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Cronicas-->TEMPOS E RUMOS -- 24/02/2003 - 07:31 (Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Pode não ser o fim dos tempos... ...mas bem pode ser um mundo ao qual falta linha.




Difícil saber quando alguém fala por si ou franqueia o seu aparelho fonador para a passagem de vozes do exterior. Aquele homem falava empolgado sobre a máquina de lavar roupa que adquirira para sua mulher. O grupo ali presente o entronizava no púlpito de um discurso laudatório ao progresso. A tal engenhoca de pós-última geração fazia tudo o que os punhos de uma mulher neurótica por limpeza executava com mestria e deixava de executar por falta de aptidão humana. O utensílio tão bem-dotado anunciava o advento da perfeição. Era capaz de extrair as roupas das pessoas no exato instante em que começavam a ficar sujas ou a exalar cheiros, encaminhando-as para o compartimento de lavagem por telecinesia. Dali, em poucos milissegundos, elas apareciam dependuradas em cabides dentro do guarda-roupa, ou dobradas em gavetas. Sabão, espuma e amaciante foram solenemente desbancados. O dispositivo era tão espetacular que ejetava a roupa seca. Até acabou por engolfar a missão do ferro de passar - coitado! - visto agora em peça de museu como ícone do atraso.

O ímpeto do comprador contagiava os ouvintes de tal modo que eles colhiam a impressão de que a máquina era inteligente e criativa, capaz de funções para as quais não havia nascido. Em uma ocasião, pelo menos, tinha entrado no banheiro do consumidor pelado para vesti-lo depois do banho.

Todos olhavam para o falante como o Messias decretador do fim de uma era de limites. Em meio ao constrangimento geral sobre as potencialidades do artefato, nem se dispunham a mais perguntar pelo mais-além de suas façanhas. Pouco importava que a peça funcionasse assim. Ele a tratava como alter ego.

A dimensão virtual toma conta do mundo. Coisas com atributos e desempenhos extraordinários são deglutidas com naturalidade e celebradas com o desejo saciado. A realidade vai sendo construída com o impacto arrasador da primeira impressão. Designers de projetos e idéias escolhem tudo por nós, quase sempre trabalhando para semear a certeza e a inevitabilidade do próximo passo.

Eu assistia a um concerto de música erudita que iniciou com Bach, Beethoven e Mozart e seguiu com uma mistura estapafúrdia. Como se o maître do restaurante sofisticado nos servisse um prato com trufas, cará, endívias e batata-doce. O público era açulado pelo regente a pular, dançar e soltar a voz para acompanhar os ruídos da orquestra sinfónica. Diziam que, desse modo, o povo tinha acesso à arte e à cultura, embora o que se visse fosse uma orquestra famosa destoando dos rigores de sua pauta de apresentação. Mas a educação tinha de chegar ao povo para educá-lo. Quando a orquestra desceu à platéia, o palco ficou sem ter o que mostrar.

Dias antes, hordas de fãs alucinados disputavam ingressos para o filme "Guerra nas Estrelas" a uma semana da estréia em filas de unanimidade nacional.

O último festival de Woodstock atingiu seu clímax em cenas de incêndios, destruição e pancadaria.

Confrarias inventam práticas as mais estúpidas e inoculam o prazer em adeptos lenientes com extravagàncias e coniventes com o perigo. A mais nova sensação (registro de agosto/99) é o canyoning, o êxtase que "consiste em escorregar, pular, descer ou subir corredeiras e desfiladeiros de rios sem botes". Para simplificar a descrição, um rafting, alpinismo sem bote, conseguem imaginar ou ficaram boiando? Parece que a morte anda monótona e o morrer precisa descobrir variações.

Recentemente, uma menina na Califórnia foi rotulada de "órfã de ninguém". Pudera! Gestada por mãe de aluguel, a partir de espermatozóides e óvulos anónimos, seus pais adotivos se separaram um mês antes de seu nascimento. Para quais rumos apontam os novos tempos? Que lógica, qual ordem comanda essa evolução?

A proibição da venda de bebidas alcoólicas nos campi de algumas universidades brasileiras gerou protestos de universitários e concessionários de bares. Os frequentadores do ambiente acadêmico sentiram-se invadidos na sua liberdade de se autodeterminarem. Defendiam o direito de chegar bêbados e vomitando às aulas matinais.

Quem cata papel e o joga no lixo é lixeiro ou, no máximo, bem- educado. Mas sempre surge alguém que amarfanha o papel e o joga em alguma bienal de arte. Esse é artista.

Anotações dispersas, com as quais costuro minha disposição de dar (-me) conta de um mundo confuso.

Costuma-se dizer que tudo muda ou tem que mudar, que as mudanças são fantásticas, muito além das percebidas. Que o espírito tem de ser aberto para não cair no obsoletismo, permanecer jovem. Será que é bem assim? Ou a torrente do mercado precisa nos convencer de que essa é a cláusula pétrea de sua sobrevivência?

O original da modernidade é órfão de origem, não tem linhagem, não desliza na história. É qualquer coisa que nasce de surtos desesperados de produzir alguma mirada de visibilidade mercadológica. Operadores midiáticos trabalham 24h para incensar esquisitices e monstruosidades ao pódio do sucesso.

Ser alternativo é condição para o surgimento de guetos de fanatismo, preocupados em marcar a diferença que não existe, porque é mero transgredir, sem inspiração própria, o que intentam contra o que mal ou bem existe.

No mundo dos costumes, das artes, das ciências e da produção de idéias em geral deveríamos poder contar com um prefeito de tolerància zero à mediocridade e à empulhação. Como o Giuliani de Nova York em relação ao crime. Uma instància que desse um basta às urinoterapias que grassam por aí. Pequenas concessões vão gerando factóides globalizantes de vulgaridades e insanidades. Seria bem-vinda uma resistência sustentada que livrasse multidões despossuídas e desarticuladas do alvo fácil de seitas não religiosas - concorrentes em adesão tanto ou mais que as próprias -, que poluem o clima com emoções enlatadas. Radicalizar a expressão dos atos pode ser o esgotamento do gesto de viver, a falência do simbolizar. Não adianta espernear a esmo. A coreografia da vida vem de um esforço de composição legível, sujeito a ensaios de depuração e de recolhimento. Isso demora, toma horas, não acontece sem a hora. Por vezes, quase sempre, ocupa o espaço de uma vida.

O exercício da liberdade virou anarquia, sem nenhum compromisso com o antes e o depois. Tudo vai sendo validado ao sabor do capricho do momento, sem observação a princípios, normas, ética e estética. Em nome de um estilo de vida descontraído, qualquer sandice é rapidamente abonada e utilizada na programação de mentes e corpos. Molda-se uma sociedade de perfil absolutamente complacente, na qual afrontar produções com algum crivo ou exigência de mérito é sempre atuação inflexível, ultrapassada, tolhedora da expressão. Juízos de valor...nem pensar. A escalada de pauperização de conceitos e enquadramentos nos conduz a uma plasticidade amorfa, sem contornos, não mais nomeável. Até se vê alguma coisa, mas não se sabe mais o que é.






Marco Aurélio Bocaccio Piscitelli







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