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Contos-->Irrealidade -- 27/01/2000 - 18:00 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A primeira impressão que teve foi de um frio intenso. Como se um ar gelado e uma sensação além de refrescante passasse por todo o seu corpo, de uma só vez, desde seu dedo mínimo do pé até o seu último fio de cabelo. Sentiu o frio, o gelo, pelos olhos, pelos lábios, pelos dentes, pelas unhas, pelas sobrancelhas, sentiu tudo aquilo de uma só vez, de um pulo só. Era como mergulhar na mais profunda e fria água do ártico, mas ainda assim poder manter a consciência, pensar, desfrutar, até gostar daquilo. Era sentir frio sem congelar. Como sair de uma sauna muito quente, ou mesmo de dentro de um poderoso vulcão e ser jogado dentro de uma câmara criogênica, que serve para congelar embriões.
E ficou apenas lá, pelo que pensou serem horas, sem arriscar um movimento sequer, apenas sentindo o gelado, a onda imensa de falta, e quase ausência de calor inundar suas veias e artérias, atingir seu sangue, suas células. Não conseguia raciocinar direito a respeito daquilo. Havia se esquecido de tudo. Era como se serpentes azuis rasgassem seu peito, atravessassem seus pulmões, e bloqueassem sua respiração, de tão frio que estava seu corpo. Imaginou-se, pela primeira vez, tomando um grande choque, e pensou em seu corpo sendo esquecido no espaço, como às vezes faziam com alguns defuntos, em alguns planetas cujo principal problema era a super população. Mas não era aquilo. Não era o espaço. Era como se tivessem enfiado no seu coração uma enorme agulha prateada e brilhante e tivessem drenado tudo que havia de calor ali dentro. Todo o sangue, todos os sentimentos, todas as lágrimas. Tudo. Só restava o pensamento.
Mesmo assim, ele conseguiu suportar. Não era um frio comum. Não doía, não machucava, não queimava, tampouco congelava. Era apenas frio. Uma sensação ainda mais gostosa. Deliciosa, até. Quase um êxtase, diferente de tudo o que já havia experimentado, incluindo os mais variados tipos de drogas, estimulantes tecnológicos, naturais, afrodisíacos, ondas, cristais, sexo. Não que fosse melhor, mas era algo completamente diferente. Um frio pulsante, que atingia seu cérebro sem dó, como se quisesse invadir seu corpo, purificando-o, livrando-o de todo e qualquer tipo de male. Foi fascinante, e ele começou também a pensar que aquilo havia valido a pena, mesmo que não se lembrasse nem um pouco do porque e como estava ali.
Depois, abriu os olhos. Recuperou com completa plenitude a consciência. Abriu de repente, e tudo voltou a si. Tomou um grande choque. Como se, de uma hora para outra, alguém o tivesse acordado com um soco na cara de um sono profundo e distante. Não tomou susto, mas abriu os olhos como se tivesse tomado. Abriu e pôde ver que estava ali, que existia, que não havia morrido, que podia pensar. “Penso, logo existo”, imaginou, sorrindo um pouco com tudo aquilo. Tentou então certificar-se de que realmente estava vivo, e de que existia, tateando seu próprio corpo, com movimentos leves, quase em câmera lenta, sorrindo com a sensação agradável e excitante que dava tocar em sua própria pele. Ficou lá, horas a fio, apenas se tocando, perdendo tempo, jogando-o fora, tentando matá-lo aos montes, sem pensar, e sem ainda conseguir recuperar-se. Sentiu muitas sensações estranhas enquanto fazia aquilo. Viu imagens em tons fosforecentes de rosa choque, indo e voltando, junto com um verde pesado e grave, montando uma abstração psicodélica em sua mente, alucinando-o, fazendo-o sentir-se ainda mais fora do mundo, mais louco, mais irreal. Sentiu-se abrindo um sorriso que ia além das proporções humanas. Um sorriso que nunca acabava de abrir, mostrando sempre uma série de infinitos dente, grandes, pequenos, todos muito brancos, brilhantes, quase ofuscantes. Sentiu também o coração, batendo quase na velocidade da luz, querendo explodir dentro de si, sabendo que o corpo poderia conter uma grande implosão, e que nada seria mudado, sem um coração. Imaginou então que jamais havia sentido algo de forma alguma parecido com aquilo. Que jamais viria a sentir novamente. Que aquilo ia além de qualquer droga que já tivesse experimentado. Pensou em como aquilo era diferente, como aquilo parecia um sonho distante mas ainda assim real. Pensou se aquilo era realmente físico, se podia realmente sentir aquelas coisas todas, que, se não era exatamente boas, eram diferentes, muito distantes do mundo, dos cheiros, dos sabores, das imagens. Era como um outro sentido, que reunisse todos juntos, de uma só vez, causando uma rebelião em seu metabolismo, como se tudo entrasse em parafuso, todos os órgãos misturados dentro de um gigantesco liqüidificador e misturasse todas as polpas de todas as frutas, revelando um líqüido que ia além de vermelho, além do rubro, além do vinho. Sua respiração ficou mais que ofegante, pediu ajuda, e acordou novamente.
Desta vez, não quis tocar seu corpo. Resolveu apenas examinar o exterior, ver onde estava, sem deixar se enganar por aquelas sensações desconhecidas e, portanto, perigosas. Olhou ao redor. O frio continuava, mas ele nem percebia. Já não lhe causava a mesma coisa. Foi como se de repente tudo tivesse se apagado de sua mente, jogando-o violentamente pra fora daquilo. Como se tivesse sido expulso. E ele sabia que não voltaria. Olhou ao redor. Tudo o que via era uma espécie de azul, oscilando no prateado, brilhante, como um mar multimídia. Se mexia, e o azul se transformava em pequenos cubículos, sempre se mexendo, sempre ficando menores, ocupando menos espaço. Milhões, bilhões, trilhões de cubinhos se dobrando e diminuindo com um simples movimento dos dedos. Tentou brincar com aquilo, pegar nos cubinhos, balança-los, como se faz com pó, mas não conseguia dominar aquilo direito. Depois, tentou mexer o corpo todo, as pernas, a cabeça, os braços. Andou um pouco, sentia-se confuso, um pouco de desespero. Conseguia ver apenas cubinhos e mais cubinhos se fazendo e se desfazendo em meio ao grande azul multimídia. De repente, prestando mais atenção, pôde ver que aqueles cubinhos não se limitavam apenas a se desfazerem. Eles se mexiam, davam voltas, mudavam de forma, viravam prismas, pirâmides, octaedros, hexágonos, e todos os tipos de sólidos. Mudavam também de cor, sempre brilhantes, amarelos, vermelhos, verdes. Tudo num mundo muito pequeno e microscópico, que com olhos normais ele jamais veria sem um aparelho eletrônico. Pôde também sentir os cubinhos, batendo e voltando em sua pele, se agarrando, entrando nas frestas de seus olhos, pelos ouvidos, por entre os cabelos. Percebeu que engolia cubinhos mas que não sentia gosto algum. Podia apenas pensar, perceber o frio, e sentir o cubinhos batendo em sua pele, nada mais. “Jamais imaginei que fosse assim”, pensou ele, tentando reorganizar os pensamentos, que a todo instante se desfaziam, como castelos de areia derrubados pelo vento. Sentia que o grande azul era um grande nada, não podia senti-lo, podia vê-lo mas apenas de uma forma estranha e talvez enganosa, e que os cubinhos se pareciam com ar, pois não tinham gosto mas podiam ser respirados e sentidos. Seus olhos ficaram sensíveis ao ver tanta luz. Parecia o limiar do universo, aquilo. Sempre imaginara como seria dentro de um buraco negro. Talvez fosse aquilo. Talvez o “grande nada” de que todos falavam fosse algo parecido com aquele “grande azul”.
Finalmente parou para examinar seu próprio corpo, com os próprios olhos. Diferente da outra vez, não sentiu nenhuma sensação estranha. Seu corpo estava ali, materializado, não havia desaparecido, continuava sendo ele mesmo. Não era apenas uma consciência presa a um grande azul. Ainda estava lá, mas algo havia mudado. Suas mãos, seus braços, todos eles pareciam lustrosos, como a pele de uma rã, como se segregassem algo tipo de muco, que os deixasse mais brilhosos. Estava parecido com um manequim. Suas mãos não possuíam mais unhas, nem pêlos, seus braços estavam finos, moldados. A cada movimento que fazia com os braços sentia algumas e poucas rugas aparecerem nos cotovelos, mas que logo sumiam, fazendo-os voltarem a ser apenas uma perfeição estética, como se fosse um personagem de alguns daqueles filmes antigos, de cem anos atrás, movendo-se e aparecendo num mundo completamente virtual. Se sentiu um personagem de Hänkks, perdido dentro do próprio pensamento, confuso, sem saber o que fazer num situação difícil. Lamentou não possuir ninguém ali com ele, nenhuma droga, nenhuma mulher, nem mesmo uma alienígena. Os alienígenas se pareceriam ainda mais alienígenas dentro de um mundo como aquele.
