Certa vez um sexagenário, beirando a casa dos setenta, comentou-me sobre sua vida em torno das mesas de bar do Recife boêmio dos anos 50. Percebi, nos olhos brilhantes do homem, sua imensa saudade daquele tempo; saudade da boa cerveja comprada às grades, os bons papos acerca da "feminilidade feminina das mulheres", alguns destemidos ousavam afirmar que haviam descoberto o segredo das boas damas do gueto do bairro do Recife (segundo ele até as prostitutas tinham charme), saudade de tantas outras estórias contadas por garotos admiradores de Ataufo Alves e Pinxinguinha.
Não querendo ser saudosista mas acho que entendo o ar dubiamente saudoso e melancólico do homem. Saudoso pelo seu tempo de juventude, sua história de vida traçada entre as coxas viris de suas inúmeras amantes, de seus incansáveis cigarros, sua vida afinal; porém chamo a atenção do leitor ao seu teor melancólico. A melancolia fora estampada no homem nos últimos instantes de nossa conversa quando o mesmo olhava sua foto de datilógrafo oficial da delegacia de roubos e furtos do bairro de Casa Forte. Quando indagado sobre sua tristeza ao olhar a foto, o ancião falou que tudo o que vira estava acabando no mundo; sua profissão, seus costumes, sua dignidade e respeito que tinha para com os velhos quando ele era jovem... Ao despedir-me do Homem (o mesmo encontrava-se em um abrigo da cidade), notei que aquela conversa tinha mexido comigo; não devido à saudosa visão do passado que o homem possuía (afinal era a única coisa que lhe restara), mas por um assunto relativo ao contraste do novo com o velho presente em nossa sociedade.
Observo que hoje em dia encontramos a humanidade imersa numa cultura descartável; o velho é colocado à margem em quaisquer que sejam as circunstâncias... Talvez o leitor venha a argumentar que o ganho tecnológico fez com que naturalmente esta situação se efetivasse; concordo, mas vejo que nossa "descartabilidade" chega a níveis absurdos que, a meu ver, comprometem a humanidade do homem, como diria Paulo Freire. A velha máquina de datilografia da delegacia de Casa Forte hoje já não existe mais, decerto que o computador (no qual digito este artigo) é bem mais eficiente, mas chamo a atenção do caro leitor ao grau de envolvimento do homem com sua profissão; a fidelidade que tínhamos com o que conquistávamos,....As geladeiras gelavam eficientemente, eram limpas uma vez por semana e eram parte da família, .... e hoje? Talvez a sua geladeira cumpra sua função de forma regular e satisfatória, porém a necessidade de troca é fundamental para se estar concordante com os "novos tempos de tecnologia".
Espero que não me chamem de saudosista, mas o grau de envolvimento do sexagenário com a prostituta do bairro do Recife talvez seja bem mais complexo do que certos relacionamentos de hoje... Segundo o amigo ancião que inspirou-me o texto, havia no seu diálogo com a velha dama, uma mística, um grande respeito mútuo oriundo da perversão que não é a mesma de hoje...; as relações humanas eram vividas mais intensamente.
... O ser humano está desumanizando-se? Responda você mesmo caro leitor. Fica em minhas palavras apenas a lembrança do velho que morrera dois meses após a nossa conversa num asilo do subúrbio recifense. Qual era o seu nome? Prefiro não dizer, talvez nos identifiquemos com ele daqui a alguns anos...