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Contos-->TROPEIROS DO JALAPÃO -- 08/09/2003 - 07:52 (Moura Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


TROPEIROS DO JALAPÃO

Moura Lima


Naquele cotovelo do caminho-real, bem em frente da tapera do morfético, saíam do solo areento dois robustos puçazeiros, como zelosos guardiões de beira de estrada. Os galhos negros e rugosos, pejados de frutos, balançavam ao vento morno da planura dos gerais. Nesse lugar solitário dos ermos, passaram a ser, de forma definitiva, o pouso dos tropeiros e boiadeiros.
Do alto da tapera, como sentinelas, rebenta bem no centro da cumeeira, espetando, furando o espaço, a galharada agressiva de uma mirindiba, como se estivesse espiando do alto a chegada dos intrusos. Um pouco à direita estende-se uma vereda, palmilhada de fechado buritizal. É o Brejo-dos-Porcos. Aí nasce, num acalento de criança recém-nascida, o ribeirão Faveiros que, leguonas abaixo, se transforma num tremendal e vai desaguar no rio do Sono. Quem passa pela estrada ouve, lá embaixo, o gorgolejar da água cachoando pelas pedras e areia das calhas do ribeirão.
Na sombra esparramada dos puçazeiros, o tropeiro João Veredão, do Quebra-Saco, resolve pernoitar. Salta com destreza da mula e vai botando abaixo os arrochos, ligais, bruacas e caçuás. Os homens da comitiva, cabrochões de tutano grosso, vão ajudando na descarga dos pesados surrões. As cangalhas suadas, de suadouro pra cima, vão sendo encostadas nos pés de puçás.
Pela imensidão dos sertões ainda cheios de luz, caminha a tarde quente, com o sol descambando na direção do Brejo-das-Almas.
O tropeiro-mestre, João Veredão, ciente de seu ofício, com o chifre de banha-de-porco misturada com azeite e carvão moído, à mão, vai examinando as pisaduras macilentas da burrada.
O arrieiro e cafumango logo instala no chão a mariquinha. E daí a pouco a chocolateira começa a chiar no fogo, espargindo o cheiro aromatizado do café.
De repente surge, no cotovelo da estrada, um cavaleiro à escoteira, de bursaca preta, puxando um cargueiro pelo cabresto. A figura do cavaleiro é imponente, arriata niquelada, caçambas de prata reluzindo, e à borraina da sela trazia um terçado ponta direita. E, resoluto, faz a saudação:
— Boa tarde, seu tropeiro! Não vou apear, que estou avexado, e a tarde vai morrendo, preciso pelo menos andar, ainda, uma légua antes do pouso. Só quero conferir a direção do Brejo-das-Almas.
— Não tem errada — diz Veredão, ainda pasmado com a chegada, de supetão, do cavaleiro; e estendendo o braço, mostra-lhe a direção:
— É naquele rumo, seu moço!
O cavaleiro tira do bolso uma bússola em forma de patacão reluzente e diz:
— É direção Noroeste! O caminho das trevas!. . .
O tropeiro, admirado, exclama:
— O senhor é um homem de muita saberença!

O cavaleiro de preto, na sua voz cavernosa, retruca, de forma convicta:
— Mestre não é o que sabe, mas é o que está eternamente aprendendo. . .
E levando a mão ao chapéu, dá adeus. A mula arraçoada de milho, ao sentir as esporas nas ilhargas, joga gorgulho pra trás e vai sumindo no verdor escumado do cerradão ralo, do solo adusto e impiedoso rumo ao Jalapão.
O tropeiro fica meio assombrado com o cavaleiro misterioso, ainda mais com a marca a fogo, no alforje, de um triângulo equilatério, e também com a frase em latim assinalada igualmente a fogo: “Salute in punctis trianguli”.
O catrumano, azuretado como um jumento perdido na várzea, faz o pelo-sinal, parecendo carregado de tangolomango e gunguna:
— Parece até o príncipe das trevas, o sujo. . .
Os bichos do mato, na vastidão do descampado, vão entoando o canto soturno da despedida do dia. A noite chega sorrateira e imperiosa no seio da natureza.