Continuou então examinando seu corpo, olhando a pele quase cor de rosa, oscilando para o bege puro, dos manequins mesmo, sem muita tonalidade, em estado natural. Suas mãos plásticas, seus pés, seu sexo. Seu sexo havia desaparecido, mas quando pensou nele, retornou, como se brotasse de sua pele, ereto. Continuou olhando seu corpo. Seus pêlos todos haviam desaparecido. Tateou o rosto. Não havia sobrancelhas mais, nem cílios, nem cabelo. Pode sentir os olhos, e a boca, mas não conseguiu sentir também o nariz. Apenas uma ponta pequena e leve onde ele deveria estar. Pouco depois, percebeu que o nariz voltara, assim como os cabelos, que agora pareciam todos um só, um bloco contínuo de cabelos marrons, como num desenhos, que se desfaziam apenas se ele quisesse. Estava assustado. Quando passou a mão pelos cabelos, pôde sentir uma coisa engraçado, que era construir os fios, soltá-los, e depois juntá-los todos, como os cubinhos. Tudo parecia ser feito de cubinhos ali, inclusive ele mesmo. Começou então a fazer coisas de cubinhos, alguns pêlos voltaram, as unhas, percebeu que podia enxergar melhor agora, e o azul parecia mais real, mas sóbrio. Alguns cubinhos se transformaram em ar, e ele tentou fazer com que todo o azul à sua volta ficassem como aqueles cubinhos. De repente, se viu envolvido em um campo de ar, uma bola, que cada vez mais se estendia.
Sorriu. Percebeu que podia controlar aquilo, mesmo que com algum esforço. E, num súbito momento, viu que não estava mais solto no meio do nada, e sim em cima de uma ponte. Uma grande ponte de pedra, solta no meio do grande azul. Ele havia imaginado aquela ponte, e ela se materializara. Tentou imaginar outras coisas, comida, roupas, mulheres, mas elas não apareceram. Apenas a ponte. Ele não entendia bem o porquê daquilo, mas já se sentia à vontade sentado na ponte. Já podia sentir a respiração novamente, pois estava mais envolto em ar do que em cubinhos, e o grande azul não era mais brilhante. O tom prateado havia desaparecido, e tudo parecia nada mais que uma grande noite azulada. Imaginou algumas outras obras ainda mais surreais. Planetas amarelos, brilhantes, palácios enormes e dourados, cinco sóis no céu, besouros enormes andando pelos jardins. Pensou em como alienígenas deviam ser outros mundos. Um garoto sentado numa ponte no meio do espaço. Sorriu ao ver que um dia escreveria um livro sobre aquilo, sobre aquela experiência, quando voltasse.

- Consegui uma coisa que você não vai acreditar. - Disse o rapaz, entusiasmado
mas contido, olhando bem nos olhos do homem à sua frente. Sorriso discreto nos lábios, daqueles que guardam uma grande surpresa.
- O quê? - Respondeu o outro, com o mesmo olhar. Os olhos profundos, cinzentos, assim como os cabelos, céticos. Ceticíssimos. Olhos de sabedoria. Estavam no meio de uma sala enorme, dentro de uma casa enorme. Tudo parecia organizado. Havia monitores espalhados por todas as paredes da casa. Neles, centenas de milhares de códigos, em letras mínimas, linguagem humana. O teto era também um grande monitor, abrigando códigos também em toda sua extensão. O homem de cabeça cinzenta estava sentando numa cadeira, acariciando suas próprias mãos com os respectivos polegares, incessantemente. Estava usando luvas que eram feitas de um material parecido com a borracha, mas que poderia ser usado para armazenar sensações. A cada movimento que fazia com o polegar, dava um sorriso. No meio da sala, que era enorme, com um lance de escadas e três níveis, havia uma grande mesa metálica, onde havia um computador outros menores, assim como restos de comida sobre um prato e um copo vazio.
- Um conexão com o túnel. - Respondeu o rapaz que estava de pé. Cabelos castanho-escuros, compridos até os ombros, amarrados num rabo de cavalo. Os olhos eram negros, a cara limpa. Era maior, mais encorpado. O outro era quase calvo, só possuía cabelos em cima. Dos lados, era pele nua. Não parecia velho. Era mais velho, mas sua pele era tão lisa quanto a do outro.
- Não acredito. - Respondeu o de cabelos cinzentos.
- Pois acredite. Eu consegui.
- Como?
- Foi um trabalho extenso, que venho fazendo há anos....
- Impossível. Você não conseguiria uma conexão com o Túnel com... quantos anos você tem mesmo? Vinte e cinco?
- Vinte e seis.
- Vinte e seis anos. É preciso mais do que vinte e seis anos de trabalho para interceptar uma conexão com o túnel. Muito mais. Diga-se de passagem. E muito mais talento do que você tem, também.
- E se eu tivesse me apoderado do trabalho dos outros? - Respondeu o de rabo de cavalo, se aproximando do outro.
- Você não entenderia. É preciso bem mais que o que você já viveu pra entender o mecanismo do túnel, mesmo que tudo chegasse mastigado. - Disse o de cabelo cinzento, cético.
- Nada é impossível. É ridículo você supor isso, pois eu poderia perfeitamente chamar meus contatos para me ajudar, inclusive você.
- Eles não o ajudariam, assim como eu também não. Essa sua idéia é ridícula.
- A questão é que eu tenho uma conexão com o túnel. Não te digo que foi um trabalho tecnológico...é claro que não. Como você mesmo disse, eu precisaria de mais uns cinqüenta anos de vida estudando o mecanismo para entender como fazer uma conexão ao túnel sem ajuda.
- Talvez mais, se considerarmos seu interesse pelas tecnologias de rede.
- Sim, talvez mais, mas você sabe que eu sempre fui curioso a respeito do túnel.
- Qualquer um é. Você ainda vai viver muito se não fizer besteira. Se conseguir fazer muito dinheiro talvez algum dia consiga uma conexão com o túnel.
- Eu TENHO uma conexão com o túnel! Eu sei que parece difícil de acreditar, mas eu tenho.
- Saia daqui que eu estou trabalhando... - disse o de cabelos cinzentos.
- ... criança. Porque você não vai brincar com seus brinquedinhos? Vá sintetizar um som, vá fazer alguma música... - continuou.
- Quer que eu te prove? Eu posso te provar, mas não pode ser aqui. Preciso tomar alguma coisa pra te contar direito a história, sem esquecer detalhes.
- Aonde?
- No Zaian, como sempre.
- Certo. Apareço lá em duas horas, assim que terminar alguma coisa aqui. Estou mexendo com impulsos mentais. Estou tentando gravar meus próprios pensamentos, mas é mais complicado do que eu pensava.
- Em duas horas, então. Apareça, senão eu volto. - Disse o de cabelos castanhos, desaparecendo no mesmo instante.

O Zaiam era um bar de drogados. Lá eram servidos os mais variados tipos de drogas, a maioria em pílulas, mas algumas outras em bebidas. Algumas poucas eram pingadas nos olhos, e havia também aquelas que vinham na comida, mas eram poucas. Com o tempo o mercado das drogas se centralizou totalmente em pílulas. As mesas eram conectadas em rede, para os clientes poderem se divertir de verdade durante os efeitos, que costumavam durar horas. Algumas, mais caras, injetáveis, duravam dias, às vezes até semanas. As em pílulas e pastilhas eram mais comuns, mais baratas, mais relaxantes e momentâneas. Algumas mais baratas não duravam mais do que vinte minutos. Apenas um pouco de tempo de uma sensação excitante, onde todos podiam conversar sem escrúpulos. Era um dos points da cidade. Gente de todos as idades e todos os sexos lotavam a casa todas as noites. Era uma das únicas que fazia aquele tipo de negócio e oferecia drogas mais novas na cidade. Era como se morassem em um fim de mundo onde aquele era o único bom lugar para se divertir.
A casa era enorme. Zaiam era o dono, um rapaz de uns quarenta anos de idade, sempre bem comportado e sempre com um tubo enfiado no nariz. Era um viciado. Um dos poucos da casa que era viciado em alguma coisa. O conselho proibia os fabricantes de drogas de colocar elementos viciantes na mercadoria. Apenas alguns poucos, do mercado negro, conseguiam vender esse tipo de droga, mais pesado e mais arriscado. Coisa pra louco. Zaiam sempre parece alegre, no entanto. Cumprimentava os freqüentadores mais assíduos e às vezes dividia alguma coisa com eles. Ele oferecia comida também, mas apenas os usuários de alguns tipos especiais de drogas comiam, por causa dos efeitos. Era um local espaçoso, com várias e várias mesas, música para quem quisesse, assim como estímulos tecnológicos, e sexo. O rapaz de cabelos castanhos, Paul, estava sentado junto a uma mesa, ainda esperando o de cabelos cinzentos, Ázur, chegar. Enquanto esperava, brincava com dois comprimidos, jogando-os de um lado para o outro, sorrindo. Era uma mesa para dois, mas ela poderia crescer, se chegasse alguém mais no local. O chão se deslocava e se rearranjava no espaço sempre que alguém precisava de mesas maiores ou menores. Nunca faltava espaço no Zaiam. Os adolescentes gostavam de entrar no local em bandos de trinta, ou quarenta, e a sala sempre precisava se tornar circular nesses casos. Naquela noite, não havia nenhum bando de adolescentes, mas a casa estava cheia. A sala estava na sua posição inicial, cheia de divisões e subdivisões. Paul, impaciente, colocou então duas pequenas agulhas nas veias de cada pulso, para começar a sentir alguns “estímulos tecnológicos”, que era como eles chamavam uns pequenos e leves choques, que serviam para preparar melhor alguém para o sexo ou para as drogas. Pouco depois, Zaiam chegou, e sentou-se na cadeira à frente de Paul.
