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Contos-->A serviço do senhor -- 18/08/2003 - 21:45 (Paulo Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Quando eu senti o frio do cano do 38 no meu pescoço, eu descobri que tem dias que a noite é foda!
Percebi, então, que a idéia de dar uma volta em Boa Viagem e olhar as prostitutas da Av. Conselheiro, no Audi A4 do filho da puta que comia a minha irmã não tinha sido a melhor opção daquela sexta a noite. Se eu tivesse saído no meu chevete....
-- Passa pro banco de trás seu filho da puta. Gritou aquele que empunhava o Revolver. E completou olhando para o comparsa:
-- e você vai com ele.
Isso eu até achei uma boa idéia, pois não queria ficar sozinho no banco traseiro daquele carro. Ao menos não naquela situação. Obedeci. E o comparsa fez o mesmo.
Estava eu no banco traseiro do carro do meu cunhado na companhia de um marginal que encostava uma arma de fogo na minha barriga, enquanto outro filho da puta dirigia o automóvel e gritava:
-- fica frio ae coroa que a gente vai dá uma volta.
PORRA! Eu só tenho 39 anos e o cara me chama de coroa. Pensei até em reagi, mas permaneci calado, obedecendo friamente aqueles que detinham o poder pela força. O que me acompanhava no branco de trás me interpelou calmamente:
-- A carteira.
Com dois reais, uma identidade velha, uma carteira de motorista vencida e um cartão de sócio esportivo do Clube Náutico Capibaribe na carteira, entreguei-a ao marginal dizendo:
-- não tem muito.
Pensei ainda em completar argumentando que ele não poderia usar a carteira do clube para freqüentar o parque aquático, pois eu estava com a mensalidade atrasada. Preferi calar. Afinal de contas as piscinas viviam em eterna manutenção e também não conseguia imaginar aqueles dois indivíduos brincando no toboágua e fazendo chafariz com a boca. Eles não aparentavam ser pessoas sociáveis.
Ao abrir a carteira o marginal gritou:
-- O filho da puta tá liso!
Já não parecia tão calmo como antes. Foi então que eu levei a primeira coronhada. A primeira a gente nunca esquece. Foi no supercílio. Gritei de dor:
-- cala a boca seu corno! Gritou um deles.
Eu levei a mão ao rosto onde percebi o sangue quente que já escorria. Evitei maiores gemidos, tinha que manter um pouco da masculinidade que ainda me restava. Eu não sabia que era tão difícil manter-se homem quanto se tem a vida ameaçada. A vontade que eu tinha era chorar como um bebê e chamar pela minha mãe.
-- Você não tem um cartão de crédito, um talão de cheque seu merda ?
-- eu não tenho nada.
-- Como não tem nada e anda num carrão desse ?
-- o carro não é meu.
-- é mentira dele Nêgo! Atira nele.
-- eu vou estourar sua cabeça seu filho da puta mentiroso!
Eu só pensei no trabalho que o meu cunhado teria pra tirar todas as manchas de sangue do banco do carro. Eu adorava aquele carro.
-- vamô seu corno a gente quer dinheiro!
-- Meu irmão é verdade o carro não é meu e...
-- meu irmão é o caralho! Eu não sou teu irmão porra!
Um dos maiores debates da sociedade moderna é como deve a vítima se dirigir ao seu algoz. Pela reação do bandido eu não tivera sucesso nos termos usados. Na próxima vez eu tentarei alguma coisa do tipo Vossa Senhoria ou quem sabe Vossa Excelência. Talvez eu use “autoridade”, policial adora ser chamada de “autoridade” talvez o marginal sinta um pouco de inveja. É isso! Da próxima vez eu usarei “autoridade”.
-- Calma! Eu não tenho dinheiro. Nenhum dinheiro. O carro não é meu. Eu sou um empregado fudido.
Com aqueles argumentos eu esperei que eles parassem o carro em uma parada de ônibus qualquer e me dessem um passe C para eu conseguir chegar em casa. Não deu certo. E a gritaria continuou:
-- Empregado o que seu fresco! Eu vou te matar seu mentiroso.
-- Atira no pé desse filho da puta, que ele entrega o dinheiro.
--Eu não tenho dinheiro. Eu não tenho dinheiro!
Eu só conseguia repetir aquela frase banal, que eu tantas vezes disse no meu dia a dia. E pensar que agora minha vida dependia dela. É muita ironia pra uma só vida. Sempre que eu dizia pra qualquer pessoa que não tinha dinheiro, que vivia liso. Todos acreditavam, estava escrito no meu rosto. E agora. Justamente agora. Eu tinha cara de rico. Né foda!
-- Vamô ter que matar esse filho da puta.
Eu pensei em perguntar se era mesmo inevitável. Calei-me novamente.
-- Outro homicídio é foda!
A bandidagem de hoje, ao menos a bandidagem competente de hoje, trabalha obedecendo os ditames do mercado econômico. Tentam aumentar a produção e reduzir os custos. Vejam o que um economista diria num caso desses: “Mais um homicídio implicaria em outra ocultação de cadáver. Fato que poderia vir a envolver outro criminoso, aumentando a mão-de-obra no crime cometido, e também poderia vir a agravar a pena dos dois, ou dos três, no caso de uma improvável prisão. É obvio! Um homicídio é bem mais trabalhoso do que um assalto a mão armada. É tudo um questão de custo-benefício.” Pensei em expor isso aos meus seqüestradores. Achei melhor esperar pelas próximas decisões.
