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Contos-->À Sombra do Jatobá I -- 28/08/2003 - 10:02 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá – I

DELFINA

A escola pública Martins Soares Moreno defrontava-se com o mosteiro São Francisco das Chagas, no centro do quarteirão da rua da Matriz. Rua sombreada por altos tamarindeiros e pavimentada de pedras irregulares. Quase sempre vazia e silenciosa, enchia-se de gritos e alegrias na hora da saída da escola. A algazarra dos colegiais competia, ao entardecer, com a zoada dos passarinhos que se recolhiam nas frondosas árvores.
Naquela tarde, véspera de um longo feriado, Delfina apontava um lápis em cima da cesta junto à mesa de D. Laurinda e pensava: “Não devia existir “véspera” de feriado. Devia ser feriado também, e pronto”. Sabia que em sua casa, sua mãe arrumava as malas e cestas para seguirem para a fazenda. Ouviu a voz enérgica da professora:
- Preste atenção no que está fazendo, menina! Vai cortar o dedo.
Sorrindo, meio encabulada, ela perguntou:
- Falta muito para bater o sino?
A professora respondeu, também enfarada:
- Falta sim senhora, e eu ainda vou passar os deveres de casa. Vocês vão ter cinco – abriu a mão para classe e repetiu – cinco dias de folga! Eu quero que tragam os trabalhos todos e bem feitos.
Delfina suspirou desconsolada e voltou para o seu lugar. Tarefa de casa... Que maçada! Ter que parar com as brincadeiras com os irmãos e os filhos dos colonos e escrever, escrever. Sabia o quanto ia penar. E o tempo que não passava? Um dia como este era para a gente já estar livre, correndo pelo mangueiral ou tomando banho no açude.
Sentiu o cheiro da cana sendo moída no engenho; lembrou que ia participar da farinhada e, de noite, ouvir histórias que sua mãe lhes contava, enquanto comiam pipocas quentinhas.
Quando, depois das aulas, saiu correndo para casa, nunca o caminho lhe havia parecido tão longo. Já encontrou a mãe e os irmãos prontos esperando por ela. Agora só faltava o pai chegar com a caminhonete.
Sua mãe, Dalva, sonhava retornar definitivamente para a fazenda, que lhe trazia gostosas recordações. Sua casa guardava, em suas grossas paredes de taipa, toda uma vida de lutas e conquistas com a qual ela se habituára através de fatos e lendas contadas por seus pais e que, por sua vez transmitia aos filhos.
A luta dos seus ancestrais contra os índios ia sendo acrescidas de heroísmos e sacrifícios nas calmas noites do casarão.
Dalva, pequena e delicada, gostava de relembra-las. As lendas surgiam adoçadas na sua voz e as índias tornavam-se morenas bonitas, os índios valentes guerreiros e, os brancos portugueses, assumiam feições heróicas para preservar as terras conquistadas. Entre eles, na imaginação de Dalva, havia verdadeiros duelos entre cavalheiros, nos quais as plumas dos chapéus civilizados misturavam-se com as penas coloridas dos cocares.
Não lhes contava das secas nem da febre paratífica que lhe levara dois de seus irmãos, nem tão pouco dos bois carneados, que os vaqueiros de seu pai encontravam os ossos espalhados pela fazenda, beirando a estrada. O roubo do gado nestas épocas de flagelo era assustador. Suas recordações pulavam, passavam por cima do sofrimento das tragédias e prendiam-se às fábulas e belas lendas.
Do vasto império, conquistado por seus bisavós, nobres portugueses, e que se foi diluindo nas mãos menos hábeis de seus descendentes, muitos deles estróinas e jogadores, restou para Dalva como parte de herança, também dividida entre seus irmãos, a fazenda Esperança com a casa onde havia nascido.
Dalva fazia com que os filhos tomassem conhecimento de suas origens e que se orgulhassem de seus antepassados e do sangue nobre que lhes corria nas veias – coisa que seu marido Otávio desenhava, como filho que era de simples vaqueiro dos sertões de Inhamús, Os dois haviam se conhecido quando Otávio viera representando o pai para a compra de gado leiteiro da fazenda Esperança. Rindo, ele costumava interrompe-la:
- Conta só por alto a nossa origem Dalva, se não você vai parar no mato de arco e flecha ou na senzala...