- Olá Paul. - disse ele.
- Olá Zaiam. Ázur deve estar vindo. Você sabe que ele se atrasa. Não acreditou na história do túnel, é claro.
- É claro. Mas eu trouxe o aparelho. Está lá dentro. Vamos ver se funciona... - respondeu Zaiam, puxando alguma coisa de dentro do tubo branco que entrava no seu nariz. Era um líquido branco, parecia leite, mas mais viscoso. Saía de dentro de uma bomba que estava presa nas costas dele. Para alguém de fora, parecia algo nojento. Paul pôs um comprimido na boca. Era uma pastilha amarelada, bonita, com o logo do fabricante impresso no meio. Derretia na boca em dois segundos. Em três, já podia sentir a sensação de relaxamento. Recostou-se na cadeira, se sentiu leve. Fazia aquilo quase o dia inteiro, mas ainda assim sentia-se sempre renovado.
Pouco depois, Àzur apareceu, andando rápido, como era característico, sorrindo de leve. Zaiam apertou um botão na mesa, e ela cresceu, à medida que o chão se movimentava. Uma cadeira e um espaço a mais na mesa ficaram sobrando, no final. Àzur aproximou-se, e se sentou.
- Olá Zaiam. Oi Paul. Bem... aqui estou. E estou vendo que vocês começaram sem mim, também. - disse ele, acomodando-se e pegando uma pílula dentro do pacotinho.
- Você está vinte minutos atrasado. Eu precisava de alguma coisa para passar o tempo. Quem me garantiria que você não se atrasaria uma, ou duas horas, como já fez antes? - respondeu Paul.
- Zaiam está aqui.
- Chegou agora à pouco. Vamos. Tome um comprimido. - disse Paul, estendendo um comprimido a Ázur, que o pegou e engoliu imediatamente, junto com a pílula. Era um comprimido maior, diferente da pílula, que só fazia ele ficar acordado por mais tempo. O efeito do comprimido demorava um ou dois minutos, mas era melhor. Trocava as cores das coisas, deixava sombras em tudo, os movimentos mais lentos. Era um droga estranha, alucinógica, mas uma das favoritas dos três da mesa. Não muito consumida. Paul começou a brincar com um grupo de jovens que estava sentado na outra mesa, mandando impulsos através da tela.
- Não chame muita atenção, Paul. Meu bar é bom para fazermos isso, porque ninguém dá a mínima, mas se você pedir, a confusão aparece. - disse Zaiam. Ázur olhou os dois com os olhos a princípio pregados, como se estivesse muito cansado ou com sono, mas depois sorriu. Afastava e voltava o corpo pra frente e pra trás o tempo inteiro, como se tentasse focalizar alguma coisa. E piscava. Estava piscando muito. Os outros acharam engraçado, e começaram a rir. O som dos risos não chegava nas outras mesas, pois era quase que totalmente absorvido por “sugadores de ondas”, como eram apelidados aqueles “ralos” no chão. Dessa forma, ninguém incomodava ninguém a não ser pela tela do computador. Uma das garotas da outra mesa respondeu o recado de Paul, mandando-lhe um beijo.
- Bem...agora as coisas estão ficando melhores. Me passa um T-14, Paul. - Disse Ázur, enquanto o outro pegava outro comprimido laranja de dentro do plástico, que tinha uns quinze. Pegou um para ele também, e derreteu na boca. Zaiam não tinha tomado nada ainda, além daquela coisa branca que de tempos em tempos invadia seu nariz. Ficaram um tempo em silêncio, como se estivessem cada um deles num mundo próprio, desfrutando dos prazeres das drogas quando, de repente, Paul disse, empolgado:
- Eu tenho a conexão com o túnel, Ázur!
- Foi pra isso que viemos aqui hoje, não? - respondeu ele, visivelmente alucinado.
Já havia tomado quatro comprimidos, o que era já uma dose considerável. Mesmo assim ainda estava muito longe da overdose de mistura, que era quando se tomava aproximadamente sete ou oito tipos de drogas diferentes na mesma noite. Para poder morrer dessa forma, era necessário tomar aproximadamente trinta comprimidos, o que estava além do que podia acontecer naquela reunião. Ázur era o mais velho deles. Tinha sessenta anos e alguma coisa. Era conhecido de Zaiam há vinte, e recentemente haviam incorporado Paul ao grupo. Paul não passava de uma criança, um menino novo aprendendo a mexer com coisas estranhas e perigosas. Ambos gostavam muito dele, se sentiam até responsáveis, eram amigos, essa era a verdade. Ázur era também o que conseguia tomar mais drogas sem cair. Consumia torno de dez comprimidos, de dois ou três tipos diferentes. Não era viciado, mas gostava muito. Uma espécie de degustador de comprimidos. Paul não tomava mais que cinco, e Zaiam raramente experimentava algo que não fosse sua gosma branca. Ázur sabia que aquilo era uma espécie de relaxante, refrescante, e que destruía tudo o que era massa cefálica, mas estimulava a imaginação em todos os sentidos Chamava-se qkell. Altamente viciante, como se preenchesse sua mente o tempo inteiro. Usuários de qkell raramente dormiam, como era o caso de Zaiam. Droga das mais pesadas possíveis. Sem aquilo, ele provavelmente não viveria. Era um sujeito estranho, de comportamento estranho. Não tinha família, poucos amigos, nada. Um bom vivant esquisito. Gostava de fazer viagens espaciais. Já havia visitado alguns planetas aos arredores. Ázur não tinha coragem de fazer aquilo. Poderia visitar Ata pelos computadores, mas não tinha coragem de ir para uma lua sequer de verdade. E Paul... bem... Paul era muito jovem.
- Conte a história pra ele, Zaiam. - disse Paul.
- Você se lembra daquela Anna, Ázur?
- Claro. Doida. - respondeu Ázur.
- Ela morreu. - disse Zaiam.
- Pena. Doida.
- Sim, era doida mas eu conheci ela. Tava metida num rolo estranho. Ela morreu na minha frente! - disse Zaiam.
- Mesmo? Qual foi a sensação?
- Sensação de quê?
- De ver alguém morrer na sua frente! Deve ser algo estranho.
- Sim, foi estranho! Era louca! Também usava qkell, mas não gostava de usar o tubinho.
- Era com ela que você conseguia qkell?
- Também. Na verdade, eu estive metido num negócio... de revender qkell, e tinha ido até a casa dela para conversar a respeito disso. Queria que ela pudesse me arrumar um grande negócio com o qkell... Como... eu apresentei o negócio pra ela, achei que pudesse me ajudar.
- Mas você não tem seus próprios contatos pra isso?
- Na verdade, não. Meu negócio é apenas com drogas leves, e legalizadas. Prefiro não molhar minhas mãos em coisas mais sujas... você sabe como é o rastreamento da UPUC. É fácil pegar, mas o qkell pode ser um negócio promissor. Estão estudando a possibilidade de lançar um qkell mais fraco, menos viciante, e vendê-lo normalmente.
- É. Eu sei. Mas você acha que as pessoas vão simpatizar com essas gosma branca? Me desculpe, mas você sabe o que acho de qkell. Parece porra...
- Sim. Mas deixe-me terminar de contar a história. - disse Zaiam. Paul estava parado, ouvindo tudo. Periodicamente, pegava um comprimido e entregava a Ázur. Já estavam há mais de uma hora no bar.
- Acho que Anna se apaixonou por mim ou algo do tipo. Você sabe que não gosto de mulheres, mas eu fiz sexo com ela mesmo assim, porque ela insistiu muito. A droga geralmente me deixa mais inteligente, mas a falta dela deve deixar as pessoas estúpidas, pois aquela Anna era realmente estúpida!
- Talvez ela tenha fodido com você pelo simples prazer de dizer depois que é tão boa que consegue fazer até mesmo um gay comer ela.
- Talvez, mas eu acho que não foi isso. Ela era doida mesmo, Ázur. E acho que não é uma pseudo-prostituta, como a sua irmã. É uma maluca rica, que não sabe usar drogas. Esse tipo de gente tá cada vez mais raro hoje em dia. As drogas viciantes estão praticamente banidas da nossa cidade. Acho que até mesmo do planeta. Mas essa Anna era muito rica, por causa do pai dela, você sabe.
- E foi com ela que você conseguiu uma conexão com o túnel virtual. - disse Ázur, sorrindo.
- Foi. - confirmou Zaiam.
- Não disse pra você? - disse Paul, como se tivesse acabado de sair de um transe, mas ainda assim sorrindo.
- Mas ela morreu. - disse Ázur.
