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Contos-->À Sombra do Jatobá XII - A volta de Delfina II -- 20/09/2003 - 17:07 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá – XII – A volta de Delfina II

Fora um dia quase festivo, com os irmãos e amigos a chegar e, entre eles, o padre Jesuíno e o Dr. Januário.

À tardinha Arnaldo chegou para cumprimentar Delfina e levar Elvira de volta para casa. Como sempre, muito bem vestido, muito maneiroso, fez festas à Miloca, achando-a crescida e bonita. Com um sorriso iluminando seus olhos verdes, disse umas palavras amáveis à Delfina, Despediu-se de todos e partiu, levando com ele aquele ar de superioridade, de grande dignidade que diminuía os presentes e tirava a espontaneidade de Elvira.

O sol já se despedia em vários tons de violeta, quando Teobaldo e Filó foram embora, mas deixando a filhinha Ana, de oito anos, para fazer companhia à prima, para brincar com Miloca.

Delfina sentia-se prestigiada e acarinhada por todos.

Agora que a casa se esvaziara, Dalva, Otávio e Delfina, juntamente com os dois retardatários, Dr Januário e padre Jesuíno, arrematavam,
na varanda, com um cafezinho, as conversas e a visita:

- Vamos precisar de sua ajuda – disse o padre à amiga - estamos lutando por um hospital; precisamos angariar fundos e começar logo a obra. Os papeis estão prontos na Prefeitura. Temos que motivar os fazendeiros e moradores mais afastados a colaborar conosco. Vou contar com suas idéias e seu trabalho.

Dalva, muito branquinha e um pouco trêmula, sorriu com gratidão para o padre e voltou os olhos para a filha, examinando suas reações.

Com a palidez acentuada pelo cansaço, Delfina assentiu com a cabeça, enquanto continuava, lentamente, a sorver o seu café. Com os olhos tristonhos, analisava os dois amigos. O padre em quase nada mudara, parecia-lhe mais magro, mas demonstrava o mesmo vigor, o mesmo contagiante entusiasmo. Dr. Januário, sim, engordara bastante, suavizara as quinas retas da face, criara uma pequena papada e até embonitecera, apesar das sardas cor de ferrugem continuarem a luzir em seu rosto, e os olhos azuis terem-se tornado ainda menores.

- Não vá atrás deste chorão – advertiu o médico – a sua paróquia é aquele sorvedouro que você conhece bem; não mudou nada nestes anos, ao contrário! A ele eu devo estes cabelos brancos e mil noites mal dormidas. O padre quer acolher o Nordeste todo debaixo de suas asas...

- Quem está chorando? – perguntou Jesuíno, provocador – Você continua resmungão, ranheta... Mas não me tem faltado – completou, conciliador.

- Não, não tenho faltado, mas continuamos dentro do combinado: vou recauchutando os corpos e ele salvando as almas. Mas veja bem, Delfina, se não há injustiça nisso: ele vai juntando os miseráveis, vai me empurrando trabalho; eu dou um duro medonho, aprumo aquela gente... E ele mais os santos levam a fama? – os olhos de Januário brilharam, maliciosos.

Acostumado com a miséria que arrancava os sertanejos de seus casebres e os punha, nus, diante do seu estetoscópio, era descrente de Deus. Milagres? Milagres se faziam na ponta do seu bisturi e no alimento que o padre distribuía. O verdadeiro milagre, que ele não compreendia, era ele próprio se manter ali, comendo o pão que o diabo amassou e sem perspectivas de melhoras, sem outros acenos a não ser a velhice e a solidão. Há mais de vinte anos chegara da Bahia e arregaçara as mangas, tentando seguir o exemplo do padre, em seu sacerdócio. Apaixonara-se por Delfina e começou a sofrer.

Agora ela estava ali de novo, em sua frente e todo o sofrimento do passado, todo aquele amor calado que o transformara num solteirão, renascia, cheio de esperança, como outrora, com o mesmo encantamento. Januário, sentindo-se um adolescente ridículo, procurava disfarçar a sua emoção e, para tanto, espicaçava o amigo padre.

- Santo milagreiro! Dá-lhes comida, dá-lhes abrigo e manda-os para mim, para que eu os livre dos vermes, das doenças e, depois: algumas velas acesas no santuário juntam os santos e o padre na devoção... E eu?

- Vou mandar canonizar você! Eu juro! – brincou Jesuíno.

Entre risos e promessas de um breve retorno, os dois se despediram.

Já no carro, cheio de compaixão pela amiga, Jesuíno comentou:

- Pobre Delfina. Como está abatida!

