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Contos-->O Maneta -- 12/08/2003 - 14:33 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Até pouco tempo atrás ele era só uma pessoa comum, com uma casa ainda por terminar o pagamento (na verdade um apartamento), uma garota com quem se relacionava e uma não tão promissora profissão de contador para uma empresa qualquer da qual não faz diferença citar o nome. Incrível como absolutamente nada em sua vida parecia mesmo muito promissor, mas não fazia grande diferença para ele, já que ele nunca possuíra uma noção exata da natureza da vida que o cercava. Não tinha muitas noções do que pudesse ser promissor ou não, porque, na verdade, não era de seu feitio medir as coisas, conforme elas fossem acontecendo, com sua cabeça como se fosse um termômetro que o permitisse averiguar se isso era frio ou isso era quente.
Certo dia, absolutamente passível como sempre fora sua concepção fenomenológica de vida, estava ele dirigindo seu carro por uma avenida grande de uma cidade qualquer (que é esta onde ele mora até hoje), quando um bisonho, terrível, absolutamente imprevisível acidente lhe ocorreu. Ele era mais um fumante nesta cidade (não só qualquer, mas grande), característica que lhe conferia certos pormenores que nos permitem qualificá-lo dentro de um tipo especial de seres humanos. É lógico que fumantes e fumantes e fumantes são sempre diferentes uns dos outros. Há aqueles intelectualizados, supostamente inteligentes, mas cuja presença do cigarro denuncia uma certa disposiçãozinha a fazer um charme secreto, uma vaidade blasé entediada, uma maneira de ser chique num mundo esquisito em que ser chique era ser uma coisa que já fora considerada chique - mas não é mais, porque faz muito mal à saúde - mas que volta a ser chique pelo simples motivo de ser algo transgressor, ponte da resistência da vontade, uma espécie de rebeldia intrínseca, uma maneira de ser o avesso sem se precisar ser o avesso, e etc. E é bastante incrível que muitas pessoas quase inteligentes façam o uso do cigarro com estes fins tão contraditórios. Claro, há outros tipos. Um deles é também o do fumante ansioso. Ainda que também movido por alguma vaidade emaranhada, coberta por teias diversas, vaidade esquecida e trancada no porão do coração, estas pessoas em geral curam sua ansiedade por meio do fumo, porque, não sei se você já pensou nisso, nós precisamos o tempo todo de movimento, olhar para alguma coisa, ler alguma coisa, extrair alguma coisa da sensação e transformá-la em percepção a qualquer custo, nem que seja vomitando, somatizando de maneiras mil, etc, balançando a perna esperando o filme no cinema começar, balançando a perna esperando o filme acabar, essas coisas todas. O cigarro substitui isso de maneira quase exemplar. Em vez de pensarmos no que fazer, fumamos, ocupamos nervos muitos, exaurimos nossas unidades de tempo. Por exemplo: se chegamos antecipadamente a um compromisso qualquer (por um razão diferente do compromisso, porque dificilmente queremos chegar antecipadamente a qualquer lugar, já que isso não faz sentido), que melhor maneira de ocupar esses, digamos, dez minutos, se não acendendo um cigarro e nos preocupando (que é isso que a gente faz integralmente) somente em tragar, bater a cinza, aspirar a fumaça de novo, e coisas desse tipo? Em dois ou três cigarros, os dez minutos passaram, e é como se a espera nem tivesse existido.
Pois bem. Nosso personagem não é um desses casos. Ele pertence a um terceiro tipo, mais desencontrado (e você vai perceber que conseguiremos explicar tudo a respeito da vida deste rapaz analisando um único hábito seu: o fumo). Este fumante não se lembra de quando acendeu o primeiro cigarro, não se lembra porque o fez, e nem porque continuou fazendo. Este fumante é como aqueles papéis mata-moscas: tudo o que cai sobre eles é aderido - poeira, cera, cuspe, cinzas, doenças, práticas sexuais, drogas, quantas coisas cruzarem seu caminho e ele vai lá, agindo como o vento, dobrando uma esquina, outras, passando pelas árvores, pelos rios, tal qual uma força cega esquisita, sem direção, em busca de alimento, sexo, filhos. Nosso personagem acendia esse cigarro, dentro do carro, enquanto se dirigia ao seu emprego acomodado de contador, na hora do almoço, quando ele, naturalmente, como sempre faz, acendeu um cigarro, porque o tempo de estar dentro de um carro é tão inútil quanto a espera dos dez minutos citada acima. Em seu carro não havia som. Na verdade, ele sequer se interessava por música, ou por rádio, ou por notícias. É estranho pensar em algo tão paradoxal quanto uma inércia ambulante, mas me parece que este termo se adequa bem ao nosso humilde, porém desinteressado contador.