- Sim. Ela morreu na minha frente. Não sei de quê. Disse que o pai dela tinha comprado uma conexão com o túnel, e que o pai dela também tinha morrido.
- Mesmo? Que estranho...
- Sim. Ela disse que o pai dela foi assassinado, mas era doida. Talvez o pai dela nem tenha morrido. Mesmo assim, ela disse que conseguiu descobrir onde o pai dela escondia a caixa de conexão.
- Certo. - disse Ázur. Ele parecia cada vez mais interessado. Para ele, tudo parecia maior e mais grandioso. Iria demorar até que o efeito dos comprimidos passasse.
- E ela me mostrou a caixa, pouco antes de morrer.
- Como ela morreu?
- Começou a vomitar qkell, e morreu. Acho que ela bebeu qkell! Percebe o tamanho da insanidade dessa doida? Ela deve ter bebido qkell!
- Pode ser. - disse Ázur.
- Que doida... - disse Paul, fazendo uma expressão de nojo com a cara.
- E a caixa? Está com você? - perguntou Ázur.
- Está. Está lá dentro. Você acha que pode ligá-la?
- A Anna morreu na sua frente e você fez o quê?
- Peguei a caixa e saí dali. Se o pai estiver morto, melhor. A porta estava aberta, os sistemas de segurança estavam desligados. Além de doida era burra. Alás...estúpida, como eu disse.
- Quando foi isso?
- Há uns dois dias atrás.
- A UPUC vai te pegar. Se descobrem isso, sua cabeça vai ser posta a prêmio, e com certeza você foi filmado na casa dela, e eles têm suas digitais, provavelmente seu DNA, tudo. Estou surpreso de que você ainda está vivo.
- Eu não me importo. Dizem que nada se compara a uma conexão com o túnel.
- Zaiam, o túnel não é droga. É uma rede.
- Uma rede onde você pode fazer qualquer coisa, Ázur. Isso não pode ser chamado de droga? - disse Paul, interferindo.
- Uma conexão com o túnel é extremamente perigosa. Existem pelo menos dez casos de gente que entrou no túnel e nunca mais voltou. Não é à toa que ele foi proibido, e só fodões com muita grana podem comprar uma conexão com o ele. Acho que não existem mais que três em Caalan. - respondeu Ázur.
- Na verdade, essa que temos aqui é a única do planeta. - disse Zaiam.
- Você vai ser pego, Zaiam. Se eu fosse você, pegava uma nave qualquer e saía desse planeta agora mesmo.
- Agora já fiz a besteira.
- Ázur, acha que consegue estabelecer a conexão? Acho que posso morrer se já tiver entrado no túnel. - disse Paul.
- Vamos ver o que posso fazer. Busque a caixa lá. E me dê mais um comprimido. - respondeu ele.

A essa altura, ele já conseguia moldar tudo. Não apenas pontes, mas lagos, castelos, prédios, casas, naves, armas, estações, satélites, planetas, carros. Tudo. Era o próprio senhor da matéria naquele local. O grande azul havia se tornado um paraíso. Ele não era ninguém além de deus ali. Às vezes, sua imaginação falhava, e as coisas se desmanchavam em cubinhos, como um castelo de areia, mas ele tentava recompô-las. Achava mais dificuldade em criar vida... árvores, cachorros, peixes, pássaros. Parecia sempre mais difícil. Logo que imaginava essas coisas, elas se desmanchavam. Tentou criar uma grande criatura marinha dentro de um lago, mas não conseguiu. Imaginava apenas as coisas mais próximas. Seus pensamentos eram limitados. Imaginava bares, prédios, carros, televisões, computadores.... mas não ia muito além disso. Sentiu-se frustrado. Pensou terem passado horas e horas a fio desde então. Já havia conseguido quase que recompor seu corpo inteiro, mas o brilho, que parecia cera, continuava. Tinha construído roupas, cores, sensações. Ainda era um deus imperfeito, imaginava. Em pouco tempo, se cansou, e tudo foi aos poucos se desmanchando, como se as coisas precisassem de uma força vital sempre ali segurando-as. Naquele caso, era ele e mais ninguém.
Aquele tempo lá dentro lhe pareceram dias. Sentiu-se frustrado. Não conseguia criar pessoas, e não havia tentando falar ainda. Tudo se desmoronou. Tentava estimular a imaginação, e não conseguia pensar em nada além daquela droga, qkell. Talvez com um pouco daquilo, pudesse se transformar num criador, como aquele arquiteto de Assistinand, que bolou aquelas construções imensas e bizarras, há alguns anos. Havia aprendido aquilo na escola, não muito tempo atrás. Já quase conseguia organizar os pensamentos, depois daqueles dias todos, mas ainda não conseguia se lembrar como e sob qual propósito fora parar ali. Pensou em dois companheiros com ele, mas nada além disso. Não se lembrava quem eram, e nem o que poderiam ter feito. De súbito, teve uma sensação parecida com o sono. Pensou que dormiria. Deitou-se, e ficou olhando para cima, para o céu azul. Estrelado, escuro. Havia bolado um céu verde, mas ele tinha desaparecido também. Sabia que em alguns lugares o céu era verde. Alguns planetas distantes, na galáxia de Logus. Tão distantes quanto os planetas de Foaton. Os planetas dos aliens. Ele nunca havia visto um alien pessoalmente, mas sabia como eles eram. Não muito diferentes dos humanos, nenhuma daquelas raças. Achava-os estranhos, já tinha visto alguns filmes e documentários sobre eles. Viu um ou dois filmes Lumians, com aquelas coisas horríveis, pequenas e azuis. Sentia asco por aqueles aliens. Tentou fazer um deles, um Lumian, à sua frente, mas ele não apareceu. Não conseguia fazer nada que pensasse. Fechou os olhos e se lembrou que conhecia um alienígena sim. Era um híbrido, de cabelo em pé, preto, e costeletas enormes. Um Tenúi. Sim, um híbrido de humanos com Béltimos. Era um freqüentador do Zaiam, mas aparecia raramente. Tomava poucas drogas e vivia dizendo que seu pai conhecia coisas muito melhores que aquelas porcariazinhas sem efeito. O nome dele era Astron. Um nome estranho, mas não tanto por se tratar de um meio-alienígena. Tentou fazer Astron, de olhos fechados, mas não conseguiu.
Quando abriu os olhos, percebeu que ainda estava sentado sobre a ponte, e mais nada ali existia. Tudo havia se desmanchado em cubinhos. Aquele lugar, mesmo sendo totalmente irreal e desconhecido, parecia para ele cada vez mais algo abandonado... fruto de uma tecnologia surpreendente, mas que não parecia servir para muita coisa. Não, nada do que haviam contado para ele. Nada de entidades, de informações, de sonhos se materializando, de poder ir para qualquer lugar. Parecia apenas um joguinho simples e antigo de realidade virtual, onde você entrava num mundo extremamente limitado e encarnava o herói. Não era muito diferente daquilo. Se sentiu limitado e se sentiu fraquejar. Os braços ficaram moles. O azul havia voltado com toda intensidade. Até mesmo a ponte havia sumido. Estava novamente parado, no meio do grande azul, e sua pele voltou a ser lustrosa. Até encontrar alguma das entidades ou outra pessoa qualquer, não fazia idéia de como sair dali. Sentiu um profundo desânimo. Baixou a cabeça, e tentou andar. Não conseguiu.
De repente, tudo pareceu mais pesado para ele. Estava difícil de se movimentar. O grande azul não se parecia mais com um “grande nada”. Parecia que ele havia se materializado. O nada havia ficado pesado, gelado, encostava e grudava em sua pele. Percebeu que o grande azul havia se tornado uma espécie de gelatina, e que para se mover precisaria literalmente rasgar e atravessar a gelatina. Os movimentos ficaram difíceis e complicados. Em cada vez que mexia o braço, seus pêlos iam e vinham, eram arrancados, viravam cubinhos, nasciam de novo, grudavam na gelatina. A sensação era horrível. Toda aquela gosma grudada na cara, entrando pela boca, pelas narinas, sem pode fazer nada. Sentia toda a sensação claustrofóbica e desagradável, mas ainda assim vivia e não se afogava. Não conseguia mais andar, imaginava tudo aquilo virando cubinhos de novo, mas não conseguia materializar os desejos. De repente, tudo virou um pesadelo. Pensou em ficar ali cercado de gelatina azul por horas, não tinha noção alguma de tempo, sentia fome, ainda por cima. Começou a sentir frio de verdade também. Sua pele havia se tornado uma espécie de borracha. A gosma gelada entrava pelo seu nariz, pela boca, descia pela laringe, pela faringe. Podia sentir tudo sem fazer nada. Tudo aquilo acabou apenas quando ele sentiu que ia cair, e começou a cair.
De repente, foi como se o grande azul não servisse mais de sustento. Ele não estava mais flutuando ali, nem preso à gelatina, e sim caindo, como se estivesse em queda livre, rasgando com peso e velocidade a gosma que estava por baixo, sem saber o que fazer. Não conseguia fazer parar, não tocava nada, não criava mais nada. Estendeu a mão, mas a parede de gelatina em alta velocidade parecia mais dura e mais consistente. Percebeu que quase perdeu o braço quando fez isso. Caía sem parar. Sua pele às vezes ia ficando pela gosma, podia ver carne viva pelos lados dos braços e os pés eram praticamente osso agora. Sentia dor. Podia sentir coisas mundanas novamente. Naquele momento ele percebeu que aquilo não poderia ser apenas uma rede. Era real, era muito vivo. Parecia que o mundo ao redor dele era vivo, e queria devorá-lo. Caiu durante horas, segundo pensou, e nada parecia querer parar. A sensação era horrível, até que ele viu novamente tudo se desmanchar em cubinhos. Foi como se tivesse caído num lago, e os respingos virassem todos cubinhos. Ficou boiando na gelatina, tentando entender o que se passava. Tentou novamente fazer um pouco de ar, com raiva, mas não conseguiu. Parecia que estava numa espécie de zona, onde em havia um teto infinito de gelatina e um chão infinito de gelatina. O resto parecia novamente com o grande azul que viu quando chegou naquele local. Mexeu os braços. As pernas. Começou a caminhar sobre a gosma, se espreguiçando. Havia ficado horas sem se mexer, suas juntas estavam quase enferrujadas, pois ele estava parecendo um ser de lata. Tentou falar algumas coisa além de pensar. Fez um esforço incrível, tentou emitir algum som, mas não conseguiu. Continuou andando pela estrada de gelatina, sem ter idéia de qualquer destino, e ouviu, pelas primeira vez, uma voz:
- Quem é você? - perguntou a voz, que parecia vir de todas as direções.
- Quem sou eu? Quem é você? - respondeu ele.
- Eu sou Paul. - disse a voz. Ele pôde perceber que a voz era exatamente igual à sua, sem nenhuma modificação.
- Eu... sou Paul, também. - respondeu Paul.
- O que está fazendo aqui, Paul? - disse a voz.
- Ainda não sei. Talvez você possa me ajudar. Aqui é dentro, não? Dentro do túnel? - Perguntou Paul.
- Acho que sim. Sei tanto quanto você. Estou perdido aqui.
- Certo. E onde está você?
- Estou aqui. Também não posso te ver.
- Não sei se acredito... Ázur me disse que... Ázur... - pensou Paul, tentando saber de onde viera aquele nome. Parou um pouco, sem perceber. A voz nada disse. Numa situação comum, estaria achando a situação completamente insana, mas naquele momento não achava aquilo. Tentava pensar como sempre pensou. Lá dentro, as coisas não pareciam ser da mesma forma que lá fora, mesmo as mais estranhas possíveis.
- Ázur me disse que as pessoas se perdem no túnel, que não sabem para onde ir, que não sabem como controlá-lo, porque o túnel é mais forte e muito mais poderoso que a mente humana.
- Ele me disse isso também. Talvez Ázur estivesse certo. - disse a voz.
- Você não me vê? - perguntou Paul.
- Não. Meu corpo está estranho... e há essa coisa azul por toda parte, mas estou respirando ar. É estranho aqui, muito frio.
- Eu consegui construir castelos, naves, o espaço, um sol... mas tudo desapareceu. Muito estranho. - disse Paul.
- Eu também fiz essas coisas. Nada parecia real. Apenas se desmanchava. Eu reerguia tudo, mas tudo se desmanchava. Então, eu desisti, e fiquei preso na gosma azul.
- Isso aconteceu comigo também. Por acaso você... é uma das entidades do túnel... tentando brincar comigo? - disse Paul, sentando-se na gosma. Parecia desolado, e pouco animado ao conversar consigo mesmo.
- Antes fosse. Eu sou Paul. Ninguém mais. Aliás... eu ia fazer essa pergunta pra
você. Quero que diga algumas coisa da minha vida pessoal. Se você é Paul mesmo, prove, então. - disse a voz.
- Eu sou Paul. Ia dizer o mesmo a você. Você pode estar perguntando isso simplesmente porque quer pegar as informações, e poder usá-las mais tarde. O túnel é um grande novelo de informações sem controle.
- Diga apenas uma coisa que só você saberia, então. Eu digo outra. - disse a voz.
- Eu gostaria de morrer com duzentos e quatorze anos. Nunca disse isso pra ninguém. Diga agora alguma coisa você.
- Gostaria de morrer com duzentos e quatorze anos, comendo alguma alienígena esquisita na hora em que estivesse morrendo, velho.

A caixa não era grande, nem bonita. Era um compartimento metálico, bege claro, muito descorado. Zaiam a carregava com dificuldade, pois parecia pesar muito. Se assemelhava a uma maleta, possuía rodas e controle, é claro, mas Zaiam havia perdido o controle. Trazia, apesar do esforço, a caixa com discrição. Ela brilhava, possuía uma alça pequena, e muitas entradas para fios dos lados, e muitos botões. Ninguém que olhasse para aquela coisa velha e até mesmo rude poderia supor que se tratasse de uma conexão com o túnel virtual, tão rara nesses dias e até mesmo ilusória para um planeta como aquele. Zaiam trouxe a caixa, sendo levado pela esteira até a mesa onde estavam. Quando chegou, colocou-a em cima da mesa, e apertou mais um botão. O chão ao redor deles se modificou novamente, e mais uma cadeira se de dentro dele. Colocaram então a caixa em cima da cadeira. Paul sorriu para Ázur, provando que o que dissera era verdade. Zaiam limitou-se a sorrir com apenas um canto da boca, sem abri-la, um sorriso satisfeito, porém humilde. Ázur, ainda sob os efeitos das pastilhas, ficou olhando a caixa, de boca aberta, sem nada dizer, divagando por um ou dois minutos. Os outros dois fizeram o mesmo, e Zaiam puxou de dentro da bombinha um pouco mais de qkell para dentro de sua narina esquerda.
Sem nada dizer, Ázur abriu apertou alguns botões nas laterais da caixa. Era de um aparato mecânico realmente rudimentar. A caixa começou a se dobrar, se desencaixar e a se abrir. Pouco depois, assumiu um aspecto maior, mais encorpado, parecia um teclado. Devia ter uns mil botões, ou mais, todos em tonalidades diferentes, assim como muitas telas pequenas para impressão de tato. Ázur ficou olhando para aquela maquininha, que parecia tão inofensiva e primitiva para os dias de hoje, mas que jamais pôde ser realmente bem interpretada ou entendida. Pelo que sabia, o Túnel havia sido criado há pelo menos cento e cinqüenta anos, e os estudos em cima dele abandonados há pelo menos cinqüenta. Hoje, os que se arriscavam a participar das viagens virtuais dentro dele eram apenas pessoas riquíssimas, capazes de comprar os poucos e últimos acessos que restavam nos mercados negros. Ele sabia que, a princípio, a idéia do túnel deflorou, e muitos puderem se utilizar das maravilhas que ele proporcionava, mas que depois a quantidade de informações acumulada foi tão grande que o mundo inteiro já não era suficiente para ele.
- É difícil explicar numa linguagem não técnica. Meu professor, Harold, talvez conseguisse... - disse ele, sem notar que pensava em voz alta, enquanto os outros dois se entreolhavam sem entender direito o que se passava.
- Acha que pode conseguir a conexão agora? - perguntou Zaiam.
- Talvez. Esse equipamento é muito estranho. Já fiz um trabalho sobre conexões no túnel, quando era mais jovem e mais curioso, mas esqueci quase tudo, e utilizamos uma maquete mais moderna. Não era como isso aqui. Não precisávamos de uma caixa, pois tudo já era baseado em impressões sensitivas e neurais. Fico meio... não sei... envergonhado de mexer com isso aqui. Parece tão antigo e... talvez eu devesse algum respeito a essa caixa e fosse melhor deixá-la intocada.
- Sinceramente, não me parece tão complicada, Ázur. Você precisa usar fios, e felizmente aqui nós ainda temos entrada para fios em algum lugar das mesas... hmm... deixe-me ver. Tenho certeza que mandei colocar, para alguns freqüentadores mais ortodoxos... oh, sim, aqui está. - disse Zaiam, apertando um botão debaixo da mesa. Logo depois, uma espécie de bandeja com centenas de tipos de aberturas para fios saiu de uma das laterais da mesa.
- É verdade. Podemos usar fios. Os cabos estão aqui. Hmm... há mais um compartimento. Oh, sim. Me lembrei! Nossa, isso é ainda mais rudimentar do que eu pensava! Talvez eu esteja delirando, mas... não é possível que isso use agulhas, é? - perguntou Ázur.
- Agulhas? - respondeu Zaiam.
- Oh, aqui está. - disse ele, apertando alguns botõezinhos na caixa, que, em seguida, começou a se desmontar novamente, abrindo alguns outros compartimentos. Uma espécie de gaveta saiu de dentro do enorme teclado, e dentro dela havia uma seringa de metal, junto com dezenas de agulhas dos mais diversos tipos de tamanho. Do outro lado do teclado, abriu-se uma nova gaveta, cheia de pequenas caixinhas cúbicas do tamanho de um dado. Umas mil, provavelmente.
- Acho que este é o material. Por Gerrard, isso é muito antigo! Nunca havia visto um material ao mesmo tempo tão sofisticado e tão... artesanal! Não sei se consigo usar isso direito, Zaiam.