- Continua linda! Muito mais linda agora; parece mais frágil, desamparada – e no velho tom de queixa, perguntou: Será que terei que enfrentar tudo de novo? Vou vê-la sofrer, lutar...Sei lá... Apenas como espectador? Por que o destino brinca comigo? Por que não fui embora, não desapareci enquanto era tempo?

Jesuíno voltou os olhos para o amigo, que na direção do carro era a própria figura do desconsolo; os ombros pesados para frente, as mãos presas ao volante, os olhos perdidos na distância, enquanto os lábios, contraídos, protestavam:

- Eu devia ter partido!

. ... x ...

Delfina lançou os olhos pelo seu quarto de solteira e respirou fundo: refazer a vida, sem poder votar aos bons tempos... Estar ali, onde nascera, e não se sentir mais a mesma!

Impulsionada pelo antigo hábito, chegou até a janela. O vulto escuro do jatobá se destacava ao luar e lhe trouxe a velha sensação de permanência. Imutável, em sua imponência, a grande árvore transmitiu-lhe calma e segurança.

O tempo, que tudo sana, foi passando e Delfina voltou a comandar. Voltou a percorrer a cavalo a propriedade, a se enfronhar nos trabalhos da fazenda, do padre e do médico. Parecia uma Delfina diferente. De feições mais sisudas, de maneiras mais comedidas, no entanto seus olhos, agora sempre tristonhos, possuíam aquela mesma chama dominadora. Levava diariamente Miloca para o colégio das freiras, na cidade, fazia as compras e visitava Elvira. Procurava ver a irmã quando Arnaldo não estivesse em casa. Os dois não se afinavam, Delfina ficava contrariada com a maneira do cunhado tratar a mulher. Notava que Elvira perdia a naturalidade e parecia sempre estar pedindo desculpas ou temerosa de aborrecê-lo. Tinha pena de vê-la tão submissa. Onde seus cachos tão sedosos, suas unhas compridas e sempre bem tratadas? Onde os vestidos vaporosos? Onde os dengos, o jeitinho mimoso? Restava agora uma Elvira mascarada e profundamente desencantada com a vida e, o pior de tudo, ao ver de Delfina, sem ânimo para lutar, para se impor.

Que força tremenda tem o amor, que poder de transformar as pessoas: por amor a Roberto, Delfina deixara a fazenda Esperança, o comando da família e se suavizara, tornara-se feminina, dona-de-casa, ao mesmo tempo, participando da vida do marido. Por amor a Arnaldo, Elvira se anulara; por tentar, inutilmente, dar-lhe um filho, tornara-se decepcionada, amarga, e procurava, com submissão, compensar esta falta, como se a culpa fosse toda sua.

Em vão Delfina tentara despertar o interesse da irmã pelas obras assistenciais do padre Jesuíno; temerosa da reação do marido, Elvira mantinha-se presa dentro de casa, desabafando nos estudos dos hinos sacros, ao piano, o seu tremendo tédio.

Depois de passar pela casa de Elvira, já a caminho da fazenda, Delfina se demorava um pouco, visitando Filó. Não podia demorar mais, para não tomar o tempo da irmã. Sempre ocupada com os trabalhos da casa e com os cuidados das crianças, Filó era o oposto de Elvira. Trazia, como ela, os cabelos puxados e a face limpa, mas não por imposição do marido, mas sim pela vida ativa, de verdadeira correria em que vivia, principalmente depois da chegada de Tonino – Luis Antônio – o seu segundo filho, criança esperta, sadia e gulosa, vivia agarrada aos seios de Filó.

Na face luzidia de Filó havia sempre um sorriso e em seu repertório fatos engraçados e proezas de suas crianças.

Quando Ana, um ano mais nova que Miloca, chegou à idade escolar, Delfina fez com que Filó a matriculasse na mesma escola da filha; assim podia vigiar as duas ao mesmo tempo.

Em conversa com Teobaldo, tentava convencer o cunhado a mandar Chico, o irmão adotivo, que já se fazia adolescente, a estudar em Fortaleza, como ela fizera com os seus irmãos.

- Para que? – perguntava meio impaciente o fazendeiro. Não vê que Chico vai ficar no meu lugar e tomar conta da fazenda?

- Mas Teobaldo, se for do gosto dele, poderá até estudar agricultura!

