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Contos-->À Sombra do Jatobá -XIV - A morte de Otávio -- 26/09/2003 - 18:45 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá –XIV –A morte de Otávio.

- Dona Delfina! Dona Delfina! Chegue! A chuva envem! A chuva envem! O céu tá lindo pra chuvê, e vai sê chuva das grossas! Escuita o vento! Escuita o baruio!

O menino corria, estabanado, por dentro do casarão. As calças sungadas, mostrando os magros cambitos, os pés de “paieta” estalando no chão, os olhos faiscando de alegria. E vinha sacudindo os braços, volteando o chapéu de palha acima da carapinha. Ao passar pela cozinha, ouviu Chora resmungar:

- Moleque atrevido, piá assanhado! Tu precisava de uma boa pisa pra respeitá a casa dos outros... Onde já se viu? Negrinho prepotente!

Há dias, depois de grande estiagem, vinham pressentindo a chegada do inverno – que, para o nordestino, é o período das chuvas, em pleno verão. Lá para as bandas do “buraco do Lutero”, onde diziam se acoitara uma jagunço com tal nome, as torres de nuvens se formavam no céu e se esfrangalhavam, deixando no ar a esperança de boa chuva, O céu dera de amanhecer nublado, cinzento escuro e, quando de tarde, pegava a relampear, “lá pras bandas do buraco do Lutero”; era chuva na certa. Os sertanejos punham-se alvoroçados com o relampear longínquo, mas alvissareiro, aguardando que o céu se derramasse num momento festivo.

- A chuva envem! A chuva envem!

Correram todos para o terreiro e ficaram a apreciar a maravilha. Lá vinha ela, em grande zoada, matraqueando no mato seco, estralando nas folhas, nos galhos ressequidos, levantando o vapor da terra quente, fazendo exalar o seu cheiro característico, ao ser molhada, após o estirão da seca. Perfume delicioso, que impregnava o ar, invadia os pulmões ávidos por ele.

E caiu pesada, rica, dadivosa, sobre as cabeças, os ombros, e logo foi empapando os corpos que giravam e dançavam, exultantes. Os moradores da fazenda entregavam-se a ela, ansiosos por aproveitá-la toda, de corpo inteiro.

No pasto, os animais fungavam o ar, erguiam os rabos e saiam em disparada, meio endoidecidos de alegria.

Enriqueciam-se as ipueiras quando chovia lá na serra, nas bandas do “buraco do Lutero”. Isto é: chovia nas cabeceiras dos riachos e o rio Curú, seco na estiagem, começava a correr. O rio descia cantando, roncando, explodindo nos obstáculos, ecoando nas grotas, corcoveando nas pedras. Vinha retomando o seu leito, arrastando barrancos, galhos e criações. Parecia orgulhoso com as exclamações dos ribeirinhos:

- O rio tá descendo! O rio tá descendo! Olha a cabeça d’água! Que medonha!

Delfina, na varanda, assistia Miloca se juntar à algazarra do seu pessoal e já se dispunha a descer também a escada e a aderir à folia, com o pensamento em prece, pedindo a Deus que aquele manancial não parasse, que dele viesse o socorro aos flagelados, que já se faziam retirantes e principiavam a invadir as cidades, quando ouviu Miloca gritar, desesperada:

- Mãinha! Olha o vovô! Ele está na chuva!

- Papai! – berrou assustada – já pra dentro! Chegue! Está maluco? Mal saiu da cama e já quer voltar? Anda! Deixa de molecagem!

Otávio – já ensopado - gritou:

- Banho de chuva não faz mal a ninguém! Lava até a alma!

- É, e lava a campa de velho teimoso, também! Chegue, anda!

Otávio obedeceu, amparado por Miloca, mas caminhando lentamente e olhando para cima, deixava a água escorrer pelo seu rosto abatido.

Delfina já de toalha em punho, ajudou-o a tirar a camisa e esfregou-lhe as costas.

- Aproveite e dá uma coçadinha – brincou Otávio.

- De uma boa coça, é o que o senhor precisa! Não se faça mouco das oiças e toma juízo, Seu Otávio. Vá trocar as calças e os sapatos.

Otávio saiu arrastando os pés, feliz com a sua arte, e falou:

- Minha filha... Só três “q”s matam um velho: queda, coice e caganeira!

Mas os espirros vieram e com eles a febre. Mais dias de cama e cuidados. As filhas e a neta se revezavam na sua cabeceira, enquanto Dalva desfiava o rosário, em rezas e rogos. Mal refeito do enfarto, quando começara a dar trabalho pela sua teimosia em avançar nos comes proibidos, e a resmungar como fera enjaulada, repetindo que “assim não vale a pena continuar vivendo”, Otávio havia implorado à filha:

- - Pelo amor de Deus, Delfina, me acuda. Estou abusado de titela de galinha com arroz lavado! Me deixa morrer ao meu gosto, me deixa... Me manda fazer um baião de dois, com uns torresminhos maneirosos por cima; enfia uns pedaços de queijo de coalho no danado e, antes, me dá uma talagada, da boa! – vendo que a filha não se tocava, ele continuou: Olha, eu lhe prometo, eu como a fartar, monto na minha mula Morena e vou morrer longe daqui, para não lhe dar trabalho... Isso mesmo, quero morrer no meio do algodão, no céu aberto, escutando o vento zunindo nas folhas... Me deixa, eu lá sou homem de morrer na cama, com este peste de médico a meter o termômetro no meu sovaco? E pinicando a minha bunda? E nem bunda eu tenho mais, para tanta injeção...

Delfina, recebendo de Miloca uma bandeja com um prato de canja, que ela sabia absolutamente insossa, como ordenara Dr, Januário, sentiu o coração confranger-se. Para quem devorava, resfolegando de prazer, frituras, pratos gordurosos, apimentados, e numa quantidade assustadora, aquela canja deveria saber pior que purgante.

Sem deixar transparecer o quanto estava penalizada, ela respondeu-lhe, séria:

- Pra quem pensa que está na beira da morte, foi um belo discurso... O senhor tem fôlego de gato! Tome o seu caldo e deixe de dengos! Parece menino malino, caviloso! Trate de se orientar e ficar logo bom, que eu lhe prometo um baião de dois caprichado e tudo o mais que o senhor puder comer, até se fartar! Vamos lá; engula a sua canja e descanse. Amanhã estará bem melhor e mais perto dos seus torresminhos maneirosos...

- Delfina, não sei que bicho se encostou em mim, pra eu botar no mundo uma jararaca como você...

Agora, lá estava ele de novo penando, com febre, tosse. xingando o Dr. Januário ou quem quer que da cama se aproximasse.

Os velhos amigos chegando, os restantes da sua geração – visitas caladas, olhares de profunda pena. Otávio os olhava com birra e fazia-lhes uma figa por baixo dos lençóis. Sabia que havia muito de despedida nessas visitas, pois agora só se reuniam nos enterros e, na maioria das vezes, suspiravam, recordando os bons tempos, e saiam martelando a questão: quem será o próximo?

Mais uma semana com complicações nos pulmões e outra em recuperação difícil, com pressão arterial elevada. Dias de aflição e angústia, mas o velho “pajé” foi se refazendo. Os ânimos foram se acendendo, o tom das vozes beirando ao normal, as janelas se abrindo, a saúde voltando e, com ela, toda a alegria da família.

Dentro em pouco passou a caminhar devagarzinho, ao sol da manhã; voltavam-lhe as cores e o sorriso brejeiro.

Numa tarde, a sua docilidade se foi por água-abaixo: sentado à sombra do jatobá, ouviu a sua velha mula Morena zurrar; a sua querida mula, o único animal que suportava, galhardamente, o seu peso avantajado. A sua companheira de tantos anos, de tantas e longas cavalgadas!

Viu que, levada para a cocheira pelo Zé Onório, o animal vinha mancando; uma das patas traseiras mal podia tocar no chão.

O sangue de Otávio se agitou! Precisava vê-la, falar-lhe com carinho, como sempre o fazia para acalmá-la enquanto cuidava de seus cascos.

Lançou um olhar para a porta de sua casa, depois para os janelões e, percebendo-se não vigiado, levantou-se e caminhou meio trôpego. A pequena descida forrada de pedras irregulares dificultou-lhe os passos – sentia as pernas bambas – mas os zurros doloridos da mula o incentivavam a avançar.

Na cocheira, o velho animal mantinha-se irrequieto e os homens lutavam para dominá-lo.

Otávio foi entrando devagarinho e falando, docemente:

- Morena! Calma! Se aquiete! Que houve com a minha bichinha? Vamos lá, vamos ver isso, me dê a pata...

O animal sossegou e o cocheiro levantou-lhe a pata traseira machucada e, depois de um bom exame, afirmou:

- Está com o casco fendido!

- Deixe-me ver – disse Otávio, inclinando-se, enquanto Zé Onório firmava o animal e indicava o ferimento, com a ponta da lima de ferro com que costumava limpar os cascos dos burros que requeriam cuidados.

Assustada por se sentir presa, ou talvez porque a posição lhe aumentasse a dor, a mula corcoveou e, esticando violentamente a pata ferida, atingiu o peito de Otávio.

O corpo foi projetado à distância e tombou junto à porta.

Gritos, correrias, chamamentos, despautério geral.

Delfina e Miloca logo chegaram, aflitas e perceberam a gravidade do momento. Enquanto Miloca tapava a boca com as mãos, para não gritar, para não assustar o avô e saia para chamar o Dr. Januário, Delfina ajoelhou-se no chão e, delicadamente, ergueu a cabeça de Otávio e colocou-a em seu colo, junto ao peito, acariciando-a com ternura. Depois, afastou-a um pouquinho e percebeu que o pai abria os olhos. Engolindo o pranto, ela sorriu-lhe com carinho.

O pai respondeu-lhe o sorriso e murmurou, matreiro:

- Somente...três “q”s matam um macho... Queda...

- Coice – titubeou Delfina com a voz embargada.

- E...caganeira... Escolhi o melhor... O mais honrado...

- Sim, pai: coice! – soluçou Delfina, ao sentí-lo já sem vida.

Dr Januário, cada vez que rumava para a fazenda Esperança ia ruminando a sua sorte. De tanto rodar por aquela estrada, guiava com facilidade, conhecia todo o seu percurso e podia dar asas ao pensamento, não se importando com a paisagem nem com as curvas do caminho. Lembrava o passado, remoia o presente.

Ai, coração velho destrambelhado! Por que havia ficado?

Ao chegar à fazenda, estacionou o carro junto à varanda e subiu, apressado, os antigos degrau de pedra.

Chora, mais curvadinha do que nunca, esperava por ele.

Desta vez a negrinha chorava livremente, enquanto caminhavam e subiam a escada para o segundo andar, ela contava:

- Tem mais jeito não, Doutor. Tem mais jeito, não. Dona Delfina estendeu a rede no chão e os homens pegaram e carregaram ele lá pra cima, e não no quarto aqui de baixo, que ocupava enquanto esteve doente. Dona Dalva está lá, ajoelhada, rezando, mas já tomou o calmante que Miloca deu. Dona Delfina não deixa ninguém entrar no quarto...

Fungando, desconsolada, Chora comentou sozinha:

- Não sei porque Deus não me levou... Porque me deixou aqui, para assistir o fim dele...

Ao chegar junto à porta do quarto, a negra a abriu:

- Entra, Doutor, Dona Delfina está esperando o senhor.

Esperando o médico – pensou Januário – receitas e atestados de óbitos, é para o que sirvo, só para o que sirvo...









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