E os tropeiros, sentados nos mochos e couros de boi, ao redor do fogo, após o jantar, ouvem o velho Zé Cachoeira que, pacientemente, alisa na caxerengue uma palha de cigarro e vai cortando o fumo em rodelas e depois esfrangalha-o no covo da mão. E enrola, numa calma de monge rezando, o cigarro, bate o papa-fogo e acende-o, puxa uma baforada, coça a barba riçada de piaçaba e solta a voz amolengada:
— Arre, geraisão véio! É uma belezura que não acaba mais. Esses puçás, no mês de junho, ficam carregadinhos de flor branca, como uma grinalda de noiva, grudadinhas pelo tronco e os galhos. Por isso que chamo todo puçazeiro de jabuticaba do cerrado. Arre, mundão abençoado por Deus, sem cerca nem porteira! Já vi muita coisa boa e triste desta vida. O casco do meu burro socou muitas vezes o barro desses gerais. E os anos foi montando no meu lombo. Essa tapera aí, bem na frente de nossos olhos que a terra um dia vai comer, que assombra todo mundo, um dia foi morada de um leproso. A peaõzada arregala os olhos e exclama:
— De um leproso?!. . .
— Isso mesmo, seus cabras!
E continua:
— Foi no mês da ferra, um vaqueiro das bandas do rio Perdida, em campeio de gado, saiu nessas bibocas e pediu ao macuteno um coco-d’água. E ficou aguardando na sala do rancho, sentado no cepo de cachamorra. Com a demora do lazarento, do lugar em que estava abriu as folhas de buriti da divisória e viu, para seu espanto, o morfético escarrando no coité-d’água. E, segundo a crença dos leprosos antigos, se passasse a doença para sete pessoas, ficaria livre do mal. Assim ele agia, de acordo com a lei dos amaldiçoados.
O vaqueiro, de cá do seu canto, sacou da garruchona focinho-de-porco e aguardou o camunhengue. Para certificar-se de sua decisão abriu à sorrelfa, outra vez, as folhas e ficou observando aquela alma penada. De fato o negro mal-de-lázaro era avançado, jarerê dos grandes, e pustulento nos cantos das orelhas e braços. Cadê as sobrancelhas? Como não observou antes, senão não teria entrado naquela enrascada, cortaria por fora do rancho. Atarentado no pensamento, quedou-se imóvel no cepo, com o garruchão escondido no gibão. E pensou: “O capeta tenta e a faca entra. Esse excomungado nunca mais passa o seu mal a outro cristão”. Foi só o camunhengue voltar e estender-lhe o coité-d’água, que o pipoco berrou. O disgramento caiu barreado de chumbo, ciscando o chão. O vaqueiro, ao invés de tocar fogo no rancho, saiu jogando gorgulho pra trás, na direção do Brejo-das-Almas. O corpo do amaldiçoado os urubus devoraram num festim bárbaro.
Tempos depois da desgraça, um boiadeiro resolveu pernoitar na tapera e botou a peãozada no rodeio do gado. Quando foi a meia-noite o camunhengue apareceu num pé-de-vento sacudido, e a boiada estourou, foi bater nas margens do rio do Sono. Coitado do boiadeiro! Penou pra botar o gado na estrada, foi uma tribuzana infeliz, sem contar o prejuízo.
O velho tropeiro interrompe o prosão ferrado e pede ao João Catolé:
— Me alcance um coité-d’água aí, criatura!