O cunhado não a deixou terminar:

- Isto ele aprende no campo, com a prática. Ao terminar os estudos, já estará pronto a me ajudar e aprender, como eu, a lidar com os vaqueiros e o gado. Ele ainda deve se dar por feliz por estar no ginásio. Eu aprendi a ler com uma professorinha que veio morar na nossa fazenda, contratada pelo meu pai. Mas posso lhe garantir que outros estudos não me fizeram falta. Estudar na cidade grande só serve para virar a cabeça dos rapazes. Por lá estudam, por lá casam e por lá ficam. As terras conseguidas com o suor dos pais e avós, que se danem! Veja bem o seu caso! Quem é responsável pela fazenda Esperança agora? Uma mulher! Não sobrou, para ficar no lugar do seu pai, nem um só filho homem! Manfredo, advogado em Sobral, Tobias como deputado federal, em Brasília – sem tempo e vontade de vir aqui, nem na morte do cunhado! – e Vadico, jornalista no Rio de Janeiro! Ora, Delfina!

Delfina sentiu o sangue subir e esquentar o seu rosto. Procurando manter a calma, ela argumentou:

- Não acho justo que um rapaz tenha, por obrigação, substituir o pai em seus trabalhos. Cada pessoa deve escolher a sua profissão, e tomar conta da própria vida.

Teobaldo sorriu, malicioso. Olha lá quem falava...

- Delfina, você tomou e toma conta da vida de todo mundo! Ou não é verdade que se casou tarde porque tinha que cuidar dos seus irmão e de seus pais?

- Claro! Todos uns destrambelhados!

- Mas então! Onde você via liberdade de escolher e dar conta da própria vida? Você mesma achava que não podia se casar porque tinha que ficar tomando conta da família? Que liberdade de escolha foi essa?

- Sem estudos, hoje em dia, e mais ainda daqui a alguns anos, nem fazenda vai para a frente. E não será amarrando os rapazes à terra que você vai fazer deles bons fazendeiros ou torná-los felizes.

- Que o quê, Delfina, a felicidade é barriga cheia, é canto da gente, é chão,. Terra é terra e não há quem me convença do contrário. Eu boto os olhos naquelas lonjuras e não consigo enxergar tudo o que pertencia à sua família. Ao poucos foram vendendo, foram precisando vender. Por que? Porque os homens de sua família partiram para os estudos, foram se metendo na política, largaram os rebanhos e as plantações.

- Porque não tinham vocação para fazendeiros, para vaqueiros, ora essa!

Foi a vez de Teobaldo sentir o sangue quente:

- Porque cuspiram no prato em que comeram! Diga a verdade e não me venha diminuir!

- Não o estou diminuindo ou ofendendo, Teobaldo. Estou tentando mostrar que se Chico e Tonino se prepararem melhor poderão trazer progressos para a sua fazenda.

- E quem me garante que vão voltar da cidade e se meter novamente no mato?

- E você acha certo não lhes dar o direito de julgar o que de fato querem?

-Acho sim! Se eles não conhecerem outra vida, vão levar esta aqui, e com gosto, para frente. Estudo é para os filhinhos da cidade. Fazendeiro se faz é o campo, amassando lama ou comendo pó! Vá você cuidando de Miloca e ajudando a Filó a cuidar de Ana. Dos meus homens cuido eu!
Dois bicudos não se beijam. Entre Delfina e Teobaldo, os dois prepotentes e obstinados, não havia arranjo possível. Peito aberto, pele tostada, curtida pelo sol, chapéu de couro na cabeça, o fazendeiro desdenhava os refinamentos que Delfina implantava na fazenda Esperança. Até o gerador para luz e irrigação. Não, Filó devia andar sempre com lampiões e, às vezes, com os antiquados fifós.

Mesmo Otávio – ele exemplificava – com a volta de Delfina se acomodara. Parecia que o peso dos setenta anos havia caído de uma vez sobre seus ombros. Já sofrera um infarto, e agora, passados cinco anos da volta da filha, era um velho moleirão. “Tivesse ele se mantido no trabalho, na sela da mula, ao ar livre, duvido que a velhice o pegasse desprevenido”.

Na suas vida e dos seus homens, Delfina podia tirar o cavalo da chuva. Quem mandava e mandaria seria ele. Seus rapazes amariam a terra como ele amava e estariam livres das tranqueiras e tentações da cidade grande e dos entulhos do progresso. Quando, ao longe, ele ouvia o barulho do carro da Delfina, metia o chicote no cavalo e se embrenhava no bredo. Fugia de ouvir-lhe suas opiniões, dispensava seus conselhos. Filó, pacífica, deixava-se influenciar pela irmã, mas ele, Teobaldo, não se importava: as mulheres que se entendessem.

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