CÂNTICO EM LOUVOR DE EROS
para DEISE MARIA AGUIAR
Tomo I
Observo impassível palavra-argila.
Imponho-lhe as mãos,
Dedos – tentáculo.
Devagar, frígido, o projeto
Rende-se ao toque mágico
Na sala branca, sob fresta
De luz na janela despida.
Plano geral, o avental esmaece
N’água fria do balde
De cacimba extinta
Desde a infância.
Vaso metálico, construído antanho
A ferro e fogo, estanho,
Ao coro da lembrança
Do medo de dormir
Sem luz de candeeiro.
Câmera lenta, lúcida perscruta
O rito endiabrado
Das esperas.
A lente embaça ritmo crescente
Co’as mãos dissolve a massa
Envolvente, argilosa façanha
De escultor.
Planeja amiúde palavra esqueleto
Ossos, cartilagem e fluxo sanguíneo
À ordem desses deuses de penumbra
Distância.
No lado exterior à cena,
Canoro pássaro ronda seu canto
A descobrir qual passeriforme
Girando colibri, sábia inocência.
E mãos vêm e vão,
Contínuo e rítmico desejo enformador
De léxico-sintático,
Sem sopro fazedor de coisas,
Rés de chãos.
Argila, argila, irmã sombria
Gélida influência do meu dia,
Ínclita mensagem diuturna.
Companheira insistente, profundeza
Em eras, priscas eras abissais.
Que sentes tu, argila fria, fato,
No frigir de “n”
Tentativas?
Quão inóspito sou, teu dominante
Monarca inspirador desse desplante?
Insonora segues taciturna
Passiva, flexível, negligente
Sem se dar conta que à luz
Dás meu verbo, verso incitante
Austera melodia.
Criatura de medos
Densos, cruciais, aleivosia.
Para julgar-te, pois, quem sou
Que penso, que desejas mais
De mim, massagista infenso?
Repassar ao largo, vicissitude,
Em pratos e prantos limpos,
Dizimar honrosa e iminente
Covardia, pé-atrás, alegorias
De velhos/novos carnavais...
Repaginar consciência,
Dela dependerei absorto, enquanto
Assisto ao jornal das 10,
Extrema fantasia de me ver
Informado, mais, bem mais
Do que espraiar, umedecer e
Incentivar tua presença ignota
Em massa falida, permitida
Acolhe-me em teu regaço,
Despedaça-me em teu ermo desejo
Nos destroços de tua desarmonia.
Serei o que sou. Não existe deserto...
Senão o frio desertar de tua
Alma deslavada... medrosa e pia.
Acata-me nos desvãos de teu anfiteatro.
Hei de dizer do teu roteiro a fala
Roto mensageiro enquanto cala.
Minhas mãos, metas
Que se alongam e se desviam.
E tu, argila destemida alvissareira,
Até quando me derrotarás nessas
Batalhas sem cavalos de Tróia?
Tomo II
Dada a vida devotada,
Sou autor e ator que me persignas
No entanto tenho medo
De tais sinas, gestos e quetais.
Enformo-te à cabeceira da noite,
Já me foges à larga, à tardinha
Manchando meu destino de ígnea cor
E contemplo com pesar teu ir-embora.
“Peço-vos desculpas, retornai”!
É assim que me demandas, resoluta,
Posto que és palavra, dita astuta
A que não mais verei argila,
Matéria-prima que destila
O perene ser e estar na natureza.
Oh, palavra mediana, insuspeita,
Dói-me na glote, língua escorreita
Mantendo-me fragilizado
Até a ponta dos pés, martirizado...
Ainda estou consciente, tudo sinto
Neste gole irrefutável de absinto,
Imerso nessa noite inacabada.
Disforme estás, imagino
Sob bater de templo, em vez de sino,
A par da esperança que jaz morta.
Quero impingir-te filologia, aramaico,
Sânscrito e toda erudição que irradia
Do teu baixo ventre deformado,
Por me presenteares teu passado.
Vaga fêmea errante, descabida,
Autora dessas mortes, duma vida,
Que julguei fosse apenas descartada
De toda lexicografia que desanda.
Não sou quem pensas que sou,
Nem sou teu mestre,
Ainda que te lecione, instigue e adestre,
Mas sou um poeta fatal, sou suicida,
Mato enciclopédias mil, sou arrivista,
Triturei minha mãe num sonho anterior,
(Terei sido matricida?)
Não e não. Apenas inaugurei a vida
Que, como um deus, imaginei em ti.
É tarde. O sol meliante apronta um vago
Gesto. E eu a me fingir que presto.
Já estás pronta para quem
Trouxe-te ao mundo, alfabeto infame
Furibundo.
Exorto-te finalmente. Rompo um juramento.
Retiro as palmas dessas mãos e fundo,
Aproveito para te ofertar um chá bem quente,
Antes do esfriar do sol,
Reiniciando o mundo.
WALTER DA SILVA
Camaragibe, maio de 2004.
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