Usina de Letras
Usina de Letras
122 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62240 )

Cartas ( 21334)

Contos (13265)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10368)

Erótico (13570)

Frases (50639)

Humor (20031)

Infantil (5436)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140810)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6194)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->À Sombra do Jatobá V´- O pedido de casamento de Delfina -- 03/09/2003 - 18:51 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
<> À Sombra do Jatobá V – Pedido de casamento de Delfina

Padre Jesuíno, moço de pequena estatura, de feições magras e irregulares, mas de uma atividade e energia fora do comum, tinha em Delfina uma excelente auxiliar, no atendimento à sua paróquia. Nas épocas das secas, Ribeira do Curú fervilhava de refugiados, como todas as cidades nordestinas.

Foi numa época de grande estiagem que o padre conseguiu que um seu amigo, médico recém formado na Bahia, viesse ajudá-lo. Foi um período difícil e de grande trabalheira, que juntou os três amigos: padre Jesuíno, Delfina e Dr. Januário.

Quando o flagelo da seca se alastrava pelo sertão, a fome e a miséria expulsavam seus moradores e os mandavam, pelas poeirentas estradas, rumo à Ribeira do Curú. Os capuchinhos do mosteiro e os três amigos estavam a postos para recebê-los e aliviar seus sofrimentos.

Dr Januário, alto, ruivo e sardento, que tanto tinha de feiúra como de simpatia e correção, levado pelo entusiasmo de jovem profissional e pelo sentimento de solidariedade, logo demonstrou a sua capacidade de trabalho e o seu destemor, ao enfrentar a terrível epidemia que se alastrou entre os retirantes.

Haviam improvisado abrigos nas cercanias da cidade. Ribeira viu-se assolada por bandos e bandos de doentes, mal nutridos, que lá chegavam a pé ou em lombo de jegues. Muitos morriam pelos caminhos. Ao chegarem na cidade, começavam o tratamento da febre tífica, com rigorosos banhos e assepsia intestinal com a ajuda dos salinos e calomelanos. O médico usava vomitórios, purgativos e suadores de jaborandí. O mal se prolongava por mais de trinta dias.

Quando Dr Januário já não sabia o que fazer, lançava mão dos seus próprios recursos, suas intuições. Naquele ajuntamento de prantos e gemidos, poucos escapavam da morte.

Entre as camas, os leitos improvisados, as redes, os três amigos se alternavam, durante horas intermináveis; percorriam os abarracamentos e Delfina, tão jovem ainda, muitas vezes se sentia desfalecer, sufocada pelo hálito dos doentes e pelo cheiro nauseabundo daquele povo que se esvaia em vômitos e fezes. Ali, sujeita ao contágio, a moça dava tudo de si e exortava os outros à luta, à exterminação do mal.

Quando, após meses de sacrifício, de noites em claro e exaustão, o surto passou, deixando atrás de si um amontoado de cruzes e famílias desfalcadas, um forte sentimento de admiração e respeito unia os três jovens.

Para Januário, a admiração por Delfina havia se transformado em um amor sofrido, calado, levado pela sua natural timidez. O médico, idealista, via em Delfina a companheira disposta a arregaçar as mangas e a seguí-lo em seu trabalho, mas... o gênio violento da moça, o seu modo desabrido em falar, mantinha-o à distância. Delfina não tinha tempo para lhe dar atenção. Sempre envolvida com os problemas da família, com os desmandos e ignorância do pai – que tanto a atingiam -, assim como as suas obrigações na paróquia, não percebia a sua angústia. Na verdade, ela o inibia.

Depois de alguns meses de tentativas, que passavam totalmente despercebidas pela moça, Januário resolveu pedir ajuda ao seu amigo padre, e o fez com uma queixa profunda:

- Ela não liga para mim, Jesuíno! Eu já desisti de tentativas! Preciso que você fale com ela...

Meio brincalhão Jesuíno respondeu:

- Sim, eu chego para ela e digo: Delfina, namore este meu amigo, que é boa gente... Está bem assim?

- Brinque não, Jesuíno, que a coisa é séria! Olha que eu já tenho encontrado moças que se fazem de difíceis, mas, como Delfina, nunca vi.

- A diferença está no verbo, retrucou o padre, orgulhoso de sua amiga – ela “não se faz” de difícil, ela “é” difícil, mesmo sem saber. Mas vá tentando, Januário... um dia... quem sabe?

Januário balançou a cabeça:

- Não, Jesuíno, eu já desisti. Eu gostaria que você a pedisse em casamento para mim... isto é... que me abrisse as portas para que eu falasse com ela seriamente. Ela manda em mim e não me vê, como pode ser isto?

Padre Jesuíno conteve o riso e respondeu, consolador:

- Bem, se ela continua “mandando” em você, é bom sinal. Quando Delfina não gosta de alguém, ela simplesmente o despreza, não lhe dá ordens. Eu já reparei que “mandar” para ela é proteger, encaminhar, tomar sob os seus cuidados, mesmo que os comandados se rebelem. Com a sua família, seus empregados, seus amigos mais íntimos, e com este padre aqui. Você a conhece a poucos meses... imagine o quanto já mandou em mim, seu amigo de infância...