Batendo as cinzas do seu cigarro pela janela do automóvel (chegou-se-lhe até a manifestar alguma objeção quanto a este ato - se era lícito, se sujaria a rua, se estaria ele perpetrando algum pequeno agente, em conjunto com outros atos inescrupulosos de outros inescrupulosos, que tornaria o seu país uma vergonha subdesenvolvida para o mundo - mas ele logo repudiou esta idéia. Afinal, cinzas são apenas cinzas), uma reunião de fatos que só a matemática poderia explicar sucedeu-se com este cidadão, que parecia fadado a nascer morno e morrer morno. Em alta velocidade, um outro automóvel, cujo nome também não faz sentido identificar, e muito menos do seu dono, mesmo importante ainda, passou zunindo pela mão do fumante, arrancando dos tendões que a prendiam ao pulso do herói desta história, arremessando-a para onde nem as nuvens podiam ver. O contador, agindo por um impulso de sobrevivência que se mostrou surpreendente, freou o carro, numa fração de segundos, antes que este se chocasse contra algum outro, evitando assim algum acidente pior, se é que poderia existir algo pior do que aquilo. O dono do outro carro, também sozinho, parou mais à frente, espantado, atônito com a capacidade que a realidade tem de nos surpreender. Afinal, atropelar alguém é algo que existe, algo que com alguma freqüência aparece em nossa mente de maneira preventiva. Algo que, por mais horrível, chocante e demolidor que seja, não é tão estapafúrdio quando arrancar, sem o querer, a mão de qualquer pessoa enquanto ela bate as cinzas de seu cigarro pela janela do carro.
Uma coisa precisa ser registrada em relação à reação de ambos os protagonistas desta história: o atropelante (chamemos assim a pessoa que dirigia o carro que decapitou a mão do atropelado), um sujeito careca (é tudo o que precisamos saber sobre ele), suado, começou a andar entre as árvores que separam as duas pistas antes de chegar até o alvo de seu infortúnio. Andando em círculos, pensava calorosamente enquanto sua testa se inflava com um rubor intensificado. Não conseguia organizar os pensamentos, porque talvez fosse daquele segundo tipo de fumantes, e suas ansiedades mil, naquele momento, precisavam ser preenchidas com cada vez mais rapidez e menos ordem, impedindo-o de realizar qualquer ação coerente. O atropelado reagiu de forma ainda mais enigmática e surpreendente. A despeito de toda a sua horrível dor (tanto moral quanto física) e de todo o sangue que parecia agora estar em toda a parte (sua cara, o volante, suas roupas, os bancos do carro, a rua, e até parecia que o céu também estava um tanto ensangüentado), ele agiu de maneira absolutamente automática. Sem dar um grito sequer, limitou-se a abrir porta do seu lado (evidentemente, com a sua mão direita, ainda intacta) enquanto outros tantos carros e pessoas altruístas paravam na rua para, se não ajudá-lo, no mínimo ver o que estava acontecendo e contar o ocorrido quando chegassem em casa, com surpresa, admiração e espanto. Ele desceu, segurando com a outra mão o seu pulso agora ferido, e, friamente, foi se dirigindo até onde ele supunha que sua outra mão havia parado. Dezenas de pessoas já retiravam de seus bolsos seus aparelhos celulares para chamar uma ambulância, que não tardaria e chegar e tentar, talvez, costurar este membro perdido do nosso contador. Um velho senhor gritava para ele ficar parado, pois poderia contrair algum tipo de infecção espalhada pelo vento, e outras duas mulheres velhas, que passeavam pelo local, começavam a cercar o atropelante, tentando impedir que ele fugisse, ou tentasse se esconder no anonimato. De alguma forma, parecia que ele ainda não havia se decidido sobre o que fazer a respeito, e não estava em condições sequer de responder às atrevidas perguntas das duas senhoras.
A mão esquerda, afinal, nunca foi encontrada. O contador andou pela rua, cercada de carros parados e pela polícia, que já se achegava ao local, isolando a área do acidente e dirigindo os carros envolvidos até o acostamento, para que o fluxo pudesse seguir, mas em vão descobriu em que local misterioso tinha ido parar seu membro tão violentamente extirpado, carregando aquele cigarro pela metade que, não do jeito clássico, mas de um muito mais improvável, tinha sido a causa da sua danação. Antes de ser abordado pelos agentes sociais, pelos paramédicos, pelas testemunhas e até mesmo pelo próprio atropelante, que agora já parecia menos nervoso e disposto a fazer tudo para reparar o grave erro que (supunha ele) cometera, o contador pensou em três coisas importantes: como ele poderia continuar contando em sua máquina de calcular, que gostava de segurar com a mão direta e digitar com a esquerda; se ele conseguiria (e como conseguiria) aprender a escrever com a mão direita, e, fundamentalmente, se ele conseguiria se tornar um artista, utilizando a outra metade do cérebro.

Ciro I. Marcondes
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