Não fale alto comigo
que eu sou surda de um ouvido.
Gritar comigo é castigo
para o meu outro ouvido.
Se gritam comigo, não ouço, e digo:
é fato, sou surda aos gritos
e só consigo escutar
quando me falam com jeito,
e só entendo e só respeito
aquilo que vem em voz baixa,
devagar, não a toque de caixa,
tenho horror de parada militar.
Não grite comigo que eu berro.
Como sou surda, concluo,
e acho até que não erro-
que é surdo quem está a berrar.
Não grite comigo que eu corro,
penso que é emergência,
vou em busca de socorro
pra quem estiver a gritar.
Não grite comigo, que eu acho
que quando se fala mais baixo
é o coração a falar.
Não grite com voz de razão,
que pra mim isso é invasão.
Invade a minha surdez,
atropela a minha vez,
razão por razão tenho as minhas
e não compreendo as falas –
só sei ler nas entrelinhas –
se vem chumbo, leva bala.
Não grite comigo,
nem fale comigo na marra,
não tente me impor sua fala,
que vou ser surda por farra,
e vou bancar a criança,
que enquanto o outro se cansa,
tentando aos berros falar,
canta, como quem não o vê,
não o ouve e nem quer saber
o que o outro quer dizer.
Não grite comigo. Lamento.
Vou logo dizendo: é pura perda de tempo.
|