- Eu tenho uma vaga idéia. Essas caixinhas possuem aquele pozinho que se usava antigamente para transmissões neurais. Tecnologia nanorobótica. Nós podemos liquefazer o pozinho e colocar o negócio na seringa. A conexão é direta.
- Bem... me dê um comprimido. Um Y-13. Vou precisar de muitas doses para poder aprender a lidar com isso aqui. - Disse Ázur, com expressão preocupada. Paul pegou mais um comprimido num dos saquinhos, e o engoliu de uma vez. Entregou outro a Ázur, e outro a Zaiam. Ambos tomaram.
Ázur começou então a usar o teclado e as impressões de tato. Aos poucos, as informações a respeito de como instalar a conexão foram se alojando no seu cérebro, num processo de osmose. Foi pegando os fios, de dentro da caixa, e começou a ligá-los nos buracos da bandeja. Às vezes, soltava uma leve risada, do trabalho manual que estava fazendo, e continuava ligando os fios. Os outros dois ficaram olhando por um tempo, em transe, por causa do efeito do comprimido, que liberava a mente deles de qualquer preocupação durante muito tempo. Ficaram olhando um para a cara do outro, sem ao menos perceberem que estavam fazendo isso durante pelo menos meia hora, enquanto Ázur continuava seu trabalho, também em transe, tanto por causa das drogas como pelos estímulos tecnológicos que o programa o forçava a aceitar, para poder realizá-lo sem erros. O trabalho, apesar de utilizar uma tecnologia rudimentar, era complicadíssimo. Mexia com os efeitos, as idas e as voltas das ondas cerebrais... tentava misturar tudo aquilo a uma maquete do cérebro humano de silício, onde cada nervo tentava ser reproduzido com exatidão. A função dos nanorobôs era carregar essas ondas cerebrais humanas e misturá-las às da máquina, tentando tornar as duas mentes algo uno. Logicamente, executar isso era muito mais complicado do que parece, e um leve deslize poderia tornar ruim a situação da pessoa conectada ao túnel. Ázur agora quase não usava mais as mãos. Estava de olhos fechados, programando a conexão pela mente, com várias agulhas espetadas em sua testa.
- Quem será o primeiro? - disse Paul, quebrando o silêncio que se abatera sobre os três.
- Você? - respondeu Zaiam, indagando.
- Não sei, estou ficando um pouco assustado. Não sei se é verdade o que dizem a respeito do túnel. E, como Ázur disse, ele não é uma droga, nem um brinquedo.
- O túnel é um emaranhado de informações, só isso. Você vai entrar nele e achar o que quiser, dilacerar o que quiser, comer o que quiser, imaginar o que quiser.
- Como pode ter tanta certeza?
- Já me disseram.
- Já conheceu alguém que tenha entrado no túnel?
- Não. Mas já conheci uma moça. E o marido dela já entrou no túnel.
- E o que ele achou?
- Confuso. Disse que é difícil encontrar as entidades do túnel, e que eles não são guias turísticos, como se pensa. Disse que às vezes sentia claustrofobia... e que às vezes o túnel parecia tão grande quanto o próprio universo.
- Já me disseram que o túnel é tão grande que o próprio universo caberia dentro dele.
- Difícil estabelecer essa comparação. Você tem sorte de poder participar de uma conexão com vinte e seis anos. Aliás... eu também tenho. Sou muito jovem ainda. Até mesmo Ázur, que é o mais velho, não tem mais que setenta anos. Estamos tendo uma oportunidade única, Paul. - disse Zaiam, sorrindo levemente.
- O que mais você sabe sobre o túnel?
- Algumas coisas. Se entrarmos juntos vai ser melhor se nos mantivermos unidos. Será mais fácil descobrirmos as coisas se elas acontecerem dessa forma. Falam que o túnel é muito difícil de domar.
- Ele engole mesmo as pessoas? - perguntou Paul.
- Parece que sim. As pessoas se perdem dentro dele, com freqüência, mas geralmente voltam. Ele nem sempre aparece igual para todos. É uma abstração! Antigamente, tinha forma, era tudo muito controlado, até o conselho aprovava, mas depois que foi abandonado perdeu o sentido, os códigos todos se misturaram, e ele ficou disforme. Nunca aprendeu nada sobre o túnel, Paul? Como pretende ser técnico se não sabe nada de história? Hoje o túnel possui seus próprios formatos, como se fosse um organismo vivo, ou, sei lá, uma biosfera.
- Certo. - disse Paul em voz baixa, olhando para Ázur, que continuava na mesma posição. Pouco depois, ele abriu os olhos, e retirou as agulhas da testa.
- O túnel pode ser perigoso, mas acredito que tudo esteja em perfeitas condições. Arriscado tudo é, Paul. - disse ele, ainda olhando para o teclado. A caixa estava agora conectada aos computadores do Zaiam, e provavelmente absorveria um pouco da energia do bar.
- Está tudo pronto? Tem certeza de que esse lugar é seguro? - perguntou Ázur.
- Tenho. Na minha casa, os oficiais poderiam me procurar. Eu sei que estou sendo perseguido, e por isso geralmente durmo aqui. Aqui, eu possuo um pouco de proteção, por causa das drogas que forneço de graça aos oficiais. Mas lá eles não deixam. Não entendo direito esse método de ação deles, mas é o que é. Aqui, pelo menos eu posso morrer em paz. Acho que não duro muito, Ázur. Se eu gostar, talvez até fiquei pelo túnel para sempre. Se não, eu volto, e vou para outro planeta. Realmente não há outra forma. Não tenho família, e tenho poucos amigos. Não tenho namorada, nem namorado.
- Bem... então parece que você está mesmo decidido. De qualquer forma, não parece arriscado esse local. O tempo que podíamos gastamos bem. Uma conexão de horas lá dentro pode durar cinco segundos aqui fora. Por isso, tente não enjoar. Se você quiser ficar por lá, o que acho que não é possível, avise. Você pode morrer se tentar fazer isso. - disse Ázur. Depois, virando-se para Paul, perguntou:
- E você? Vai? Há líquido e agulhas para muitas conexões aqui.
- Vou. Acho que não tenho nada a perder.
- Bem... essa caixa foi projetada para apenas uma pessoa. É uma daquelas que foram vendidas comercialmente há muito anos atrás. Pelo jeito, foi usada poucas vezes. Deve ter mais de um século de existência essa coisa. É da época do meu pai.
- Como se faz a conexão? É com capacete? - perguntou Zaiam.
- Não. Com seringa. - respondeu Ázur, sorrindo e tirando a seringa de dentro da caixa. Era um seringa enorme, de metal. Devia caber um litro ali dentro. Ázur então a encheu de água, por um cabo ligado à mesa.
- Como pode algo injetado mexer com o cérebro? - perguntou Paul.
- Na verdade, a água vai apenas separar o pozinho. Está vendo essas caixinhas? Tenho que jogá-las dentro da seringa, e o líquido vai ficar prateado. Olhe. - disse Ázur enquanto fazia exatamente o que tinha falado. A água se tornou um líquido prateado e intenso. Ázur jogou uns vinte cubinhos dentro da seringa. Logo depois, pegou uma agulha de uns vinte centímetros e encaixou-a na seringa também.
- Essa coisa prateada são trilhões de computadorezinhos que vão ajeitar as coisas na sua cabeça, para a conexão ficar boa. Não precisa perguntar. Funciona. Vou ter que injetar isso no seu cérebro, através da sua narina. - disse ele, sorrindo pejorativamente. Um arrepio percorreu toda a espinha de Paul logo depois. Zaiam continuava passivo. Parecia mais distante, mas sorria. Parecia feliz com sua condição. O vício em qkell era tão forte que ele não sentia mais vontade viver normalmente, como qualquer um. Ele estava verdadeiramente disposto a tentar tudo que fosse diferente, não importando que fosse por um segundo ou cento e cinqüenta anos. Para ele, o tempo não tinha nenhuma importância. Para Paul, aquilo era apenas uma experiência que deveria ser divertida, e se de fato fosse, certamente o faria de novo. Tinha uma namorada e um pai. Gostava de sua breve vida, mas não sabia direito como as coisas funcionavam.
Zaiam apertou um botão que deixou-os todos em privacidade. Um espectro escuro os cobriu. Um holograma que fazia uma espécie de cabana sobre a mesa. Zaiam levantou um pouco o rosto, e se aproximou de Ázur. Ele olhou bem para o rosto do amigo, e enfiou a agulha dentro de sua narina direita. Zaiam soltou um gemido baixo. Doía muito até que o líquido fosse injetado. Assim, Ázur apertou um botão na caixa e a coisa prateada começou a sair de dentro da seringa para a o cérebro de Zaiam.

