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cronicas-->Marcha de Sydney -- 16/02/2003 - 22:48 (Francisco Nazareth) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Outros Mundos Possíveis"

O dia amanheceu cinzento e pesado; um calor sufocante abafa o pensamento e faz-me sentir que é hoje, sim, é hoje que o céu nos vai cair em cima. O Verão em Sydney é assim: ou sol e vento ou chuva e humidade (sempre com um grande e abafado calor).
Faço 8 km. de autocarro até ao centro da cidade, passando pelos incaracterísticos subúrbios nos quais foi reciclado o sonho dos imigrantes. Disseram-lhes, antes de virem, que, por aqui, "os dólares cresciam nas árvores". Em vez disso, trinta anos de trabalho trouxeram-lhes uma casa de tijolo burro, dois ou três amigos e um subúrbio cheio de suspeitas, insegurança e preconceitos.
À medida que me aproximo da cidade não consigo deixar de pensar nas malapatas do "multiculturalismo" "pronto a servir" os desígnios do Estado: aqui vivem os libaneses, ali os italianos, mais além os portugueses. Onde estão os "mestiços"? Não existem; nem sequer a palavra existe. De acordo com o dicionário, a língua inglesa só lhe atribui sentidos negativos, como, por exemplo, "mongrel" termo muito usado para qualificar as imensas massas aborígines que foram retiradas às famílias para serem "esbranquiçadas" e "civilizadas" em missões cristãs. Só agora o mundo começa a saber disto (a tomar consciência deste "apartheid" silencioso), sobretudo através de um filme que circula neste momento em Portugal, chamado "Vedação".
Num país sem misturas (onde é extremamente difícil, por exemplo, explicar que o Brasil tem uma cultura brasileira!), cada um vive no seu "gueto", cada um abraça o seu estereótipo do "outro", cada um cria a sua versão do medo e da desconfiança. Entretanto, o sistema - de origem anglo-saxónica e capitalista "avançada" - reina sobre todos. Os cenários são estes, a caminho da cidade: subúrbios e mais subúrbios, cheios de bem estar material e miséria espiritual.
A caminho da cidade telefono a uma amiga. Diz-me que está junto da "Archibalds Fountain", ao fim de "Hyde Park". Saio do autocarro e verifico, desde logo, que vai ser impossível encontrá-la. A ocasião é unica, histórica, memorável. A diversidade estereotípica - isolada pelos discursos de poder e pela imensidão do espaço - desceu à cidade. Oxalá fosse sempre assim ... oxalá!
Gregos sorriem para libaneses, anglo-saxónicos confraternizam com latino-americanos. A sociedade dos exilados exprime-se: sem barreiras, sem estereótipos, sem o controlo excessivo das carreiras, do dinheiro, do sistema, da polícia, dos horários. A propria polícia faz algo nunca visto: dança! Pessoas banham-se na fonte ao som de "techno", grupos imensos dançam com música latino-americana improvisada. Uma mulher grávida pintou o símbolo da paz sobre a barriga da esperança. Hyde Park, um espaço sombrio, rodeado por referências neo-clássicas e coloniais (típicas de uma busca nostálgica por um passado europeu que, não só não é possuído, como nega a herança indígena local), ganha nova vida , tranforma-se num "happening" renovado dos anos 60, época na qual muitos dos presentes pensaram que algo mais era possível. Reparo na diferença de gerações: a que vai dos 15 aos 30 está bem representada; a sua fluidez rememora a ideia tão badalada pelas globalizações alternativas: "outro mundo é possível"; a que vai dos 45 aos 60 também; recupera aqui o seu sonho de mudança e relembra os protestos contra a guerra do Vietname; tem também a experiência da surdez do poder e sabe que este invade as consciências de modo silencioso. Só a minha geração, a que vai dos 30 aos 45, não aparece ou é, no mínimo, minoritária: muito poucos; andam demasiado preocupados com o dinheiro que ganham e com a escada corporativa; viveram os vinte anos no cinismo dos anos 80 e legitimaram pelo silêncio a primeira guerra do Golfo (eu proprio me culpo por isso!). Douglas Coupland chamou-nos "Generation X". Talvez o "X" servisse, hoje, a ideia de "incógnita matemática", de ausência de sentido. Este manifestou-se temporariamente nas guerras universitárias da identidade. Só que, como bem diz Naomi Klein, enquanto nos preocupávamos vaidosamente com quem era "representado" no "écran", por trás o mesmo era vendido. Em certo sentido, comprometemos a possibilidade de uma consciência ideológica dentro do fantasma do narcisismo.
