REMANESCÊNCIAS DE UM PASSADO PRESENTE
Tenho grandes dificuldades para me enquadrar em gêneros literários. No caso em pauta, vou transgredir as exigências outra vez.
Perdoem-me por esta inserção fora de foco. Onde mais seria cabível estacionar?.
Escreve-se, escrevo, escarafuncho. E o escrever é quase sempre como o partir daquelas garrafas com mensagens para as vastidões líquidas. Sem destino, só mesmo por acaso ou curiosidade algumas são abertas e esvaziadas antes que se degradem ou sigam a rota de um catador de lixo.
Após publicar textos na internet, recebi mensagem de simpatia por alguns deles. Era uma internauta. Mais do que admirá-los, foi conectando-se a mim por laços virtuais. Laços que, de tão empáticos, pautaram a realidade do cotidiano. As comunicações foram tecendo o enredo de uma história com tudo para ser contada, marcada pela geografia de lugares nunca antes tocados.
Na cibersfera criada, chega o arquivo da sua foto. Abri-lo foi um quase romper com a angústia da espera estagnada. Sentimentos podiam ser traduzidos para sensações possíveis. A impressão era de que surgira alguém para ilustrar o texto publicado neste sítio em out/2001, sob o título “À Procura do Viço”. Alguém que expandia o meu raio de passagem pelo universo. Um presente do passado, reaberto pela saudade da memória.
A F O T O D O V I Ç O
Eu a colocarei no ponto mais visível do meu aconchego. E ao me perguntarem quem é, direi ... a minha namorada. E vão duvidar. Direi ... a minha irmã. E se continuarem a duvidar, responderei que é a minha melhor amiga. Se me acusarem de faltar com a verdade, direi que é a minha linha de pesquisa para o espaço de uma vida. Mas sempre haverá os que não se conformam com o que ouvem. A esses, direi que é a personagem de meu último romance. Nessa sucessão, eu me sentirei o homem de todas as mulheres. Os céticos não me surpreenderão desprevenidos. A eles, revelarei que é um mantra com o qual me conjugo em sessões de meditação transcendental. Aos que não me conhecem e nada me indagarem, eu os convidarei a visitar uma exposição de arte composta por uma só tela. E eles não vão estranhar ou indagar, porque, ao fitarem a tela, verão que ela projeta todas as épocas, as idades de todos os tempos. E se minha casa se converter num roteiro de peregrinação, eu contarei a verdade. Direi que essa casa é a história de um escritor que, para compor a expressão de sua existência, vive “à procura do viço”. E que, num dia qualquer, desses que não figuram no calendário, esse escritor teve um encontro com o destino, o qual lhe apresentou o viço. O destino estava apressado, mas ainda falou:
- Não posso demorar-me, senão interrompo o seu trajeto.
- Que trajeto?
- A sua procura - retrucou o destino.
- Por favor - destino meu -, diga-me o que devo fazer para fixar o viço?
- Não pare de escrever.
O AUTOR ESCREVE PARA ELA
Você entrou de mansinho em minha vida. Convidou-me para conhecer o seu interior. Foi mostrando-me todas as suas dependências, cada qual mais bem decorada, cada qual mais impressionante. Convocou-me a sentar para beber o seu licor. Eu o degustei e me deleitei em doses subseqüentes. Você, não satisfeita com a embriaguez produzida pela arquitetura de suas essências, conduziu-me até os arredores de sua morada para continuar o show de apresentação da sua arte. Mostrou-me o esplendor de suas pétalas, a polpa tênue do seu pomar e, ainda, fez-me experimentar a maciez de seu lago de águas curvas. Eu me deliciei com tudo. Você parecia não caber mais em si com a expressão que extraía de mim. Tentei despedir-me. Você insistiu para eu ficar mais um pouco. Eu me senti tão à vontade, que exclamei algo como "era esta a casa em que eu gostaria de viver". Você retrucou: venha visitar-me com freqüência, quando quiser. E assim foi, por um ano. Eu me tornei o mais assíduo visitante daquela casa de sonhos, versos, de paisagens que entravam para dentro e de sons cantados pelas paredes.
Você acha que essa história acaba aqui? Se não, matize a se-
qüência, dê cadência, ornamente.
ELA SE MANIFESTA
"A anfitriã abre as portas, comportas, retira as travas. Recebe o novo hóspede. Não lhe parece assim tão novo, pelo contrário, muito familiar... A anfitriã sorri e o deixa tomar, mais uma vez, parte de suas dependências. Circula com ele. Cômodos são repaginados.; objetos dantes opacos são substituídos por mimos graciosos, frágeis, alguns. E a anfitriã se deleita em mostrar ao convidado todas as dependências de sua morada, que ele desconhecia... Deseja-lhe que não mais seja um convidado somente. Também não o quer como simples inquilino. Quer tê-lo sob o seu teto, em permanência. Com ele, quer olhar o alto, invadir o céu e captar estrelas. Não as cadentes, que tantos poderes anunciam, mas as mais próximas de serem planetas, as que brilham de fato e podem abrigar os dois em suas longas e esperadas viagens espaciais. A anfiftriã quer mais: quer também que ele seja o anfitrião. Quer que ele ouse, sempre com espada em riste, cavaleiro impetuoso e delicado, invada, penetre todos os cômodos dessa morada que será somente dos dois. Quer florir. Quer jardins renovados, aspersões de águas salgadas, únicas, gota-a-gota. Quer travesseiros cansados, muito sono, olhos fechados, sonhar de olhos abertos. Eternos anfitriões deles mesmos. A anfitriã joga a chave fora. Tão cedo não permitirá outro visitante em suas dependências, pois estará muito ocupada, para o resto da vida, com o novo anfitrião”.
Marco Aurélio B. Piscitelli
marcopiscitelli@bol.com.br
Escrito em out/2000.
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