Inocência
A fila era enorme, e cada vez chegava mais gente. O trabalho era lento, mal feito, e os documentos dobravam-se, orelhavam-se, e eu ficava me perguntando em que condições seria recebido o último Título.
Era João Maria, João Maria José, João das Dores, José da Silva, João Jota...
- O nome? - perguntou o atendente.
- O meu? - foi a resposta do caipira, após olhar em volta como procurasse alguém que se manifestasse à pergunta.
- Sim, do senhor...
- O meu é João José, e o do sinhó?
O atendente não ouviu, ou se fez de surdo, e, se respondeu, o caipira não ouviu.
- Num gosto das pessoa da cidade, é tudo uns marcriado - pensou.
O funcionário passou a procurar o nome na listagem já orelhada, mais por falta de cuidado do que pelo manuseio.
A fila crescia. Os fumantes fumavam, os outros tossiam e resmungavam. Xingavam baixinho o funcionário, chamavam-no de incompetente, pichavam o governo; onde já se viu, colocar incompetentes para o atendimento de entrega dos Títulos, coisa tão importante?!...
- O governo gosta mesmo de brincar com o povão - disse um.
- Não tem um pingo de respeito para com o contribuinte - outro.
- Pois é. Pensa que não temos nada para fazer - falou um terceiro.
- Do jeito que a coisa vai, vamos ficar aqui o dia todo - vociferou mais outro, olhos fitos nos seios de uma funcionária quase a saltarem do decote.
- É tortura - confidenciou um, tocando, maliciosamente, os ombros de outro que olhou.
- Não guento - falou o outro.
- Ninguém guenta - disse eu.
- Eu, por mim, fico aqui o dia todo - falou um com cara de desocupado.
Todos o olharam com reprovação, e ele, mirando os seios, fez um beiço.
- Também... - falou outro.
- Até eu - disse um de chinelos.
- E o cara não achou o nome do sujeito até agora... ah! lá vem ele...
- Como é mesmo o nome do senhor? - o funcionário voltou a perguntar ao homem da fila.
- Aahh! - gritaram todos num muxoxo de reprovação.
- É um analfa mesmo - gritou um.
- E surdo - disse outro.
- O meu? - perguntou João José, humildemente.
- ... o do senhor.
- João José.
O funcionário voltou, remexeu as pastas, os arquivos, revirou novamente a listagem.
- Já faz meia hora que esse cara tá procurando - falou um de terno.
- Vou reclamar - disse uma mulher.
- Isso não pode - outra.
- É nisso que dá, trazer funcionários de outras repartições que não estão bem lá, para fazerem esse serviço, é nisso que dá! - exclamou outra com indignação.
- Tenho de fazer almoço...
- E eu, dar de mamá...
O funcionário voltou ao balcão aborrecido, chateado, e perguntou a João José:
- O senhor tem certeza de que fez o recadastramento?
- Reca... o quê?
- ... dastramento.
- E percisava?
Indalus
Campo Grande-MS, 16.12.87 - 19:30
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