E alisando a barba, continua:
— Eu nasci no morro da Cruz, em Conceição do Araguaia, que era todo Goiás, e ajudei muito o frei Gil Vilanova nas suas andanças pelo sertão, ora descendo com ele de batelão até Belém, como remeiro, ora de cavalo pelas brenhas escuras da mataria. Agora, quando ele morreu, eu não estava no batelão. Frei Gil pegou uma terçã maligna, que o levou pra rede. Mas também, era um servo de Deus que não se agüentava, estava sempre levando a luz aos selvagens, aos caboclos do sertão e se expondo à sezão braba. Como o estado de saúde dele era grave, os outros padres resolveram levá-lo para Belém, à procura de tratamento médico. Corria o ano de 1905. E lá se foi, Araguaia abaixo, o fundador de Conceição e construtor inicial da catedral de Porto Nacional. Quando o batelão, já muito dentro, passava da entrada do Tocantins no rio Araguaia, um pouco acima da terrível cachoeira de Itaboca, frei Gil prostrou, em agonia de morte, e entregou a alma ao Criador. Os passarinhos na serapilheira da margem do rio, as almas-de-gato, os urus gargarejavam os cantos estridentes e selvagens nos esgalhos das árvores, numa cantoria medonha. Os martins-pescadores voavam rente ao batelão, que seguia de bubuia naquela hora crucial. Um bando de pombo-caboclo cruzou a margem do rio de um lado para o outro, por cima do batelão, como se estivesse velando o instante final de Frei Gil na terra. A tristeza que se abateu sobre os remeiros foi grande. Pois ali, no fundo do batelão, dormia para sempre o sono eterno um santo, o Apóstolo do Araguaia, que trouxe luz, fé, esperança e amor para os povos sofridos do alto Araguaia. Desde as barrancas do Tocantins, de Porto Nacional até Conceição.
O batelão mortuário seguia ao sabor das correntezas. No céu ainda se avistavam duas braças de sol. Já tava esmorecendo, a sombra é-vinha resbalando pra terra. Frei Bigorre entoou o “Salve Regina”, que foi repetido em profunda devoção pelos remeiros. Ao piar dos passarinhos, no dia seguinte, passaram a perigosa cachoeira e chegaram na burguéia de Arumateúa, onde providenciaram o sepultamento de Frei Gil Vilanova.
A notícia de sua morte causou uma dor imensa, de Porto Nacional até Belém. Os meus companheiros-porcos-d’água, muitos deles não conseguiram meter o gargurau goela abaixo, de tanta tristeza.
E hoje, na minha santa ignorância de beira corgo e bruto-canela da terra, fico focinhando nas minhas idéias de sofredor abusado, de comedor de feijão-trepa-pau e de piau cabeça-gorda. Como o bom Deus lá nas alturas foi bondoso, mandando pra cá esses homens iluminados, para estes sertões esquecidos pelos governos, e esporeados pelos coronéis desalmados, que se fazem presentes nos berros dos paus-de-fogo da jagunçada! Homens que trouxeram nos cargueiros do bom-viver as bruacas da sabedoria e da bondade humana.
Os nossos filhos receberam educação, estradas foram abertas e cidades nasceram. Arre, meu Bom Jesus do Bonfim! O céu entornou a cuia da bondade pra estes sertões de chão bruto, nas pessoas destes padres!
- Agora, vancês, meus amigos, me dá um tempinho de tomar uma golada de café e acender o meu pito, que eu boto novamente o meu cargueiro de prosa no caminho.
O olhar dos tropeiros ao redor do fogo era de ansiedade, e um protesta animado:
— Eta prosa sacudida! O seu Cachoeira até parece padre falando bonito! Abriu-se, que só livro de missa. Vê se me volta logo, com esse cargueiro de prosa!
O velho, alisando a palha com o quicé, responde risonho:
— Vote, meu filho! Pra que pressa? Não sou filho-de-moita e não vou tirar o meu pai da forca. Ainda vou beber a minha troaca pé-de-coragem. Aí eu arrepio caminho, com vontade.
E levantando-se do couro de boi, caminha para uma moita de piaçaba.
Veredão pergunta-lhe:
— Aonde vai, numa pressa desta?
— Vou cortar manaíba, e já volto!
Assim que o velho tropeiro se retira, Veredão explica aos camaradas a sua vida:
— O seu Cachoeira é homem instruído. Anda com a bruaca cheia de livros. Boa leitura, deve tudo aos padres de Porto Nacional e de Conceição. Aliás, só falta mesmo é batina pra dizer missa, até pontilha um fraseado em latim.
O negro Libório, do seu canto, rindo, com o cachimbão de barro dependurado no queixo, diz:
— Burro carregado de livro nestes sertões, pode escrever, é doutor na certa!
Nisso o velho Cachoeira retorna e ainda ouve a brincadeira do tropeiro. E ali, na sua calma de água parada, brincalhão como sempre, mas espetando suas verdades, retruca:
— A sua inveja é a minha felicidade!
João Veredão, conciliador, rindo, arremata:
— Não liga não, seu Cachoeira, esse negro não rincha porque tem medo de ser engangalhado!