Aos poucos, Paul começou a perceber coisas diferentes sobre o aspecto do mundo azul. A voz desaparecera. Não tinha sido uma experiência agradável conversar consigo mesmo. Sentiu como se fosse uma luta contra seu próprio cérebro, incapaz de discutir ou falar com alguém em iguais condições. Durante toda sua vida, fora dedicado ao seu jovem pai de cinqüenta anos, sempre com cinqüenta anos, nunca deixando de ser quem era. Mas nunca havia realmente sido um devoto, um garoto de família. Não tinha mãe, e o pai estava sempre consertando coisas, num emprego medíocre. Gostava dele, mas sabia que não poderia fazer muito mais. Ambos ainda viveriam muito, mas Paul queria se distanciar. O pai era atrasado, não enxergava adiante. A irmã pensou da mesma forma e quando completou vinte anos fugiu de casa. Hoje, ele não sabia onde ela estava. Era o que faria também. Ou o que teria feito. Não tinha mais noção nenhuma de tempo, nem de cansaço, naquele lugar. Pensou no pai. Em como estaria, se tivesse de fato passado anos ali dentro, naquilo que pareceram apenas dias, no entanto.
A essa altura, já conseguia reconhecer-se dentro do túnel. Lembrava-se de Ázur, de Zaiam. Lembrou-se das palavras de Zaiam: “vamos nos manter juntos”. Zaiam não havia aparecido ali, e nem ele o havia encontrado. Talvez Zaiam estivesse morto. Pensou se Ázur também viria, e depois concluiu que era difícil concluir, pois era difícil pensar naquele lugar. O grande azul havia desaparecido, e ele estava voando com um vento forte na cara. Não havia criado aquilo, como das outras vezes, mas achava a sensação agradável, pois tinha tempo de pensar. Sabia que, quando recuperasse os poderes, poderia simplesmente desejar voltar, e a viagem, que para ele já durava quase um mês, estaria terminada. Um aprendizado bonito e franco. Algo que o enriquecera de forma impressionante. Poderia contar a todos que sua primeira conexão com o túnel tinha sido aos vinte de seis, e pensou também em como seriam as próximas. Imaginou se poderia criar criaturas, Lumians, Béltimos, Calterianos... outras pessoas, se poderia entrar aqui com sua namorada, Gillian, ou com Ázur, ou se poderia voltar a encontrar Zaiam, ou se faria outros amigos.
Então começou a sentir uma consciência forte em suas costas, em sua mente, seu coração... todo o seu corpo. Pôde ver rostos de pessoas, em ilusões vagas, foscas, imagens rápidas, décimos de segundo, imaginava, menos talvez, sempre aparecendo, desaparecendo, entrando em sua cabeça, saindo. Começou a ouvir coisas, cheirar, sentir o gosto. Seus sentidos todos começaram a funcionar exageradamente, seus pêlos estavam eriçados, a cabeça tremia. Percebeu que chorava, não de emoção, mas de pura tensão. A única forma que encontrou foi aliviar aquele peso chorando, e gritando. E ambos saíam sob a forma de cubinhos.
Me senti um homem arrasado. Destruído pela minha própria consciência. Não poderia imaginar que aquilo fosse mais forte que eu, que eu... não fosse resistir. Há coisas, mesmo dentro do mundo tecnológico, que ninguém pode compreender, e eu sou uma dessas coisas. As imagens acabaram ficando confusas em minha mente. Achei por um momento que havia tomado um grande e forte choque, mas nada disso fazia sentido. Não era uma máquina, e sim uma coisa viva e grande, poderosa. Me lembro que antes daquilo perguntei a Facciu se aquelas histórias e lendas eram reais... se as máquinas poderiam ter vida, ou controlar alguma coisa. Ele disse “não, não podem, Hern. Há coisas inexplicadas, mas ainda estamos nos empenhando em descobri-las. Vou fazer uma viagem a Calterian para tentar discutir com os outros cientistas que não saem de lá”.
E, aos poucos, nosso contato foi aumentando. Ela disse que gostaria de conhecer o espaço. Eu disse que algum dia poderíamos viajar, mas que jovens não podem sonhar muito, pois, apesar do universo conhecido ser grande, nós vivemos pouco. Muito pouco. Pensei em poder dar algum outro tipo de prazer para ela. Eu a amava, completamente. Jamais pensei em viver com outra mulher. Eu era uma pessoa fraca, entende? Nunca pensei que pudesse arranjar dinheiro para poder satisfaze-la. Ela sempre me pareceu linda, mas meus amigos diziam que ela não era. Que como eu tinha dinheiro, poderia mandá-la para longe de Faltan quando quisesse. Que talvez o amor não fosse tão forte assim, que ela não prestava, nem servia para nada. Mas não era verdade. Eles apenas me invejavam, e aquilo me deixava ainda mais nervoso.
Eu era um homem da guerra. Não podia pensar em nada além daquilo. Homem da guerra. Minha vida inteira foi dedicada a uma única causa, um ódio tão profundo, e ao mesmo tempo uma admiração tão grande, e um respeito... eu gostava da guerra, pois ela fazia eu me sentir muito mais útil, e menos desprezado. Eu tinha que ir para o campo, matar, ver o sangue de todos eles, de todos os humanos e todos os outros, as cabeças rolando. Eu mesmo me via bebendo sangue em alguns sonhos. Sim, eu sei que parece doentio, mas essa é a verdade. Minha vida não seria nada se eu não pudesses descarregar todo o meu ódio, e principalmente minha inveja matando pessoas. Meus ossos ficam mais frios quando penso em sangue. É como se eles desejassem ser aquecidos. Às vezes, eu realmente me tornava o animal que todos dizem.
De onde veio aquilo tudo? Ora, não sei. Eu podia apenas nadar observando a exposição, olhando para as pessoas, que ao mesmo tempo me olhavam, desconfiadas. Meus seios à mostra, todos olhando. Eu não podia fazer nada. Minha lágrimas se esvaiam na água, mas eu estava disposta a fazer aquilo. As moças mais jovens sorriam, os homens me olhavam às vezes com respeito, outros com luxúria. Alguns baixavam os olhos, eram educados. Era um lugar magnífico, apesar de tudo. Pena que a situação fosse tão horrível e, constrangedora. Gostaria que aqui fosse como aquele planetas do outro lado de Hamin, onde as mulheres podem andar com os seios à mostra, e não existe esse tipo de preconceito. Coisa bem longe desses costumes que adquirimos sendo colônia de Jolar por tanto tempo. Minha tristeza tinha até se transformado em raiva, mas eu tinha que continuar olhando a exposição.
Uma das poucas boas coisas que você ganha com este trabalho é poder apreciar as culturas dos outros povos. A viagem de Creta a Ata é demorada (dois meses!), e eu pude apreciar uma das naves mais bem modeladas que já vi. Mas o bom mesmo é que eu receberia um submarino Álamo (sim, daqueles dourados!) com total liberdade para exploração. Para falar a verdade, esse foi um dos poucos motivos para que eu não me suicidasse de tédio ou me tornasse um pirata. Dos poucos! Estes submarinos são realmente maravilhosos, possuem armas à vontade, televisão... tudo! Não vou ficar citando!
Eu sempre adorei a leitura. Comprei quatro daqueles grandes volumes dos Rapanatis, de papel, cada um com umas sete mil páginas, desgastadas, coisa velha mesmo, e li tudo, na língua deles, que é horrível e muito difícil de ser decifradas. Adorei. Lendas sobre guerreiros, monstros, criaturas, histórias quase religiosas, muito velhas. Uma obra fantástica. Você deveria ler. Se fosse permitido ser traduzido, talvez eu fizesse isso. Mas eles não deixam. Não querem misturar a cultura fantástica deles com a nossa, humana. Ainda há, infelizmente, muitas dessas barreiras que nos impede de conhecer nossos irmãos a fundo. Mas nós podemos tentar encontrar algumas tradução aleatória, alguma coisa mais mal feita, clandestina. Vai ser difícil e a tradução deve ser ruim, pois é muito difícil traduzir a língua deles. Conheço apenas a principal, Kallah. Mas, dependendo do planeta, há variações. Eles não possuem religião, mas gostam muito de guardar os costumes. Eu tinha medo de ser estuprada quando fosse pra lá, mas eles não gostam de humanas, e nem são bárbaros, como é a idéia que temos deles. Foram muito gentis, e apesar de rudes, os hotéis deles eram confortáveis.
E naquele hora, eu já não podia fazer nada, além de me lamentar e tentar esquecer os crimes passados. Eu estava prestes a morrer, era isso. Me senti mais que desanimado, triste. Senti que tudo em mim se esvaíra. Eu queria viver. Não tinha culpa de participar de um movimento, uma saída, e uma possível solução para os grandes problemas desse maldito mundo. Mas eu fui pego, ora! Devia me portar como um guerrilheiro, um acionista. Queria acabar com todos eles, a UPUC, os governos, o conselho, tudo. O universo é grande demais. Eu sempre achei isso. Deveria ter espaço de sobra a todos. Mas não tem.
Nem sempre nossa história foi assim. Pois eu nem sempre quis aquilo. Eu queria apenas agarrá-lo, lamber todo seu corpo, poder me libertar, e libertá-lo. Quando era mais jovem, gostava dessas coisas. Gostava de poder sentir que o sexo me transformaria em outra mulher. Eu era tola. Pensava que havia saída para esse tipo de amargura. Nem sexo, muito menos drogas. Eu deveria me suicidar? Pensei, também, mas não havia saída. Eu queria apenas era livrar das minhas costas o peso todo... tudo aquilo que sempre carreguei...
