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Contos-->À sombra do Jatobá ´Prologo -- 23/08/2003 - 23:49 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
APRESENTAÇÃO
Assim como A Toutinegra do Moinho, As Pupilas do Senhor Reitor, A Morgadinha dos Canaviais e tantos outros trabalhos literários, foram apresentados em capítulos hebdomadários (até que enfim usei esta palavra!), em jornais, usarei o mesmo processo, agora utilizando os meios de comunicação mais modernos – a Internet. E que Deus me acuda.

À SOMBRA DO JATOBÁ

PRÓLOGO

- Miloca! Miloca!
- Sim, mãe...
- Manda chamar todo mundo que eu vou morrer.
Miloca, assustada, zonza de sono, atordoada com aquele despertar maluco, sentou-se na cama e procurou, com o braço estendido e a mão espalmada, a luz de cabeceira. A escuridão se foi e ela buscou, ansiosa, a cama visinha.
- O que mãinha disse?
- Está mouca das oiças, Miloca? Manda chamar todo mundo que eu vou morrer!
Miloca saltou da cama e foi junto de sua mãe, procurando algum sinal de mal estar ou piora naquela face enrugada, alguma contração de dor ou falta de ar. Enquanto a sua mão esquerda pousava na testa da velha, a direita procurava o seu pulso.
- Deixa de me apalpar, Miloca...- disse Delfina impaciente, tirando aquelas mãos nervosas de sobre o seu corpo – não tenho febre, não, e o coração ainda não parou...
- Então por que esta bobagem agora? Por que assustar os outros desse jeito? A senhora teve uma boa noite, e quando o sol chegar, vai se sentir muito bem. Não pense uma coisa dessas! Ontem o Dr Januário tirou a sua pressão, examinou-a com cuidado...
- Januário esta mais encarangado do que eu...
- Mas continua bom médico e afirma que a senhora está muito bem.
- Miloca, eu já menti alguma vez?
- Não, mas...
- Eu sou de fazer dengo?
- Também não...
- Pois se eu digo que vou morrer, é porque vou morrer! Trate de juntar todo mundo, que ro me despedir e dizer umas coisas! Não posso ir embora assim “morreu e pronto”; nada disso! Avise Manfredo, Tobias, Filó. Vadico - Delfina parou de falar, recolheu forças e continuou - Elvira...sim. Miloca. Mande chamar Elvira também.
- Mas mãinha, Elvira mora no Recife...
- Eu espero... Ela vem de avião; não morro antes dela chegar.
- Sabe de uma coisa, Dona Delfina – Miloca sorria, ao mesmo tempo em que fingia contrariedade – a senhora está é com saudade dos seus irmãos...
- Estou mesmo, minha filha. Estou mesmo, mas não é por isto que quero todo mundo aqui, não. É que eu vou morrer. Eu sou a mais velha, a primeira que morre... Sempre tomei conta deles... Quero dizer-lhes que quando a gente está preparada para a morte, ela chega como a visita de uma amiga, isto é, uma amiga que a gente nunca viu, mas mantêm correspondência...
- Sim, sei, e Padre Jesuíno com certeza é o correio.
- É mesmo – sorriu Delfina – é meu correio, meu estafeta e posta-restante.
- Como assim, mamãe?
- Ora – disse a velha com um riso brejeiro – se eu “restar” no Purgatório ele vai me reclamar ao Altíssimo!
- Mamãe, como a senhora pode brincar com um assunto tão sério? Como pode pensar em me deixar?
- Ninguém fica para semente, minha filha, e eu ando bem cansada deste corpo velho e enferrujado. Alem disso, Roberto está farto de esperar por mim... Sim, porque se existe Céu, Roberto está lá, de braços abertos, me esperando, e com ele a mamãe e o papai. Para o Céu ser bem Céu, estarão lá, e eu, ansiosa por encontrá-los.