Os camaradas aplaudiram na alegria festiva da roda.
O coité de cachaça circula, e o velho tropeiro, no seu dizer, depois de acordar o anjo, volta alegre ao proseado:
— Ô xente, Ô xente!
Está na hora
Que sabina chora
E o pau flora. . .

Voltando à vaca fria. Dom Domingos Carrêrot foi nomeado Superior de Conceição, no lugar de Frei Gil Villanova. E na quadra de 1909, Conceição do Araguaia foi sacudida de pavor com a chegada do coronelão de Grajáu, Leão Leda, na frente de um bando de jagunço, armado até os dentes. Ele tinha a intenção de apossar-se da cidade e tornar-se o maioral, o manda-chuva. Em Boa Vista havia sido expulso pelo rifle de padre João, com seus brogúncios e cacundeiros. Já em Conceição chegou como um satanás pregando quaresma, fazendo desordens, saqueando e maltratando o povo. Escolheu para morar o sobrado de Pedro Solino, seu parente. Aí instalou sua fortaleza em armas e jagunços. Mas a vida é como um dado, tem seus pontos marcados. Pensou e repensou o seu viver. E chegou ao balaio das conclusões amargas: rico é como rosário, quando se quebra, só caem contas e humilhações. E um homem de sua estatura não podia ficar de cuia na mão, esmolando. E como desgraça chama desgraça, resolveu mandar os seus jagunços arrebanhar gado na região, pra formar uma grande fazenda. Os fazendeiros, alvoroçados com aquela brutalidade sem cabimento, vinham a sua pessoa, trazendo nas caronas os pedaços de couros que continham suas marcas e pediam ao tutanqueba, humildemente:
— Coronel Leão Leda, venho apelar pra sua justiça: poupe o meu gado, que me custou muito sacrifício. . .
O Coronel, na sua maior naturalidade, passava a mão pela barbaça ruiva e arregalava os seus olhos claros de gavião real, no seu jeitão samangolé, e respondia:
— Não posso abrir precedentes. Quem não quer ser ajudado, não aceita conselhos. Mas faz de conta que seu gado morreu de seca. Prejuízo pouco é lucro. Assim tudo fica na santa paz, e a minha fazenda batendo chifres! . .
E abria-se numa gargalhada zombeteira. O coitado, tremendo de medo, azeitava as canelas, batendo os calcanhares na bunda. Senão complicava a vida. O terror foi aumentando. Os jagunços cada vez mais arrogantes e distribuindo surras à vontade. Era só erguer a voz que o manguá cantava. E como é porcada ruim que suja vereda, os grande da terra não agüentaram mais, e resolveram limpar a vereda, a ferro e fogo. E na calada da noite, promoveram uma reunião secreta. E ali, no cochicho de rosário, ipaúba, Zeca Mourão e os padres tomaram uma corajosa decisão: mandaram chamar a caboclada do sertão pra salvar Conceição. Mil e duzentos homens atenderam o apelo dos padres. Todos queriam pegar no pau-furado, pra combater o macoteiro e seus paus-de-sebo.
O Coronelão de Grajaú, que não era besta, farejou nas abas do vento o perigo. E sem tardança refugiou-se como um peba, com a jagunçada no sobrado. Encurralado, acuado na sua loca, não fez de rogado: mandou bala! E a caboclada, como bando furioso de porco-queixada em roça de milho, repica o papo-amarelo e a garruchona de fogo-central. Os pispissius das balas zuniam quebrando telhas e rancando reboco das paredes do sobrado. O fumaceiro fechou-se, em serração de pé de serra. Os papocos retumbavam como trovões raivosos. O fogo nutrido durou dois dias e três noites. O coronel, desesperado, lamentava-se da sua atitude suicida, de ter se refugiado no sobrado. Alimento, água e munição se acabando. Jagunços mortos e começando a feder eram sepultados às pressas em covas improvisadas no interior do casarão, debaixo de chuvas de balas. A caboclada, lá fora, encharcada na pinga com pólvora, ameaçava invadir o sobrado e tocar fogo. E gritavam provocantes:
— A minha lambedeira está afiada pra abrir o bucho do coronel e castrar os seus paus-mandados!