E eu dirigia, meu amigo! Dirigia para todos os lugares. Transporte. Carga. Era um dos senhores do espaço. Nunca devo ter passado mais de um dia em terra firme nos últimos cem anos. O que acha disso, hã? Perdendo minha vida? Não, acho que não. Posso conhecer coisas, e mundos que você só pode pela televisão. Sim, é disso que estou dizendo. Sabe quantas línguas eu falo? Mais de cinqüenta, com certeza. Eu sei que não há utilidade nisso, ma maioria fala humano mesmo... mas e daí? Você pode dizer que fala mais de cinqüenta línguas? Eu posso! Ahh... há Calterianos que falam mais de mil línguas? Impossível!
Eu só queria poder voltar para o meu amor.
Fui levado para um lugar estranho. Tive até mesmo medo de morrer, acredita? Como eu era bobo...
Estudei matemática por dez anos, física por trinta. Mesmo assim acho que ainda sou um poeta...
E quando menos esperávamos, o carro estava despedaçado...
Porque ninguém podia fazer aquilo! Era muito estranho e, pra dizer a verdade, anti-ético!.
Eu acreditava em Ázur, Era por isso. Foi por isso que quis entrar. Porque sentia uma agonia muito grande. A verdade é que tinha medo do mundo. Me sentia muito jovem e novo para poder enfrentá-lo. Meu pai certamente morreria algum dia, e eu não teria como me sustentar. Não conseguia mais estudar, e minha namorada me largaria. Não queria viver às margens da sociedade. Foi por covardia, eu admito. Eu fui um covarde e entrei. De cabeça. Não tinha mais medo. Estava ansioso, desesperado. Mais até mesmo do que Zaiam. A verdade era que eu tinha um medo enorme que o céu ou, sei lá, as coisas fossem cair sobre minha cabeça. Achei o túnel um recurso mais fácil do que o suicídio. Tinha menos medo dele, porque, talvez, dentro dele eu pudesse criar um mundo onde as coisas não parecessem tão assustadoras. Foi por isso.
Paul então sentiu-se mais grandioso. Percebeu, naquela hora, o que o túnel representava. Não, nada de cubinhos, ou o grande azul. Ele perdeu sua visão, seus sentidos comuns. Começou a guiar tudo apenas através do pensamento, da meditação. Não, ele não possuía corpo. O túnel era muito além de físico, muito além de real. Era um mar de memórias, de onde tudo se tira, tudo se vai. De onde tudo foi tirado. Parecia que o mundo inteiro estava ali, preso dentro de uma espécie de universo paralelo. Percebeu então que as entidades do túnel não se escondiam. Na verdade, elas procuravam com desespero a comunicação, mas não sabiam como se aproximar dos novos visitantes. Não poderia dizer “pessoas”, porque ele mesmo já não era uma pessoa. Entrar no túnel e dominá-lo era um exercício para poucos, e esses poucos mesmo assim se perdiam, fugiam às rédeas, corriam em disparada. Abriu então os olhos, e viu apenas um caminho, sem forma definida. Percebeu outras sensações desconhecidas, como se sua cabeça crescesse e diminuísse constantemente, pulsando. Não podia mais ver seu corpo. Havia encontrado finalmente algum significado para aquilo tudo. Bastava seguir em frente, e se tornar parte de tudo aquilo. Teria de dizer adeus às suas memórias, à sua consciência. Poderia andar para sempre, talvez. Poderia tentar voltar algum dia, mas não passariam de fragmentos, de pensamentos roubados. Não valeria a pena. Tudo era diferente e irreal, mas agora já parecia muito mais familiar. Bonito, até. Foi uma das últimas coisas que sentiu. Havia encontrado as entidades, que acenavam no fim das estrada. Lá, ele era bem vindo. Não podia entender como tudo aquilo poderia ser considerado um diversão mecânica e estimulante. Era muito além. Era quase como passar de um estágio de existência para outro. Olhou para frente, e caminhou. Jamais pensaria em olhar para trás novamente.

- Ele morreu. - Disse Ázur, com toda naturalidade, numa voz calma e baixa. Estava verificando os pulsos de Zaiam, esbranquiçados, pálidos. O corpo dele inteiro estava. Não havia batida cardíaca. O corpo havia amolecido, e despencado da cadeira. Ázur estava completamente dopado, sem consciência de nada, longe de qualquer tipo de preocupação, num estado de relaxamento inquietante e latente.
- O quê? - respondeu Paul, quase no mesmo estado, aproximando o rosto um pouco do de Zaiam, tentando cheirar algo. O tubo havia caído do nariz, e um pouco de qkell escorria pelo braço.
- Zaiam morreu. Não sei exatamente o que aconteceu. Era para ele estar ainda vivo, apesar do funcionamento cerebral transferido. Era mesmo uma espécie de transferência de mente, Paul. Toda a vida cerebral dele seria mesclada com a da máquina, mas ele continuaria vivo. O coração continuaria batendo. A máquina mandaria esses impulsos nervosos e substituiria as funções vitais enquanto ele estivesse no túnel. Essa é uma explicação muito primária, mas você não entenderia se eu explicasse direito. A questão é que o corpo dele morreu. - Continuou Ázur, sem levantar a voz, olhando com olhos sombrios e cabisbaixos o jovem à sua frente.
- O que você fez de errado...? - perguntou Paul, mostrando um rosto que expressava uma mistura estranha de estado de choque e passividade. Assim como Ázur, não estava conseguindo sentir nenhuma culpa ou preocupação. Sua voz era mansa e baixa.
- Não sei. Acho que foi na hora de aplicar a seringa. Era para o líquido começar a ser injetado logo que a agulha encostasse na pele. Talvez, nós tenhamos o matado quando enfiamos a agulha em seu cérebro, mas eu não sei bem. Não sou médico, sou técnico. Eu acho que esqueci de programar esse detalhe da seringa...
- Mas ele chegou a entrar no túnel? - perguntou Paul, ainda sem se mexer. Na verdade, nenhum dos dois mexia nada além dos olhos e a boca durante aquela conversa. Os efeitos das drogas estavam tão fortes que eles se sentiam flutuando, e conseguiam contemplar tudo sem precisar se mexer.
- Acho que não. Ele morreu antes, Paul. A máquina está dizendo que as ondas cerebrais... o funcionamento da cabeça dele... foi transferida, mas acredito que tenha sido como... hmmm... uma carcaça sem vida e nem utilidade. Como se fosse um monte de fiação sem função nenhuma, entende?
- Não sei, Ázur. Mas acredito em você. Não deve ter nenhum técnico melhor do que você nesse planeta. Afinal, seus colegas muito mais velhos não possuem o mesmo nível acadêmico... - disse Paul, olhando para cima.
- Sim... - respondeu Ázur, evasivamente. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, sem perceber nada além das confusões a atritos de seus próprios pensamentos, quando Ázur disse, finalmente:
- E você vai querer entrar?
- Não há perigo?
- Há. Zaiam morreu.
- Ele não entrou mesmo?
- Não. Ele morreu.
- E você acha que eu posso morrer também?
- Sim, mas a chance é pequena.
- Então, acha que devo entrar?
- Sim. Você deveria entrar. Vou ficar aqui fora. Se ocorrer qualquer tipo de erro, eu te trago de volta. Não vou mais mexer com esse tipo de tecnologia. Se quiser, vai agora.
- Certo. - respondeu Paul. Não estava em condições de raciocinar, nem de medir conseqüências. Ázur começou então a balançar a seringa. Ainda havia pelo menos dois terços do líquido utilizado em Zaiam dentro dela. A água começou então novamente a se misturar com o pó cinzento, que se acumulara no fundo, e a ficar prateada. Paul sorriu. Parecia que nada havia a perder ali. Num gesto rápido, e sem palavras, ele levantou o queixo, e Ázur enfiou agulha dentro da narina dele. Desta vez, foi sem dor. Paul mergulhou num profundo sono de uma vez.
Ázur ficou lá, parado, olhando. Checou o pulso de Paul. Nada. Estava morto, também. Pensou durante um tempo em qual teria sido o seu erro, ou se não tivera cometido nenhum. Pensou que talvez ele estivesse agora no túnel, e quem em questão de segundos voltaria. Não voltou. Esperou trinta segundos, dois minutos, dez, uma hora. Nada. Não fazia a mínima idéia de quanto tempo os três haviam passado ali. Continuava em transe, que duraria provavelmente a noite inteira. Só poderia voltar e sair do “abrigo” da mesa de manhã. Sabia que ninguém se importaria, pois aquilo era comum. Mesmo assim, num impulso, pegou a seringa. Restava ainda um pouco da coisa prateada. Provavelmente, seria acusado mais tarde de matar dois dos seus amigos, e teria sérios problemas. Esses pensamentos vieram, mas acabaram voando longe em sua mente. Tinha tomado quatorze doses, entre comprimidos, pílulas e pastilhas. Imaginou o túnel como uma única saída, uma forma de prolongar tudo, e de não perder nada. Depois se preocuparia com a realidade. Balançou a seringa, e enfiou a agulha na narina.

Ciro Inácio Marcondes


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