Os olhos negros de Miloca encheram-se de lágrimas e ela disse, num murmúrio, carinhoso:
- Estarão sim, minha mãe, eu tenho certeza...
- Olha, manda avisar o Padre Jesuíno, também. Ele que vá se preparando para a minha extrema-unção e que se prepare direito, porque vou estar de olho nele.
- Moribunda e falante...
- É isso mesmo, enquanto me restam forças.
- Então guarde as forças para as despedidas, Dona Delfina.
- Não posso, tenho muitas coisas para dizer para você - Delfina parou de falar e relanceou os olhos pelo quarto e tornando-os para a filha, perguntou ansiosa – e meu vestido, Miloca, será que ainda me serve?
- Que vestido, mamãe?
- Não lhe falei, mais de mil vezes, que quando eu for para a cova quero ir com o meu vestido de folhas verdes?
- Está limpo e passado, pendurado no guarda-roupa, mas creio que está meio largo, agora – olhou, maliciosamente para a mãe e perguntou, para estimula-la – não acha bom a mãinha engordar um pouco?
- Miloca, não me quizila! – veio a resposta rápida – dentro do caixão as coisas se ajeitam e, pelo amor-de-Deus. Miloca, não se ponha de luto. Luto é um enfado! Quando seu pai morreu, eu fiquei de luto mais de dois anos, com medo de magoá-lo na sua memória. Que besteira! Luto a gente carrega no coração para a vida toda. Não se ponha de luto, Miloca, que o preto não lhe vai bem.
Os olhos miudinhos da mãe percorriam a face da filha e depois se fecharam, amofinados:
- Ora. Cá estou a comandar, como sempre! Mandei, mandei, e você a me obedecer a vida inteira! Por que, Miloca por que?
MiIoca sorriu docemente:
- Era divertido, Dona Delfina, na vida linda que tivemos, nas lutas que enfrentamos.
O pranto venho se assenhoreando, de mansinho, dos olhos de Miloca e sua cabeça grisalha inclinou-se sobre a cabeça completamente branca de Delfina. Suas mãos magras e fortes alisaram-lhe os cabelos.
Sem parecer se importar com a comoção da filha, Delfina perguntou:
- Por que você não se casou, Miloca, com o Mário?
- Ora, mãe, deixa de bobagem, deixa de bobagem. O Mário está morto e enterrado. Eu já estaria viúva há muito tempo – fez uma pausa e acrescentou – a senhora também não tornou a se casar, tão moça que era!
- - Mas eu tinha você, os meus irmãos, os meus pais, e este mundo de terra para cuidar. Não foi nada fácil!
- Não, não foi nada fácil, mas, cá pra nós, Dona Delfina, fizemos uma boa dupla, hein?
Delfina sorriu, orgulhosa:
- Fizemos mesmo, Miloca. Fizemos mesmo, e com tantos trancos e barrancos, você sabe de uma coisa? – seus olhos tornaram-se saudosos – eu começaria tudo de novo...
Com os lábios finos e apertados, o nariz levemente adunco e especialmente com aquele par de olhos expressivos, Delfina completou, com energia:
- Começaria, sim, com mais vigor!
- Credo, mãe!
- É sim, se eu vigiasse mais, não teria havido tantos desmandos.
- Será possível que hoje, mal rompeu a madrugada, a senhora resolveu me espezinhar? Fala de morte, de adeuses, se devo ou não por luto e agora mais essa, de se culpar? Estamos nós duas aqui discutindo, em vez de tirar um bom ronco, Vamos lá; vire para o canto e durma, aproveite o amanhecer, que é a melhor hora.
- - Não senhora! Não disfarce nem desconverse! Trate de por o Joaquim na estrada para dar os avisos. Não se esqueça do Padre e seus paramentos! E o caixão, Miloca, o caixão!
- Mãe, pelo amor de Deus...
- Pelo amor de Deus coisa nenhuma, são todos uns descansados e o Padre Jesuíno mora longe!
- Mas o Padre Romão...
- Não me fale neste calhorda, que não quis batizar o filho da Ana, porque ela era mãe solteira. Ele que fique com os bentinhos dele. É por isso que fico nervosa. Se o Romão vier no lugar do Jesuíno, eu morro coisa alguma e ainda digo umas boas para ele!
- Não fique assim preocupada. Eu aviso todo mundo, se acalme. Vou apenas esperar o dia clarear. Enquanto isso, que tal um chá, hein?
- Sim, é bom, mas antes de sair do quarto abra a janela, que eu quero ver o jatobá, quero ouvir a passarada.
Miloca levantou os ombros magros de sua mãe e manteve-os aprumados, com auxílio dos travesseiros; Deu um passo para trás e admirou aquela feição voluntariosa e séria, onde os olhos puxados luziam ainda, como duas brasas, mesmo tendo as pupilas esmaecidas pela velhice. A pele morena contrastava com a brancura dos lençóis.
- Vá, Miloca, não fique aí parada como dois de paus – ronquejou Delfina.
- Sim, mãe, deixe-me abrir a janela. Assim! Olha que belo dia vai rompendo! O jatobá se mexe todo com os passarinhos! A senhora pode pensar em partir com esta beleza de dia raiando?
- Vou, sim! Justamente assim! É preciso que não chova no dia do meu enterro, porque, do contrário, todo mundo larga o meu caixão no chão e vai dançar na chuva! Eu conheço a minha raça... Mas vá Miloca, ande.
Miloca tomou o roupão e vestiu-o, desanimada. Encaminhou-se para a porta, onde parou para ouvir novamente sua mãe:
- Diga pra o Joaquim passar na cadeia e avisar o Delegado e os meus meninos. Diga-lhes que morro pensando neles.
- Não se amofine! Vai ser feriado nacional no dia do seu enterro... Ninguém vai faltar. Até os pedintes e as mulheres da zona, que a senhora vive protegendo, vão querer segurar o seu caixão. Trate de conservar as forças e esperar a família toda e todos os amigos e dizer-lhes tudo o que a senhora vem preparando. Descanse agora, vou buscar o seu chá.
Lá fora o sol se levantava, alaranjando o céu, num amanhecer comum e lindo, como a maioria dos amanheceres nordestinos. Num surgir e ressurgir de belezas, parecendo coisa feita, para não se importar com as pessoas que sofrem, que se despedem do mundo. Ou talvez se importando, sim, em emoldurar com riqueza, quadros tristes e corriqueiros.
Delfina olhava em volta, reconhecendo os móveis rústicos, herança de família, e que se delineavam na penumbra. O oratório – quantos terços foram ali rezados por sua mãe, pela felicidade da família – o enorme guarda-roupa de jacarandá, a cômoda com seu tampo de mármore escuro, a cadeira de balanço, o baú de couro.
Ansiosa, buscou a figura imponente do jatobá, a alguns metros de sua janela. Os ruídos da fazenda, como todas as manhãs, lhe chegavam: o mugir das vacas na ordenha, os chamamentos dos bezerros, o cantar dos galos. Nada de novo. Tudo absolutamente comum, sem novidades, apenas ela se despedia. Amanhã ou depois, já não estaria na sua terra, em sua casa e, no entanto, nada se modificaria, nada sairia da rotina.
Passou a sentir saudades da juventude e um leve sorriso veio iluminar seu rosto.Seus lábios murmuraram
- Adeus, jatobá, meu irmão. É a nossa despedida. Eu vou partir e você fica aí, com seus pássaros, seu tempo de sol e de chuva, suas floradas e frutos. Deposito as armas... Mas vou de cabeça erguida, jatobá, também não entreguei a rapadura... Vou porque chegou a minha hora e não quero se peso ou amolação. Vou me retirar da peleja, mas se você me desse um pouco da sua seiva, eu me levantaria desta cama e começaria tudo de novo.

SEGUE NA PRÓXIMA SEMANA
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