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Contos-->Outros desabafos -- 11/08/2003 - 20:22 (Paulo Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Voaram algumas folhas de papel carbono da janela do ônibus que corria a sua frente. Atropelou aquelas folhas, que rodopiaram levemente sobre o seu carro. Tinha os pensamentos espalhados como aqueles papeis que voavam displicentemente. Tinha os ossos doloridos e os ligamentos frágeis que o fizeram sempre limitar os movimentos.
Assim tinha sido sua vida até então, uma eterna batalha para não desviar do caminho, para não exagerar em viver. Limitava-se, quase todo o tempo, em não correr os riscos da liberdade, prendia-se, nem mesmo ele sabia onde.
Aquele ano, em particular, lhe destruiu pontos de referência. Agora tentava fugir do inevitável, corria de volta ao passado. Buscava fotos, lugares, qualquer coisa, material que fosse, que lhe trouxesse lembranças, ou melhor, que lhe trouxesse a normalidade de volta.
O tempo, pensava ele, é nossa única autoridade inflexível. Destruiu os seus amores. Roubou-lhe a família e os amigos. Até as imagens, que a mente, por vezes, teimava em desenterrar, já não ressuscitavam como antes. Esquecia-se de rostos, de datas, de histórias. Até seu corpo lhe tinham roubado.
Agora, imaginava-se na direção do seu velho caminhão, que há anos não existia. Sentia-se jovem novamente, deixou o vento entrar e enfrentar os seus demônios. Por segundos, que lhe foram eternos, sentiu-se forte, como se lhe ingerissem qualquer substância química que proporcionasse momentânea alegria. Imaginou-se feliz. Rapidamente lhe levaram o caminhão. O efeito do remédio passou. Passou com ele aquelas boas lembranças.
Pelo retrovisor do carro olhou as folhas de papel que teimavam em flutuar ao vento. Caiam levemente até próximo ao asfalto, depois, numa forte rajada , voltavam a subir, rodopiando no ar. Velozmente distanciou-se delas e ignorou o fim daquela luta incessante para não tocar no solo.
Percebeu, então, que a vida se renovava. Na medida em que um dos lados se desintegrava, deixando saudades que, sequer, seriam eternas. O outro desabrochava, abrindo os olhos para um recomeço. Um antagonismo irônico que traduzia todo essência de viver. Os que morrem e os que nascem.
Mesmo tal pensamento não lhe confortou o bastante para lhe desentravar os ossos. Os músculos contraídos pelo peso dos anos e inúmeros acidentes vasculares, continuavam sem vida. Talvez pela idéia dos dois pólos que norteiam nossa existência, lembrou-se da infância e viu-se correndo de rua abaixo, como se voasse igual aos papagaios que fugiam da linha. Viu-se entre os garotos, entre pernas que corriam, entre gritos. Criança que foge de tudo menos da bola. Os pés descalços que amavam tocar a terra, tão diferente daquelas folhas de papel carbono que lutavam para não cair.
Curado dos pensamentos confortantes da infância, percebeu a velocidade com que as nuvens iam passando, não conseguia reparar na beleza de cada uma delas. Passavam fulminantes, sem perdão, com a sua beleza fugaz, não nos davam o direito de admira-las. Sucedia-se outras, igualmente belas, e tão esnobes quando as anteriores, não conseguia namora-las, elas lhe fugiam da vista. E quando parou o carro para admira-las, já não pareciam tão belas como antes, concluiu que a velocidades com que passavam lhe forneciam a beleza que só as breves coisas possuem.
Seguiu o seu caminho, mediando a velocidade, como sempre o fez. Alternava momentos de extrema rapidez com longos intervalos de lentidão. Perdeu o olhar no horizonte. Encontrou na memória sorrisos de mortos e dores dos vivos. Queria que todo aquele sentimento lhe entrasse por baixo da pele, lhe marcasse o corpo como cicatriz. Não queria esquecer de onde vinha. O que formou, a procedência de cada célula do seu corpo, de onde vinham todos os preconceitos e os tormentos que carregava na alma. Seguiu o seu caminho. Agora veloz, logo estaria lento novamente.
A lentidão chegou e com ela novo desespero. Pensava se teria completado todas as suas tarefas. Sua preocupação agora era não deixar pendências. Nada pior do que não poder voltar, sabia que logo provaria esse gosto amargo. Não poderia consertar ou terminar nada. Preso entre madeiras num corpo sem vida. Suspirou e deixou o vento entrar. O vento que, por muito, deixou viva, rodopiando sem tocar a terra, aquelas folhas escuras de papel, haveria de deixa-lo no ar mais um pouco.
Agora veloz, como o vento.
Até a natureza se rende. A lentidão retornou com a certeza de que nem todas as rajadas deixariam eternamente a rodopiar no ar aquelas folhas abandonadas pelo ônibus, nem todos os tufões o fariam voar como antes. A dura certeza que, embora não as visse, as folhas de papel já deveriam ter tocado o asfalto quente e deixado de brincar de voar em piruetas. E logo ele estaria em casa e descansaria daquela longa viagem.
08 de setembro de 2002

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