E dentro do sobrado o clima era de pavor. Jagunços tremendo. Uns com borroleto e o barro descendo. Outros rezando. E lá fora o brado de cão raivoso:
— Cadê o jagunço Atanásio? Eta negro fedorento, que não vale uma égua velha!
O coronel sentiu-se um morto-vivo, com o fim se aproximando. Mergulhou no fundo de sua alma, que chorava copiosamente. E reviveu o seu passado de glória. Era neto do bandeirante paulista Silva Moreira, de sangue limpo, sem mistiçagem. Um homem honrado e de prestígio na sua terra, com suas doze fazendas cheias de gado, batendo chifres. Tinha vindo do império, das hostes monarquistas. Foi homem forte do partido dos bem-te-vis, depois liberal. Chefão sertanejo, que lutou com bravura nos altos sertões maranhenses. Lembrou, naquela hora amarga, da sua mula esquipadeira, da luta sangrenta de Serra da Cinta, onde morreram cento e vinte e seis jagunços. Não suportou mais a violência. E suas fazendas foram saquiadas, queimadas pelos seus inimigos. Foi obrigado a abandonar tudo. Era de sangue limpo. Um puro, que sonhou construir um Estado livre e independente, de Boa Vista até Pastos Bons. E veio atrás deste sonho. E agora? Era um miserável. Um infeliz, que perdeu a cabeça e cavou a própria sepultura. E sentiu-se num brongo trevoso, despido dos ouropéis ilusórios do mundo, das honrarias e do poder. Era a crucificação. A noite negra da alma. O descortinar da purificação rumo ao eterno. E as lágrimas correram-lhe pela face. De fora, entrou para o casarão um bramido de canguçu feroz:
— Vou amarrar o negro Atanásio... Pega-Égua no rabo de uma porca e tocar fogo!
Ao clarear da manhã, apareceu no telhado do sobrado um pano branco na ponta de um rifle, dando sinal de rendição. O Coronel Leão Leda dava o pescoço à forca. Pedia cabungo. Os papos-amarelos silenciaram, num profundo panejar de dobre de finados! A caboclada enfezada, rilhando os dentes, aguardou. Daí a pouco a pesada porta de cedro rangiu nas velhas dobradiças, abrindo-se para amanhã de morte. Os raios do sol penetraram pela porta adentro, iluminando o casarão. E o Coronel Leão Leda, aos poucos, foi aparecendo em passos de cavalo broco atacado de garrotilho. Era um molambo, sem os requififes de ouro. Barba crescida, salpicada de sarro, como capinzal sujo, cabeleira ruiva, assanhada, rosto vermelhão, inchado de sono, parecendo um pai-do-mato; camisa esfarrapada pra fora, ceroulas encardidas, fedorentas, amarradas nos tornozelos e pesão branco descalço. Olhar esbugalhado de doido. Uma figura assombrosa, da cor de jumento fujão, em chapada de chão vermelho. Não disse uma palavra. Ficou ali parado como um poste. E dois cabras, de supetão, arrancaram do meio da porcada de caititu, um com um longo punhal e o outro com uma pajeú afiada, e atravessaram-lhe o peito, sem dó nem piedade. Leão Leda, com uma cara de dor, ainda ficou fazendo aparro com o corpo, morrendo de pé como uma vela! Um cabra malvado, saindo do meio do cererê, encharcado de tigueira, desceu o cala-boca de jucá, no pé da orelha do Coronelão, que o danado caiu de borco. E a cabroeira berrou fogo no corpo, que chegava a levantar-se do chão.
Próximo do sobrado, num capuão de mato, as gralhas-cã-cã gargarejavam os cantos estridentes nos galhos de uma goiabeira-braba, na hora da matança. O filho do Coronel, Mariano, vendo o pai morrer, sacou de sua pistola e berrou fogo, acertando a perna de meu compadre, Zé Barqueiro. Foi o que faltava, a cabroeira caiu-lhe em cima, aos tiros e facadas. Fiquei com dó, era um rapaz de vinte e dois anos, na flor da mocidade. Os corpos foram atirados no meio da rua, como um surrão de abóbora. Dentro do casarão, a jagunçada tremia acovardada. Não tinha jeito de fugir, pois os mil e duzentos caboclos faziam o cinturão de ferro ao redor do sobrado. Oito jagunços foram presos. E no meio deles estava o terrível Atanásio, braço direito do Coronel e responsável por muitas mortes. Foi amarrado pelos pés e arrastado vivo pela rua a cavalo. E nos fundos da cidade, numa planura chata de cerrado, teve de abrir a própria cova.
O negro Libório, velho mulandeiro, já tordilho no avançar dos anos, coçando o pixaim, vivamente entusiasmado, diz:
— Eta causo triste, seu Cachoeira! Teve hora que pareceu conversa mole de beira-de-estrada. Mas como eu sei que o senhor não é peador de ema, boto fé! E então pergunto: Por que os padres, Zeca Mourão e Sipaúba não evitaram a morte do Coronel com seu filho, já que o homem estava acovardado no medo e tinha-se rendido?
— Não adiantava, seu Libório. O Coronel, quando aqui chegou, foi dando dia-santo pro povo guardar, e trepando na alma de todo mundo. O ódio foi crescendo e enraizando até rebentar-se nessa matança. Se os grandes da terra tentassem evitar sua morte, era bem capaz de morrer com ele, picados no facão. É claro que ninguém não queria ele vivo. Não aprendeu a regra do bom-viver, que ensina: em terras alheias, deve-se pisar no chão devagar. E essa região do Nortão de Goiás, das barrancas do Tocantins ao Araguaia, é como abelha, dá mel, mas não quer ser maltratada!
João Veredão, levantando-se do mocho, ergue um coité de cachaça e diz:
— Quem quer fazer penitência comigo?
O velho Cachoeira, no seu espírito bonachão, após uma coitezada da branquinha, volta à prosa animada.
— Depois destes acontecimentos, onde defuntamos o Coronelão manda-trovoada, mudei para Pedro Afonso. Aí esbarrei com outras dificuldades, com o barulho de morte matada da cidade. O jeito, meus camaradas, arre, meu bom Jesus do Bonfim, que vela por nós neste buracão da existência, foi pegar na carabina oitavada e berrar fogo na baianada. E ali, no meio campal do tiroteio enfezado, das bestas-feras, eu fiquei ao lado de Salatiel, cabra bom, de sangue nos olhos, dos quibas roxos, entrincheirado no sobrado do Coronel Ladislau, que azeitou as canelas no rumo de Carolina. Eta povo frouxo esses coronéis! Gostam de gritar os outros, no maior carrancismo do mundo, mas quando a coisa aperta, são os primeiros a correrem com o barrigão mole de surrão. Assim foi com o Coronel Ladislau, poeirou no mundo. E dali do sobrado berramos chumbo na cacunda da jagunçada. As carabinas, de tanto atirar, ficavam quentes, parecendo que estavam no fole de ferreiro. E a solução era verter água nos canos para esfriar. E lá fora os cacundeiros de Abílio Batata botavam fogo nas casas, subiam nos telhados e atiravam nas pessoas escondidas dentro dos quartos. Faziam pontaria de morte no povo correndo pelas ruas, e derrubavam na lapada do tiro. Na hora do ataque, muitos, atarentados do juízo, subiram em árvores pra se esconderem, e quando os jagunços descobriram, se divertiram pra valer, atirando nos coitados como se fossem passarinhos. E lá das grimpas derriavam no chão, como jenipapo, numa queda bruta de morte. Quem pôde correr, passou o rio do Sono a nado, outros morreram afogados ou foram colhidos pelos tiros dos pingueleiros no barranco. A velha Terta-do-Vão-Grande, ao lado do filho, João Mandioca, mandavam chumbo nos jagunços. No momento que abriu o tiroteio, ela estava preparando uma tachada de doce. Sentiu na alma sertaneja que era preciso ajudar na defesa da cidade, e fez-se mulher-jagunço. Às pressas desenrolou do saco de estopa a carabina papo-amarelo de estimação, de matar onça, que guardava bem azeitada. E ficou no vai-e-vem, dava uns tiros e corria pro tacho de cobre, que supitava no fogo, no rebojo borbulhante do doce de buriti. O filho reclamava:
— Larga desse tacho, mãe, vem pegar no pau-de-fogo!
