Este peito que guarda dentro um coração,
carrega junto de si, por limitações físicas,
uma alma meio feminina.
Sim, apenas metade dela é mulher.
A outra metade encerra, por escolha,
uma parte que, muito embora masculina, quer
existir, ser-se, sem impor-se de forma que não tolha
aquela outra parte que deseja ser mulher.
Dos homens do lado de fora, em cujas almas
o estado masculino em que nasceram prevalece,
pouco ou nada sei reconhecer.
Sei deles apenas o que vejo: controle, distância, desejo.
Desejo de não se deixar ver, desejo de continuar a ser
aquilo para o que foram tão equivocadamente preparados:
senhores, patrões, governantes, imperadores temidos, não amados.
Controladores de tudo que lhes foge à compreensão,
atentos ao que é concreto, material e insensíveis ao que vem do coração.
Distantes daquilo que se lhes afigura abstrato, misterioso, nublado
e tão próximos do espelho quanto mais distantes do que lhes é amado.
Governantes preocupados com as necessidades básicas,
com os deveres prescritos em normas de conduta preconizadas ,
com as responsabilidades essenciais que ditam as regras impostas,
tão relapsos com o incomensurável, enorme desejo de quem se gosta.
Vigilantes incansáveis das obrigações a cumprir, das contas a pagar,
das agendas cumpridas à risca, do que lhes pesa nas costas.
Tão imperadores de tudo quanto deste mesmo tudo escravos laboriosos.
Tão sedentos, embora não saibam, de sentir o ar que lhes vai corpo adentro,
de sair às ruas como quem foge de casa, sem rumo e sem tempo,
tão necessitados de se descontrolar como pequenas crianças
quando se dão ao luxo da desobediência pelo simples fato de serem crianças...
Por estes homens é que mantenho viva esta minha masculina metade,
por esperar que em algum momento se lhes faça a vontade
de voar, de sonhar, de permitir-se, de viver sem imperar.
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