O carro parou em um local, digamos, ermo. Pensei que seria o fim. Baixei a cabeça e esperei a bala quente daquele 38 e sofri ao pensar na sujeira que faria naquele lindo Audi A4. Era muito lindo. Era preto!
O que dirigia olhou para o que me acompanhava no banco traseiro e disse:
-- Vamô levar o carro para o Nogueira.
Eu achei uma ótima idéia. Nogueira me pareceu nome de pai de família. Com certeza na mão de uma pessoa chamada Nogueira tudo acabaria bem. Terminaríamos os quatro, num Domingo à tarde, escutando pagode e comendo uma galinha à cabidela preparada pela mulher de Nogueira.
-- e ele ? perguntou o comparsa do banco de trás, empurrando o revolver no meu pescoço.
-- coloca na mala.
Péssima idéia. Para entrar na mala levei a Segunda coronhada. Agora na nuca. Não teve o mesmo sabor da primeira. Foi pior.
Apesar da forte dor na nuca, não pude deixar de notar a beleza e o espaço interno do porta mala do Audi. Aquilo sim é que era um porta malas. A idéia de morrer naquele carro já me confortava a alma. Aquele porta mala era a tumba ideal.
Depois de uns vinte minutos e alguns solavancos o carro parou. Ouvi vozes ao longe. Não dava pra escutar com perfeição, mas conseguir identificar algumas palavras: “Paraguai”, “fronteira”, “esquema”, “reais”. Eu esperava calmamente, era só o que podia fazer. Estava cansado de toda aquela epopéia. Parei de tentar ouvir a conversa. Acho que meia hora depois....
-- levanta seu fudido.
Ele me puxou pelo pescoço. O medo me proibiu de tentar identificar os marginais. Até aquele momento eu os diferenciava pela posição que ocupavam no veículo: Um ao volante o outro ao meu lado. Agora algum deles me apertava o pescoço, ao ponto de me cortar o couro, e me erguia para fora do porta malas.
-- agora tu vai morrer otário, pra deixar de ser liso.
Nada mais justo. Para um pobre liso a punição correta é a morte.
-- Entra ae.
A terceira coronhada foi quase igual a Segunda. Foi na nuca e me jogou em um porta malas. Neste ponto reside a grande diferença que me fez começar a rezar.
Pelo o que eu pude notar era o porta malas de um velho monza. Puta merda! Depois que eles fecharam a tampa eu quase gritei: “ Venham aqui seus filhos da puta e vejam a diferença.” Agora eu sabia que ia morrer. Estava onde sempre estive, na sarjeta, junto a ralé. Morreria onde merecia. No porta mala de um velho monza.
O carro começou a andar. E eu comecei a rezar. Nunca fui católico fervoroso, mas mamãe me obrigou a fazer primeira comunhão e eu me lembrava bem como rezava o Pai Nosso. Então rezei. Eu tinha tanta coisa pra ser perdoada que generalizei. Pedi perdão por tudo. Tinha pouco tempo de vida. Lembrei da Ave-maria, rezei. Lembrei do Santo Anjo, rezei. Se tivesse um terço em mãos....
Rezei o quanto pude. Tinha que tirar o atraso E continuei rezando quando o carro parou e eles abriram o porta mala.
-- Chegou tua hora merda. Disse um deles enquanto o outro me puxava pela camisa de seda italiana, que também era do meu cunhado, para fora do porta malas.
Pude notar que estávamos no em uma estrada de terra. Era uma madrugada sem lua e noite estava iluminada apenas pelos faróis do velho monza.
-- tira a roupa seu filho da puta.
Relutei em obedecer, morrer nu seria muita humilhação, sem dizer que eu não estava tão em forma assim para uma aparição sem roupa. Imaginei minha foto na folha de Pernambuco e os comentários das garotas: “Olha os pneus desse defunto. Shiii!”
-- Rápido!
Obedeci.
-- ajoelha. Tu vai morrer otário.
Não tinha mais forças nem meios pra reagir. O meu fim seria aquele mesmo, um fim melancólico como minha própria vida. Assassinado a beira de uma estrada de terra em algum lugar de desova de cadáveres, pelo simples fato de ser um pobre que quis se passar por rico, usando como meio a buceta da irmã.
Ajoelhei. Baixei a cabeça e novamente senti o frio do cano do revolver. Fechei os olhos.
Veio a quarta coronhada, novamente na nuca, seguida de um chute no rosto. Caí deitado na beira da estrada e pude ver os dois entrarem no carro e saírem lentamente, despreocupados.
Na saída conseguir ler um adesivo colado no para-choque traseiro do monza, onde estava escrito: “propriedade de JESUS.” Então pensei: “esses miseráveis ainda têm as costa quente.”




Paulo J. T. Lima
17/11/02














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