Não é isso que acontece hoje: o narcisismo foi reinvestido de um "poder-outro", através de um exercício de apropriação e deslocamento retórico. A imagem ganhou poder de denúncia e - contra a manipulação mediática - nada melhor que apresentar o fantasma que ela esconde: pode ser o que significa um tipo que passa por mim; pintou-se de branco com um buraco (vermelho) de bala pintado na testa. No meio do peito escreveu: "fear equals control"; (muito) fica dito.
Os discursos são momentos de coragem. Laurie Brereton suprime a (muito notada) ausência do "seu" Partido Trabalhista. Defende a (já pouco original) tese da dissidência de estado: deixem trabalhar os inspectores. Não é muito aplaudido. Bob Brown, senador do Partido Verde ("The Greens") faz um discurso economicamente contundente. A retórica das inspecções não resolve o problema. Os biliões gastos pelos Estados Unidos para colocarem tropas no Golfo chegavam para duas coisas fundamentais: acabar com a fome no mundo em três anos, e financiar suficientes projectos de investigação que propiciassem uma redução realmente eficaz nas camadas de gases que destroem o equilíbrio do planeta (situação na qual a Austrália também anda a reboque dos Estados Unidos, não tendo ratificado os acordos de Kioto). Além disso, seriam ainda suficientes para reduzir o analfabetismo exactamente nesses países - presentemente atacados - que foram condenados ao "sub-desenvolvimento" por governos fantoches instalados pela CIA. Contundente; forte; pungente; os apalusos reflectem-no.
Mas a intervenção mais aguardada, a mais desejada, fica para o fim: John Pilger, jornalista e dissidente australiano que os portugeses deveriam lembrar como figura de proa da denúncia dos massacres perpetrados pelos militares indonésios em Timor. O seu dedo acusador tem "disparado" em muitas direcções: da prostituição instalada pela missão das "Nações Unidas" no Cambodja até à penúria das comunidades aborígines abandonadas pelo racismo sócio-estatal neste país, nada lhe escapou. Como jornalista e "free-lancer" (não tem emprego neste país uma vez que os jornais de maior tiragem - cujos donos são Rupert Murdoch e Kerry Packer - já várias vezes lho recusaram) tocou num ponto fundamental: o modo como os "media" afunilam o discurso tornando-o manipulável pela tríade Bush/Blair/Howard. Tendo escrito para o "Guardian", esteve no Iraque por alturas da primeira guerra do Golfo e apresentou-se como testemunha dos chamados "danos colaterais": Quantos jornais mencionaram as crianças mortas? Quantas televisões falaram nos iraquianos enterrados vivos? O silêncio foi, momentaneamente, sepulcral: acabou interrompido pelo aplauso triunfante de 600 mil pessoas (mais 200 mil que por alturas da marcha pela reconciliação aborígene). O ponto de acusação de Pilger é, assim, o silêncio dos seus companheiros de profissão, demasiado preocupados com o dinheiro que ganham. Como estive a tirar fotografias e me encontrava junto ao palco, pude ver muitas faces suspeitas à minha volta ... a verdade (seja lá o que ela puder ser, na sua transitoriedade) custa muito e, pelas expressões circundantes, custa, de facto, muito dinheiro.
Entretanto começa a chover torrencialmente (usei o pretérito em relação a Pilger propositadamente: dá-lhe um destaque histórico, uma relevància de "lastro" que a sua imponente figura merece) e a marcha, iniciada no parque, segue pelas ruas da cidade. Decido ir para casa a pé. Subo Oxford Street e viro para a Flinders Street já completamente encharcado. Encontro demasiadas faces (muitos "zombies") de quotidianos inconscientes. Um casal de homossexuais musculados faz "braço de ferro" sobre a mesa de um café. Numa cidade onde o seu discurso adquiriu o estatuto de dogma maioritário, os seus preconceitos não parecem mudar: tudo continua rígido, quadrado e dividido como antes, tudo é estereotipicamente "imagológico". Contemplo (em contraste) dentro de mim a fluidez a que assistira antes. O meu mundo não será o mesmo: "Outros - vários - mundos são possíveis" (pluralidade esta para a qual o meu irmão me chamou a atenção).

Francisco Nazareth
Sydney 16/2/2003
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