Dalva disfarçando seus desencantos fingia que não escutava.
A casa da fazenda situava-se num outeiro e seu lado direito era sombreado por um vigoroso jatobá. Simples na sua arquitetura colonial e por ter sido construída em terreno inclinado, possuía dois planos. No primeiro apenas a varanda e dois salões que se uniam na de entrada e de onde partia uma espaçosa escada de madeira. No segundo plano, a sala de jantar, a ampla cozinha, os inúmeros quartos que se ligavam por um largo corredor e, no fim deste, o banheiro.
Do janelões descortinava-se uma bela vista: de um lado a curva do rio Curú enfeitada pelas carnaubeiras e as terras boas para lavoura; do outro lado o algodoal a perder de vista e mais para o norte, o descampado e a caatinga, onde o gado era criado solto. Fechando a paisagem a azulada serra do Baturité.
Os três primeiros filhos de Dalva e Otavio – Delfina, Manfredo e Filó – haviam nascido na fazenda. Quando chegaram a idade escolar a família mudou-se para a casa da cidade aonde vieram nascer: Tobias, Vadico e Elvira.
Da cidade para a fazenda, nos feriados e férias, os Costa Lagedo levavam a sua vida, com exceção de Otavio que a ela se dedicava totalmente e tinha orgulho de suas vacas Turinas, de raça holandesa. Era o melhor gado leiteiro da região.
Dalva, cuja vida na cidade consistia em supervisionar os estudos dos filhos e os trabalhos da cunhãs, engrandecia-se ao pisar os salões da velha casa. Gostava de percorrer suas dependências alisando os antigos móveis de jacarandá, os baús de couro e admirando os retratos de seus avós, encarreirados pelas paredes. Sentia-se feliz ao entrar na capela, construída junto ao açude, e espalhar no altar e sob as imagens, suas toalhas brancas, de renda de bilro que tecia pacientemente quando na cidade esperava o tempo passar.
Para conservar a tradição havia balizado os filhos na pequena capela onde, também como seus irmãos, havia recebido o batismo.
A pequena fazendeira vivia de recordações. Nada a atingia, nem o gênio espalhafatoso e os desmandos do marido, nem as birras e estripulias das crianças ou as escaramuças das cunhãs.
Ao contrariar a sua família, casando-se com um ‘simples vaqueiro’, como dizia sua mãe, Dalva havia renunciado a sua sociedade por se sentir desprezada por ela. Fixou residência na fazenda, onde passou a viver recolhida, enquanto seu marido, perfeitamente adaptado ao ambiente, deu largas à sua atividade, feliz com a própria liberdade. Havia enfrentado todos os preconceitos por saber-se amada por aquele homem que a tratava como uma criança.
Nas épocas de férias a imensa mesa da sala de jantar enchia-se de bolos, mungunzás, tapiocas, assados, feijão verde, queijo de qualho e tantos outros varados pratos. Comia-se à vontade, com liberdade e alegria, mas quando Otavio estava presente à cabeceira da mesa, sua figura avantajada - um metro e oitenta e cinco de altura e 120 quilos de músculos bem desenvolvidos nas lides da fazenda - impunha respeito. As sobrancelhas, negras e fartas, quando franzidas era o sinal de alerta para a meninada. Se o pai estava por perto usavam o freio nas expressões e reprimiam o riso. Dalva aproveitava então para dar aulas de boas maneiras, respaldadas pela presença do marido, mas, se ele dissesse algo de engraçado – o que lhe era comum - davam vazão à alegria em sonoras gargalhadas. Notando o desagrado da esposa, Otavio comandava: “Agora chega!” E punha um ponto final na folia e o “comam!”, fazia pender suas cabeças e trabalhar em silêncio com os queixos.
Dalva, absolutamente sem autoridade, usava o aspecto severo do marido como escudo. Bastava que dissesse: ”Olha que eu conto ao seu pai”. Para ser obedecida sem demora. Otavio impunha respeito e temor, mas não era bom exemplo a ser seguido. Enchia demasiadamente a boca e comia com voracidade, resfolegando e até gemendo quando o prato era do seu agrado. Os olhos de Dalva reprovavam os seus modos e, para compensar o triste espetáculo, comia vagarosamente, levando o garfo à boca com pequenos bocados e mastigava silenciosamente.
Otavio, sempre avesso aos requintes da mulher e seus adorados brasões, sentia prazer em espicaça-la, exibindo modos bem mais chulos dos que possuía. Dalva não se dava por achada e, no seu jeito pacífico, fazia vistas grossas para os trejeitos do marido, mas ficava de olho nas maneiras dos filhos.
Delfina, - a mais velha – no entanto, não tinha jeito. Desafiava tanto a mãe como o pai. Atrevida, mandona, briguenta, agia sempre com tal ímpeto que Otavio a chamava de “Capitão-mor”, e freqüentemente acabava por perder a tramontana e aplicava-lhe boas palmadas nos fundos. Não raro tinha que interromper brigas da filha com os irmãos ou filhos dos colonos. Pegava a menina pela cintura, punha-a debaixo do seu braço e caminhava para dentro de casa, enquanto os braços e as pernas da ferinha se agitavam no ar. Escoiceando e esmurrando o vento ela gritava:
- Me larga pai! Eu quero arrebentar a cara dele! Me larga pai!
- Calma menina! Olha que você apanha! Olha! Olha! – e a mão morena e maciça de Otavio levantava-se ameaçadora para logo, cansado da luta e exasperado com a filha, acertar-lhe umas palmadas.
Os olhos em chispas, esfregando a bunda, Delfina se soltava e trancava-se em seu quarto, mas sua raivas eram passageiras como as chuvas nordestinas. Daí a pouco estava novamente correndo e botando fogo nas estripulias dos irmãos.
Numa tarde Otavio interrompeu os negócios que tratava com outro fazendeiro ao ouvir a zoada de briga no terreiro. Correu para lá e deu com Delfina grudada na carapinha de um negrinho e rolando com ele na areia. As outras crianças gritavam e torciam: numa balbúrdia tremenda.
Otavio meteu-se na briga e foi-lhe difícil desdar o nó de pernas e braços que se revolviam no chão. A custo levantou a filha no ar e levou-a, como sempre, esperneando e imprecando, para dentro de casa. Ao pô-la no chão ouviu-a vociferar, com a cara imunda e a saia despencando:
- Eu odeio a princesa Isabel! Por que aquela diaba tinha que libertar ele, hein? Eu queria botar o Zé no pelourinho e dar uma pisa nele! Ah, eu de chicote na mão, ele ia ver só!
Delfina no segundo ano primário, mal começava a estudar História e já era do contra.
Contendo o riso Otavio apelou:
- Delfina, você está tão suja e desmantelada que nem dá para eu falar com você agora. Vá tomar banho, esfriar essa cabeça e logo depois vamos falar sério. Ora bolas, que tem a princesa Isabel que ver com uma briga de crianças?
Fungando, bufando de raiva, a menina saiu dizendo:
- Eu não fui mesmo com a cara dela no livro! Não fui mesmo!
De certos atrevimentos dela Otavio gostava, quando, por exemplo, a menina metia a mão sob a sua camisa e coçava-lhe as costas. Este hábito ela arranjara quando viu o pai encostar-se no batente da porta e se esfregar na quina de madeira. Delfina correu acudi-lo:
- Que coceira danada, hein, pai? Senta aqui, não fica aí se coçando e se esfregando que nem boi nas cercas, não. Deixa que eu coço.
Ou quando Otavio chegava cansado em casa, Delfina tirava-lhe as botas e referia-se aos seus dedos doloridos:
- Solta essa cambada, pai. Que alívio, hein?
Orientar Delfina era como orientar as rajadas do vento. Desde pequena andava a cavalo em pelo, apenas com o bridão para conduzi-lo, e metia-se na caatinga e voltava lanhada ou ia, de montaria e tudo, para dentro do açude. As mãos de Otavio viviam quentes. Quando as vezes, desanimado, ele se lamentava à Dalva, esta suspirava e jogava-lhe a culpa:
- Quem puxa ao pai não degenera...


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