À Sombra do Jatobá -VI
CIUMES DE FILÓ
Junto à personalidade forte de Delfina, as outras se desenvolviam à sua sombra, dependendo das suas ações e iniciativas. Com Tobias e Vadico, ela nem sempre lavava a melhor, porque eram homens, machões, como o pai. Dominava-os aos gritos e discussões; acabavam por obedecê-la, por tratar-se da irmã mais velha e por Otávio e Dalva terem deixado as rédeas em suas mãos; sabiam que mais dias, menos dias, partiriam, como Manfredo havia partido, e ficariam livres, fariam de suas vidas o que bem entendessem.
Com Filó e Elvira a história era outra. Delfina dedicava-lhes um amor dominador e ao mesmo tempo desigual, de acordo com a índole de cada uma, com a idade de cada uma. Para com Elvira, era um sentimento de proteção maternal que a guiava, já que lhe trocara as fraldas e lhe ensinara os primeiros passos. Tinha orgulho de sua beleza, de sua suavidade, de seus cabelos longos e cacheados, de seu todo delicado que parecia pedir proteção. Elvira saíra, todinha, à mãe. Já Filó, forte, calma e obediente, penava nas responsabilidades. Entre elas existiam oito anos de diferença, usados para comandá-la e obrigá-la a zelar pela menorzinha. Filó cresceu ouvindo Delfina gritar:
- Olha essa menina, Filó. Cuide dela!
A medida que o tempo foi passando, a pobre Filó foi se enchendo de inveja e lançava olhares compridos à pequena privilegiada que, por ser acobertada pela irmã mais velha, tornava-se dengosa e cheia de não-me-toques. Filó, de natureza pacata e bondosa, cuidava com carinho da tirana, mas sofria calada com a diferença de tratamentos.
Quando pequenas brincavam de bonecas e armavam suas casinhas, em baixo da sombra do jatobá; as primas Antonieta e Amália vinham brincar com elas. Por dá-cá-aquela-palha, Delfina enfezava, juntava o que era dela, grudava na mão da irmã e saia xingando. Filó via a brincadeira interromper-se, o tempo fechar, e ser arrastada, aos prantos, para casa.
Dalva, sempre gentil, chamava a atenção da brigona:
- Delfina, meu bem, não fique assim brava! Não xingue as suas primas! O anjinho da guarde chora!
A menina fuzilava o olhar e respondia, malcriada:
- Ele que limpe o nariz nas asas! Chorão!
Mas quando queriam arreliar com ela, os irmãos começavam a bater com a mão direita na palma esquerda e, de longe, gritavam:
- A Delfina comungou! A Delfina comungou!
Gritavam e corriam, para fugir das chuvas de pedras e mangas verdes que ela lhes atirava à torto e à direito, imprecando:
- Diabos! Vão à merda! – e outros adjetivos que faziam parte do seu vocabulário.
Isto porque, Dalva havia contado que, quando muito pequena, Delfina costumava acompanhá-la, diariamente, à missa e, um dia, não agüentando a tentação, assim que a mãe se dirigiu ao altar para tomar a comunhão,ela botou um lenço amarfanhado na cabeça e foi atrás. Dalva ao voltar contrita ao se lugar, deu pela falta da filha e buscou-a pela nave. Lá vinha a menina, de mãos postas, equilibrando o lenço na cabeça e, com prazer, mastigando a hóstia, como quem mastigava goma. Dalva, contendo o riso, pediu ao Cristo que perdoasse a irreverência da filha. Recordar esta humilhação era insuportável para Delfina e, sabendo disto, os irmãos vingavam-se dela, lembrando-lhe, aos berros, a sua vergonha.
Filó, amando e temendo a irmã, acima de tudo, admirava a sua tenacidade, o seu modo desabrido de falar e enfrentar pessoas e fatos, principalmente a maneira de igual para igual com que ela enfrentava o pai. Filó, humilde e submissa, receava desagradar Otávio, ficava aturdida com a sua voz grossa, a sua maneira rude de se expressar, por isto admirava a coragem da irmã. Reconhecia que o pai era um bom páreo para Delfina, torcia-lhe o topete, mas a respeitava também. À medida que Filó foi crescendo e percebendo os mandos da fazenda, notava a rivalidade que existia entre os dois. Às vezes Otávio se exasperava com a teimosia da filha mais velha, perdia as estribeiras e gritava, batendo no peito:
- Delfina, “eu” entendo de gado, não se meta! “Eu” entendo de plantar e colher! “Eu” entendo de comprar e vender! Lugar de mulher é na cozinha, Delfina! – e não dando tempo para a filha retrucar, saia batendo as portas.
Com os conselhos de Dalva, Delfina maneirava, a raiva passava, mas ficavam as coivaras, sequinhas, prontas para reacender, no menor sopro.
Além de Elvira, somente a mãe era endeusada pela fera. Delfina chamava-a de “minha santa” e, para livrar a santa de trabalhos e dissabores, esbravejava e botava os irmãos e criados no cabresto.
Filó levava a sua vida assim, pelos cantos, atendendo a irmã, mas fugindo da sua presença. o mais possível. O horrível, mesmo, eram as aulas de piano. Delfina tocava com vigor e entusiasmo. Seus dedos ágeis e corajosos corriam pelo teclado e tiravam-lhe sons fortes, vibrantes, terminando as músicas num acorde fechado, retumbante, numa batida seca, parecendo afirmar: “Falei e disse, pronto!” .
No entanto, adorava ouvir as barcarolas, as sonatas e modinhas arranhadas por Elvira, chegando a suspirar de gosto. E não era só pela música ou beleza da irmã mais nova que Delfina tinha predileção; permitia-lhe que suas unhas fossem compridas e arranhassem o piano, estalando em seu marfim. Para evitar de quebrá-las, a mocinha arrebitava os dedos, numa posição ridícula. Ela, Filó, devia saber as escalas de trás para frente, estudar com afinco, saber a lição de olhos fechados. Delfina punha-lhe uma moeda nas costas das suas mãos e, ai se elas caíssem... Por que – se perguntava Filó – nestes confins do sertão, a Delfina há de querer uma virtuose no piano? Nos momentos de revolta, Filó rezava:
- Oh, meu Santo Antônio Casamenteiro, arranja um desavisado para casar com Delfina e levá-la para em longe...
Somente um desavisado mesmo poderia casar-se com Delfina.
Os pretendentes apareciam, mas arrepiavam carreira no primeiro desentendimento, quando a pretendida empacava nas idéias e destrambelhava a língua. Um dia, quando menos Filó esperava, o desavisado chegou, chegou bonito!
Continua no próximo capítulo
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