A mãe, na sua frieza de espera de onça, respondia:
— Qual nada, meu filho, aí fora só tem uns tirinhos de caranha quebrando coco de tucum! Loguinho eu mando uns mangangas de bororé neles...
Arre, velha tesa no pau-de-fogo! Quando derrubava um jagunço, ouriçava de alegria, abrindo a boca desdentada de mascar fumo, numa gargalhada de rasga-mortalha. Também pudera, com o marido vivo, já iacaçar; com ele morto, na defesa da necessidade, arribava com o filho para as esperas de fuboca e anta. Subia nos pequizeiros florados e armava nas grimpas seu fiango. Ficava de mutuca pelas madrugadas, no tropear molengo da brisa sertaneja dos gerais. Boa pontaria, não perdia caça. Ela, como o filho, fizeram um estrago na jagunçada. Mas, quando descobriram, flexaram na casa como marimbondos-de-vaqueiro, e pearam João Mandioca, de pé e mão, como um porco. A velha, amarraram numa árvore, passaram-lhe o laço em torno da cabeça, como uma rodilha de cobra, bem acochada, e um cabra, montado a cavalo, deu uma arrancada de gorgulho, numa puxada de queda de boi, arrancando-lhe o tampo do couro cabeludo, deixando o crânio à mostra, como uma ossada branca de caveira. E não satisfeitos, meteram-lhe a lambedeira no corpo e tocou fogo na casa, com João Mandioca ainda vivo. Haviam pisado no rabo da morte.
Abílio Batata, como cabecilha da jagunçada, comandava trezentos cabras, e contou, como cabo-de-turma, com Passarinho, Miguel Umbuzeiro, Deocleciano, Barro Alto, Cacheado e Coluna de Satanás. Roberto Dourado não participou do “barulho”. Sorte nossa, se lá estivesse, não tinha sobrado vivalma. Era um baiano atrevido, de maus-bofes e coração cabeludo. Um cabra valente que só jararaca do rabo fino. A sua toca, aqui no Jalapão, é aí nas beiras do Brejão-do-Cavalo-Morto, nas cercanias do morro Saca-Trapo. Opinioso como burro encangalhado, só anda de pé com os jagunções, igual manadas de porcos-queixada.
O caldeirão de azeite, no fogaréu, foi supitando, o cerco fechando, os jagunços rilhando os dentes de canguçu com fome, e o jeito foi jogar o sapicuá no lombo. E derramamos na estrada dos gerais. E agora, recordando esse mau pedaço, o coração sacoleja no peito, numa toada de onça acuada, e vejo com os olhos da alma os nossos companheiros saindo correndo no rumo do rio do Sono. E nesse barruado do pensamento, eu vejo eles: Tamborete, Zé Gavião, Euledino Martins (Labareda), Chico-Venta-Arregaçada, Antônio Peleca, Mané-Bico, Zé Caetano, Chico Taboca, Panta-Leão, Leontino Corujão, Zé Dendê, Carrapato, Boca-Torta, Manezinho Pila, Calistrato e Queixada-de-Burro, Lourenço Mão-de-Paca-Assada.
O arrieiro, atento à narração, acrescenta:
— O senhor não falou o nome de Teodoro-Bunda-Mole, Saracura, Candiru e Zé Cantu.
— É a velhice, meu filho! Mas me lembrei, também, de Chico Arara, Zé Taquara, João Deitado, Odilon Suçuapara e Mané-Boca-de-Fole. Todos esses nomes me trazem um mundão de tristeza, no jacá da saudade, pois uns morreram na fuga, outros degeneraram ao lado de Cipriano. Como estou de rota batida pra Pedro Afonso, vou botar uma vela pra queimar, e debulhar o rosário pela intenção dos companheiros mortos.
O tropeiro Veredão pergunta-lhe:
— Mas o que o senhor vai fazer naquele cemitério?
