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cronicas-->Os Olhos e a Vida -- 13/02/2003 - 00:03 (André Luiz Rodrigues Marinho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ontem fui à casa de meu avó. Há muito eu não o via e muito mais não ia até sua casa. Mas, apesar de todo o tempo, fui. Chegando lá, percebo que é como se eu tivesse voltado no tempo. Nada mudou. Tudo permanecia da mesma forma que eu vi há tempos atrás.

Estava chovendo. Ao entrar, penso comigo mesmo: "e este portão que nunca abre direito!". Depois que entrei, fui relembrando cada acontecimento, a minha vivência naquele lugar. Tinha umas cadeiras antigas presas à parede perto da porta, um tapete de borracha que parecia estar inerte desde a última vez em que estive lá. A única diferença que percebi, de imediato, foi uma árvore que tem no quintal, que naqueles tempos era grande e vistosa, mas hoje estava um tanto caída - tanto que seus frutos quase tocavam o chão.

Continuei entrando, passando pela varanda e avistei meu avó. Ah, meu avó... Lembro-me de quando ele vinha à minha casa e trazia vários pacotes de biscoitos - que eu, claro, adorava - e depois, sentava-se no sofá para ver as corridas do Ayrton Senna mas, pelo cansaço, acabava por dormir.

Repito, fazia muito tempo que não visitava meu avó. O motivo da visita não foi tão casual assim. Estava recentemente operado. Quando passei pela porta, a princípio ele nem me reconheceu, afinal eu já não era mais aquele pequeno garoto que corria pelo jardim enquanto ele dormia, mas depois de um curto intervalo, ele deu um sorriso. E esta característica - o sorriso - era talvez a que eu mais admirasse nele. Era largo, contagiante e mesmo que soubesse que fosse constituído por dentes falsos, continuava a contemplar a alegria que ele transmitia.

Porém, após o referido sorriso, senti que alegria já havia ido embora. Estava sentado frente à televisão e inconformado com o acontecido. Era visível a sensação de incapacidade que ele estava sentindo. Sempre foi muito ativo, até pouco tempo (soube através de notícias) ele continuava a sair para fazer feira, cuidar das plantas e fazer caminhadas. E hoje, aos noventa e dois anos, já não consegue fazer o mesmo e lamenta por isso.

Eu via sua inquietação, sentia seu nervosismo e, desarmado, dizia "que aquilo era passageiro" mas ele, espantosamente consciente dizia que já estava velho, que teria que continuar daquele jeito.

Passei mais tempo calado, observando suas atitudes - que eram poucas, se resumiam a algumas manias que adquiriu durante a velhice - pois não conseguia encontrar palavras para consolá-lo ou até mesmo para animá-lo. Perguntei se ele continuava comendo (recordo-me também de sua impressionante admiração por pimenta!) e respondeu que sim, mudou logo de expressão, falando que estava cheio de vontade de comer um cozido caprichado... Isso me deixou um pouco mais contente, diante da situação. Mas esta pequena alegria, para ele naquele momento, não durou muito, sendo substituída pela conformidade.

Fiquei então olhando o tudo em volta. Tinha um retrato grande de São Jorge na parede, várias figuras de Jesus distribuídas em santinhos e folhinhas por toda a parte... No corredor, tinha um relógio pendular antiquíssimo que não funcionava há anos! Confesso que fiquei intrigado com o relógio...causava uma impressão de tempo estático, sem evolução. Vi também uma cadeirinha de pés bem baixinhos que eu sempre usava para sentar-me a mesa... E fui me preenchendo destas lembranças e em cada uma delas ficava mais surpreso por quanto às vezes o tempo pode permanecer quieto, ausente e depois surgir, exaltando-se em recordações que ficam marcadas, durante e por toda a vida.


Voltando à realidade, percebo novamente a tristeza presente no coração de meu avó. E percebo também a capacidade da vida de ser injusta e me revolto por isso. Uma pessoa boa, perdendo pouco a pouco sua auto-estima e se deparando com problemas que, definitivamente, não procurou.

Porém, refletindo mais um pouco, questiono meu pensamento. Sim, continuo acreditando que ainda é uma injustiça, uma peça pregada pelo destino. Mas compreendo que é um resultado físico, próprio do desgaste do uso da máquina humana, e todos passaremos por isso um dia, tendo ou não argumentos que justifiquem ou não um possível "merecimento".

Saio então da sala, sigo até a varanda e vejo a chuva cair, molhando a terra e exalando seu cheiro, provocando um som contínuo e incessante. O céu, escuro, parecia compactuar com a tristeza do meu avó. Eu ali, parado, sem uma perspectiva que me fizesse ser útil naquele instante, tornar-me um consolo, um refúgio. Me senti incapaz, impotente e, ao olhar para trás, o vejo novamente, atento à televisão.

É hora de voltar para casa. Vou até ele, lhe dou um abraço desejando-lhe melhoras e ele me agradece com um sorriso, o mesmo sorriso de antigamente, acompanhado do brilho azul de seus olhos, que mesmo cansados e fracos, me contava que a vida agia dessa forma, que era necessário passarmos por isso tudo, é um processo de evolução e que assim caminhamos rumo à felicidade.

Meu avó continuou lá, sentado assistindo ao repórter. Eu fui embora, chateado e conformado com as inesperadas decisões da sorte humana. Mas algo me dizia, interiormente que era assim, que não é por isso que devemos nos entregar, que é um obstáculo a ser superado, um aprendizado. E eu aprendi. Aprendi e fui, triste, mas desejando que eu também pudesse ter a oportunidade de crescer, envelhecer e ter sim as minhas manias - por que não? - mas, acima de tudo, de ter uma vivência tranquila, serena, em busca da paz. Assim como ele. E poder, sobretudo, um dia transmitir também uma luz na profundeza do olhar, como aquelas irradiadas pelos mais nobres e sublimes olhos azuis.

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