataque! Os ataque! Chama o dotô agora!
A gorda rolava pelo chão, chorava, vermelha, e acabou caindo em cima do Arnaldo. Este ficou entalado na poltrona com a gorda em cima, gritando. Ana Maria tropeçou na pernona do Fernipe e tentava chamar a ambulância.
A casa era uma tragédia, um gritaria total, um caos. Estavam todos loucos.
- Meu maridinho! Fernipe! Ele está morrendo, algupem faça alguma coisa! Estou entalada! Que calor!
- Socorro! – gritava Arnaldo, das profundezas das banhas perdidas.
- Alô! Tem um homem aqui tendo ataque cardíaco! Mandem uma ambulância pra cá agora!
Fernipe se tremia todo no tapete, um fio de baba escorria do canto da boca, estava louco. As pernas sacudiam pra todos os lados. Ele gritava coisas inexprimíveis e ininteligíveis.
- Gasp! Graham! Praham-gasp!
- Socorro!
Neste momento a casa virou um inferno.
Os vizinhos ouviram a gritaria e o barulho e acordaram, e começavam a tocar campainha. Pessoas se amontoavam na frente da casa. De repente a porta é arrombada por um sujeito mais fortinho que ali se encontrava e gritava:
- Eu sou forte! Eu sou forte! Deixa comigo! – ele usava uma blusa apertada e fazia pose de fortão.
As pessoas invadiram a sala e tudo virou baderna. O homem morria no chão. Os vizinhos caíam uns sobre os outros, não querendo ajudar, e sim querendo se intrometer e xeretar. Muitos corriam desesperados e berravam:
- Eu sou médico!
- Eu também!
- Não, eu é que sou!
- Cala boca!
- Oi!
- Chama o bombeiro!
- Tá pegando fogo!
A casa começou a pegar fogo de repente, sem motivo algum. Provavelmente algum vizinho deixara cair uma cinza de cigarro no carpete. O fogo transformou o local no próprio inferno.
- Socorro!
- Meu marido, meu Fernipe!
- Alguém tira essa gorda de cima de mim!
- Alô? Ambulância!
- Alô? Meia mozzarella, meia atum! Não, eu disse atum!
- Oi, tudo bem? Você não mora no 74?
- Tem e-mail?
- Sou médico!
- Cadê o dotô?
- O homem vai morrer!
- Deixa comigo, eu sou forte!
- Eu sou gay!
- Meu cachorro! Onde está o meu cão?!
Animais começaram a invadir a casa. Os cachorros da vizinhança corriam pela sala, derrubavam TV, estante, cadeira, abajur, mijavam, latiam, entrou papagaio, rato, cobra, gato, urso, periquito da Malásia.
- Meu cão!
- Tóbi! Vai apanhar!
- Sou médico!
- Me liga, hein?
- Socorro!
- Fogo!
- Apaga esse fogo!
- Cala a boca, imbecil!
- Vá à merda!
- Polícia!
Sirenes se faziam ouvir pelo bairro todo. Ambulância, bombeiro, polícia, pizzas... uma loucura, a casa lotada de gente, animal e fogo. Enfiaram um doente lá dentro na cadeira de rodas, não se sabe por que, que agora não conseguia sair e estava imobilizado no meio do fogo.
- Eu não sei andar!
- Ajuda!
- Help!
- Ei, curte The Beatles?
- Oi, broto.
Um cachorro saiu correndo disparado pela sala e pulou em cima do olho do Fernipe. Este berrou e ficou pior ainda, querendo matar o animal. Todos descobriram que Fernipe na verdade odiava cães.
- Maldito!
Bia se soltou do sofá e rolou em cima da perna do Fernipe. O homem estava morrendo.
- Não morre, Fernipinho! Não morre, Felinando!
- É Fernipe! Fernipe!
Pessoas entravam na sala sem saber de nada. Até pessoas que passavam pela rua e nem conheciam os moradores.
Os médicos entraram aos trancos, com uma maca, um papagaio saiu voando, ouviu-se um mugido, bêbados invadiram a casa e roubaram cerveja.
O doente da cadeira de rodas gritava e ninguém ouvia.
- Olha o garoto pegando fogo!
- Mãe, meu cabelo queimou todo!
- O Tóbi! Meu Tóbi!
- Eu tenho AIDS!
- Socorro!
A maca passou com Fernipe em cima, berrando e se sacudindo. No trajeto a cabeça dele bateu várias vezes nos móveis. Um cão mordeu sua barriga e outro fez cocô na cabeça dele. Ele pirava.
Pessoas morriam queimadas, outras se batiam.
Lá fora Bia chorava e gritava, ao lado da maca do marido:
- Fernipe, não morre, por favor! Meu santo!
- Socorro! Minha plantas! Quem vai tomar conta das minhas florzinhas se eu vier a falecer?
- Não diga isso! Não!
A confusão ainda durou um bom tempo. Umas duas horas.
A calma demorou a voltar na rua do Arnaldo.
Fernipe foi internado e só melhorou muito tempo depois.
Arnaldo e Ana Maria voltaram do hospital no meio da madrugada. Entraram na casa destruída pelo fogo e se sentaram, exaustos.
- Ele melhorou?
- Melhorou – disse Ana.
- Que desastre, hein?
- É...
Permaneceram em silêncio um bom tempo, pensativos. Teriam que reconstruir tudo. Não ia ser fácil. E eles não sabiam nem o que dizer um para o outro. Afinal Arnaldo falou:
- Você e essas suas idéias, hein?
- Eu?!
- É, você. Não fui eu quem inventou essa história de se divertir à noite!
- Eu, vírgula. Foi você que veio com essa de jogo de adivinhação! Foi por causa disso que o homem ficou nervoso!
- E eu lá tenho culpa se ele é ruim do coração?
- Estou morta.
- Não gosto desse Fernipe.
- O que isso tem a ver? O homem quase morreu e você diz que não gosta dele?
- Digo.
- Você só diz besteira, Arnaldo.
- Bom, isso eu já não sei. Mas que não gosto daquele sujeito, não gosto mesmo.
- Chega, Arnaldo.



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