— De fato, aquilo lá virou uma tapera, de melão-de-são-caetano e timbete. Mas vou buscar a minha irmã, Zefinha, que tá passando dificuldade, com seus filhos, na fazenda Saco-da-Serra, no Sertão da Chapada da Cangalha, um pouco adiante do rio Manuel Alves Pequeno. Em Pedro Afonso, não vou passar, salto antes, da balsa de buriti, na mata da Capivara. O meu compadre João-do-Bom-Será é o que vai briquitar com a macaca, eu vou perrengar no varejão. Vamos sair da barra do rio Caracol com o Sono, e torar no mundo, de água abaixo, como um boto. Tomo essas precauções, de comedor de feijão-trepa-pau, porque não quero falar com Cipriano, e não provocar malquerença. Mas conversa puxa conversa, e verdade tem de ser dita. No combate, ele era outro homem, que só pensava em defender a cidade. Como dizem os antigos: rio atravessado, rio esquecido. Assim ficou ele, pior que Abílio Batata; está saqueando, tomando fazenda dos outros e matando. A minha irmã mesma ficou sem nada. O marido, Manuel-do-Surrão, morreu no barulho. Agora, como paga, Cipriano rouba-lhe o gado, as miúças e a fazendola. Ele resolveu ser o dono de Pedro Afonso, e ai daquele que erguer a voz; é defuntado em cima das buchas. Já o Euledino Martins, que a jagunçada apelidou de Capitão Labareda, é um bom homem, cabra valente, que está rompendo estrada pra cá, para dar combate ao sebanceiro do João Alberto Cacheado, bundão de Abílio Batata.
Veredão, preocupado, acrescenta:
— Falou do mau, prepare o pau! O senhor não tem medo, falando assim de Cipriano, ainda mais com a jagunçada dele esparramada aí no Jalapão?
— Meu amigo Veredão, as minhas missas são todas de corpo-presente. Um homem, na minha idade, não teme mais nada deste mundo. Uma desgraça só é pouco. Quando mato a cobra, faço questão de mostrar o cacete!
Uma voz fura as trevas. Os homens silenciam:
— Ô tropeiro!... Ô tropeiro!...
Veredão responde:
— Quem vem lá?...
— É o vaqueiro Neco-Mão-de-Paca, do Baixão-da-Ema.
E o vaqueiro foi encostando o burro no acampamento.
— Por que não chegou logo, homem de Deus! Diz Veredão.
O vaqueiro responde:
— Vê lá se eu ia chegar na bistunta, pra vancê obrar no meu rumo, num barreado de chumbo! Ainda mais, com a jagunçada que é-vem aí, do Capitão Labareda.
— Vamos apeando!
O vaqueiro, descansando no lombilho, responde:
— Não vou apear não, eu só encostei porque vi fogo acesso; venho aí do Arrependido e vou picando a mula, no clarão da lua. Mas parei foi pra prevenir os amigos. No meu campeio de gado encontrei na beira do Arrependido um cigano arrebentado de peia, e meio zoró. O Capitão Labareda, segundo o que me contou o pobre cigano, chegou o cipó-miroró no lombo da ciganada, e desgraçou a mulherada. Foi um tendepá da peste! E a cabroeira é-vem aí, no sopro da tropa!...
Veredão, rindo, acrescenta:
— Agradeço ao amigo a preocupação. Mas fique sossegado, a nossa rota é o Baixão-dos-Porcos. Vamos indo pro Duro, a caminho de Barreiras, e não vamos encontrar com a jagunçada.
— É verdade, eles estão vindo pelo caminho do Arrependido, na direção da fazenda de dona Bela, e da fazenda Poção.
E erguendo o chapéu de couro, despediu-se dos tropeiros e desapareceu na escuridão da noite.
Um dos tocadores, encostado na pilha de bruacas, derruba um surrão e chama um camarada, baixote e atarrancado, para ajudar e, pilheriando, diz:
- Cabra baixo só serve pra sustentar carga de jumento, ou bater sola!
O ajudante zanga-se com a brincadeira e responde:
- Vá escovar urubu, vara-de-bater-pecado!
O outro protesta, na gargalhada do deboche:
- Esse cabra mofino não vale um arroto de muriçoca!
Os camaradas, ao pé do fogo, abrem-se numa gaitada alegre. A lua já ia muito alta no céu, quando os tropeiros encerram os causos lendários do sertão. Tudo serena no pouso. A tropa rumoreja no peador.
Um corujão gargalha para os lados da tapera do morfético.



(Texto extraído do livro VEREDÃO/1999)
Moura Lima
j.mouralima@zipmail.com.br

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