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Artigos-->Poesia e sociedade de consumo -- 25/06/2002 - 20:09 (Dante Gatto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Poesia e sociedade de consumo



Observou o poeta português Eugênio de Castro e Melo, que na era da informática e da comunicação por satélite o vivencial comunicável tende vertiginosamente para o “zero da mensagem”: o aumento das possibilidades de comunicação apenas revela a impossibilidade de comunicar o que realmente nos importa, o que é especificamente nosso, tal como o autoquestionamento, material próprio da poesia.

Quando se diz que a poesia é uma forma de conhecimento, não se esta referindo ao conhecimento que podemos comunicar. É outra sua natureza. Tomando as palavras de Alfredo Bosi: “poesia não é discurso verificável, quer histórico, quer científico … poesia não é dogma nem ensinamento moral … é ‘sentimento na sua imediatibilidade’. Nem pura idéia, nem pura emoção, mas expressão de um conhecimento intuitivo cujo sentido é dado pelo pathos que o provocou e o sustém.”

Um projeto poético consiste numa busca interminável, com constantes avanços e recuos, descobertas e ocultações, obscuridades e revelações luminosas, certezas e dúvidas, em que linguagem e sentimentos se abraçam e, como o próprio projeto, revela-se para novamente se perder. Ora, não haveria de ser de outra maneira: seres inconclusos num universo em transformação, que num processo vital, intrincado e complexo, nos transforma para ser por nos transformado.

O questionamento, explicitado por Sócrates, “Conhece a ti mesmo”, é uma inquietação inerente ao ser humano. Neste sentido, as perguntas são eternas, mas as respostas efêmeras: o anseio da segunda alimenta a primeira, consubstanciando o processo, a própria essência da vida.

O lugar de clarificar essa essência é a poesia.

Décio Pignatari coloca a poesia como a arte do anticonsumo e isto resulta num paradoxo básico que merece algumas explicações: vivemos numa sociedade sustentada por organizações burocráticas &
61485; o Estado, as empresas, as escolas, os partidos, etc. &
61485; que transmitem um modo de pensar compartimentado: um sentido prático para se atingir objetivos práticos, afastando-se, desta maneira, do modo de pensar, digamos assim, do homem integral.

O modo burocrático de pensar leva o homem ao vazio e a luta por pequenas posições na hierarquia social, privilegiando o prestigio e o poder de consumo. Constitui-se, pois, num esvaziamento do ser em função do ter.

O lugar de resgatar o ser é a poesia.

De fato, nascemos potencialmente poetas. É inerente ao fenômeno humano a transcendência. E só transcendemos quando nos arremessamos à longa viagem que vai de nós a nós mesmos, à nossa essência. Caminho este para dentro. Lá está o que humanamente mais nos interessa, que é mais nosso. O poeta é o único equipado para esta – parafraseando Drummond – “dificílima dangerosíssima” jornada “de si a si mesmo”. Nossa organização social, no entanto, inevitavelmente, nos leva a uma cega disputa por posições, dentro de uma estrutura fortemente hierarquizada, tornando-nos, pois, homens funcionais, submetidos à exigências da máquina capitalista. Caminho este para fora. Aquele, a expressão sublime do ser humano. Este, a expressão da sua contingência organizacional. Aquele, revolucionário, indômito e iconoclasta. Este, escravo e subserviente. Aquele, expressão da individualidade criadora que aproxima os homens enquanto essência. Este, expressão da coletividade como seres gregários, mediatizados pelos seus próprios erros. Este, homem funcional. Aquele, poeta.

O paradoxo consiste em que a poesia, também, acaba se prestando ao consumo como tudo o mais que o homem produz numa sociedade capitalista. É um objeto social e existe, propriamente dito, no intercâmbio autor/leitor. Um projeto poético implica, necessariamente, neste intercâmbio, mesmo porque o homem tem necessidade de ser visto em termos de suas relações com seu semelhante. O que acontece aqui é aquilo que Engels chamou, tratando da dialética, de interpenetração dos contrários: os dois lados se opõe e, no entanto, constituem uma unidade.

O homem, diante da sociedade organizacional, vê as relações de dominação serem reproduzidas diante dele, através dele e por meio dele, envolvendo até o seu projeto poético, que nega este estado de coisas, minando-o, mas se edifica nele.

Inevitavelmente somos submetidos as grosseiras limitações da funcionalidade… e da guerra do poeta com o homem funcional, no mais das vezes, por paradoxal que isto se configura dentro do fenômeno humano, a vitoria – triste porque são efêmeros os louros – fica ao segundo. O poeta acaba tristemente enclausurado nos labirintos da interioridade. Mário de Sá-Carneiro tinha consciência do fenômeno:



Perdi-me dentro de mim

porque eu era labirinto

e hoje quando me sinto

e com saudades de mim.



Salvo as contingências específicas da despersonalização de Sá-Carneiro, contingências do período, quantos de nós, no entanto, caminha a esmo, sem consciência. A voz do seu poeta interior ecoa-lhe como um rugido inteligível. Uma angustia surda rouba-lhe a alegria incomensurável da transcendência e da auto-realização. Procura realiza-se para fora, quando a única realização estava nele mesmo.

Se o homem funcional é inevitável, sua imanência, no entanto, não, necessariamente, precisa inibir o poeta. Ambos podem conviver em harmonia e apontar para a prosperidade do Ser (“pisar do solo inexplorado do seu coração”). O momento de encontro e comunhão destes dois extremos e acompanhado de festas da Criação. Eis, pois, que temos o homem integral, que realizou a grande revolução, que caminha para dentro, que caminha para fora, uma viagem consubstanciando a outra. Naquela, realizando a arte das respostas; nesta, a arte da convivência. A arte, por fim, salvando-nos da estupidez, resgatando e justificando a vida.

Um projeto poético não implica num idealismo fantástico e estéril. Tem o próprio sentido da liberdade do homem, à medida que este desenvolve uma concepção crítica da própria ação, uma depuração contínua, uma percepção de que apenas em conjunto com os outros homens poderá construir a história e superar a repressão que se edificou sob seus olhos e ameaça os seus pés.



Dante Gatto

Professor da UNEMAT, Universidade do Estado de Mato Grosso

gattod@terra.com.br

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