- Mas então você precisa me ajudar! Você que a conhece tão bem deve saber escolher a hora.

Padre pensou, pensou, e respondeu:

- Está bem, com Delfina não se pode escolher muito a hora, não. Nós temos que pegá-la de surpresa.

Januário não gostou da idéia:

- Garante, Jesuíno? Não seria melhor preparar o terreno?

- De que modo? Pois você mesmo não disse que ela não lhe dá tempo de convidá-la para um passeio, sequer? Deixa comigo. Eu vou tentar.

E Delfina foi pedida em casamento.

Os três, depois de exaustivas programações e trabalheiras, encontraram-se na sacristia e o padre começou a falar:

- Delfina, sente-se um pouco e vamos conversar. Nós precisamos falar com você assuntos importantes – em seguida olhou para Januário, que se fez rubro -. O vermelhão começou a subir pelo seu pescoço, espalhou-se pelo seu rosto e deu um brilho de ferrugem às suas sardas. Assustado, porque sabia qual seria o assunto, ficou nervoso; seus pequenos olhos azuis começaram a rolar, incertos, procurando um ponto onde se firmar e fugir do constrangimento.

Que momento mais errado o amigo escolhera, para tocar no coração de Delfina! Dona do seu nariz e de seus atos, desconfiada, já botou – Januário percebeu – o pé atrás.

Ali, nervosos, buscando as palavras certas, o padre e o médico pareciam encostá-la á parede. Cansada, deixou que falassem, ou melhor, que o padre falasse, que desse início ao assunto. O seu mutismo incentivou os argumentos de Jesuíno e trouxe esperanças a Januário.

Jesuíno começou por elogiar o caráter do amigo, na sua vida de dedicação á profissão, no seu desprendimento de atender a todos, como Delfina bem sabia. Para terminar o discurso, acrescentou, com entusiasmo:

- Delfina, vocês foram talhados um para o outro! Será que não poderiam planejar um futuro em que caminhassem juntos, unidos pelos laços do matrimônio?

Para a personalidade independente de Delfina, seria favorável um pretendente atirado, meio romântico, que lhe oferecesse o oposto da sua vida crua, ou que lhe impusesse uma autoridade que suplantasse a sua,

Um silêncio pesado envolveu os três. O padre ansioso pela resposta; o médico, encabulado com a longa exposição do amigo e com as palavras tão rebuscadas com que fizera o discurso, já esperava um “não” desconcertante.

Delfina, danada da vida, não sabia como se libertar daquela situação. A convivência diária com Januário, a sua maneira correta e metódica em atender os pacientes, despertavam-lhe a confiança no profissional, mas definia-o como um pretendente muito sem graça, sem expressão. Por que Januário usaria o padre para interceder por ele? Naturalmente porque já desconfiava qual seria a sua resposta. E como dá-la, clara e definitiva, sem magoá-lo?

Continuava calada. De repente, foi se conscientizando da situação quase ridícula em que se encontrava: desalinhada, precisando de um bom banho e sendo pedida em casamento em uma sacristia! A sensação de estar sendo requisitada, como um objeto útil, foi tomando conta do seu raciocínio, como que descobrisse uma combinação entre o médico e o padre, na escolha de uma auxiliar para os dois. Em sentir a pressão e explodir, Delfina não demorou muito:

- Francamente, vocês dois! Estou cansada, amarfanhada, sentindo-me horrível, e vocês me vêm com um assunto desse? Pensam que é fácil dar um sim ou um não, sobre uma questão que vai modificar minha vida? Vocês estão brincando comigo? – furiosa, encarou o padre – E muito me admira você, Jesuíno, se prestar a este papel! Aqui não cabe nem a caridade nem a religião! O assunto diz respeito a duas pessoas apenas. Não recebo recados nem estou no mercado! – arrematou com raiva.

Os dois moços ficaram nervosos, cheios de mas, mas... e não é bem isso... por fim, Januário falou:

- Não culpe o Jesuíno, por favor! Ele quis me ajudar...

Foi interrompido pela voz áspera da moça:

- Com o senhor eu não falo! – e voltando-se para o padre, que balançava a cabeça, desanimado e confuso – Diga a este seu amigo que ele já está bem grandinho para tomar sozinho suas decisões. E quanto ao senhor – Jesuíno tremeu – vá cuidar da sua vida e de seus paroquianos! A minha, eu decido, e só sei decidí-la livre de pressões!

Tomando fôlego, concluiu para si própria, enquanto se levantava e pegava sua bolsa sobre a mesa:

- Ora esta é boa! Será que não mereço um momento especial, para ser pedida em casamento?

Caminhou pisando duro até a porta, onde se voltou e, fuzilando os dois desconcertados amigos, estourou:

- Droga!



Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui