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Cronicas-->Milagre -- 14/02/2003 - 18:28 (Luis da Silva Araujo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Milagre



 
Milagre, milagre! - dizia aquele amigo meu, num sussurro, quase de si para si.
- Milagre... só pode ser.
- Aproximei-me de manso para não tirá-lo do transe - pois parecia que ele estava num. Parei perto e continuei a ouvi-lo repetir a palavra, o paradoxo, até que, tocando-lhe, primeiro com as pontas dos dedos, depois encostando-lhe a mão, perguntei:
- Milagre? Que é milagre?
Ele, estranho, levantou os olhos - pois até então estava em posição de meditação -, abriu-os lentamente, pó-los em mim dizendo:
- E não é?
- Não é, o quê?
- Não é milagre?
- E eu sei?
- Mas é...
- Não sei do que está falando...
- Mas é...
- Então, desembuche.
- Pois - começou -, transformar água em vinho é o quê?
- E tem jeito? - respondi com outra pergunta.
- E multiplicar pão?...
- pão? - interrompi sem esconder a minha própria fome.
- Um pão...
- Que pão? - e a barriga roncava...
- Um peixe - continuou.
- Tem peixe também?
- Claro, cê não sabe? Santa ignorància!
- Mas que pão, que peixe?
Parei uns instantes a meditar, até que ponderei:
- Mas... se o negócio é da Bíblia, diabos, não era um pão, nem era um peixe.
- Não era? - perguntou assustado.
- Não.
- Também, não interessa - respondeu já recomposto - pois qualquer número era muito pouco para um multidão. Concordei.
- E até sobrou.. sobrou muito, não foi? - perguntou.
- É... dizem que foi, não cheguei a ver...
- E não é milagre?
- ...
- E tem o caso do bolo, esse mais recente, todo o mundo viu, todo o mundo mesmo.
- Que bolo? - perguntei mais esfomeado.
- O do milagre, animal - respondeu enfurecido. Cê não sabe nada.
Realmente, eu sabia, só não queria lembrar. Afinal, pra quê?
- E como cê sabe, ou deveria saber - disse o meu amigo, já incrédulo quanto aos meus conhecimentos. Como cê sabe, milagre é coisa que não se explica, que a ciência não explica, não é?
- E é? - perguntei assustado.
- É. E agora, nos nossos dias, também acontecem milagres, quer ver?
- Quero...
- Não é coisa que não se explica? - filosofou dentro da pergunta. Então, como se explica que, inaugurando uma grande usina, a luz aumente todo o mês: que construindo milhares de casas, seu preço sobe milhares de vezes de meio em meio, ou de um em um ano; que o leão consiga engolir mais e sempre mais com a mesma barriga; que se pague iluminação pública sem ter luz na rua; que noticiando todos os dias que se descobre mais petróleo - e muito -, a gasolina sobe feito pipa no mês da agosto; que gastando sessenta dias, por exemplo, para asfaltar uma rua, a rua gasta pouco mais de uma semana, ou de uma chuva para gastar-se e mostrar as crateras; que...
- Pára! - gritei.
- Não paro. E tem mais, o que é pior...
- Pior? - perguntei roendo de fome.
- É. Tudo isso é ou não é milagre? Alguém explica?
- Milagre?
- É. A ciência explica?
- Não.
- Ninguém explica. E não explica, sabe por que - perguntou e continuou sem que eu respondesse. É porque aqui ninguém pensa, só ouve, só obedece, só...
Olhou-me fixamente e disse num grito:
- É, ou não é? Alguém explica? Não. Ninguém!
- Mas a gasolina tava muito barata, por isso ia subir, não foi isso que disse o ministro? - perguntei, querendo explicar.
- Foi. Mas não disseram, ainda outro dia, que não iam pagar dívida à custa do sufoco (leia-se miséria) do povo?
- Disseram.
- Então, não se explica, e não se explicando, é milagre.
- Não é - respondi temeroso.
- Não?
- Não. Quem falou isso, morreu.
- Ah... e cê acreditou?
- Acreditei... quanto ao mais, isso não é milagre.
- Então, o que é?
- É rotina, acontece todo o dia... o povo até gosta... já tá acostumado; quando não acontece assim, o povo cobra.
- Rotina?
- É. Amanhã vai acontecer de novo, e será pior.
Meu amigo deixou cair a cabeça. Enquanto eu me afastava, pude ouvir, ainda, o seu último sussurro:
- Amanhã... amanhã... então não é milagre... tá na cara, não podia mesmo ser; é resultado de crendice, mas que é obra do próprio capeta, disso não tenho dúvidas...
Indalus


Campo Grande-MS, 27.11.85 - 08:05




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