Usina de Letras
Usina de Letras
43 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62253 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22538)

Discursos (3239)

Ensaios - (10374)

Erótico (13571)

Frases (50645)

Humor (20034)

Infantil (5443)

Infanto Juvenil (4773)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140812)

Redação (3308)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6200)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O Ovo da Pata -- 27/09/2003 - 17:16 (Dulce Baptista) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



O sol refletia oblíquo no meio das copas, feixes dourados iam ter ao chão por entre mangas caídas, algumas podres, exalando odores em volta. O silêncio era interrompido pelo bem-te-vi e pelo chacoalhar discreto de aves no galinheiro. Um latido distante denunciava a presença de cães nas redondezas. Lentamente a tarde terminava.

Um ovo de pata. Talvez benzido fosse como talismã contra mau olhado. Tal era a reflexão de Delmira ao tentar entrar o mais silenciosamente possível no habitat dos patos. Com muito cuidado, agachou-se para apanhar o mais próximo, desvencilhando-se de bicos e penas subitamente hostis. Galinhas, codornas, frangos e galos observavam a invasão na vizinhança, não sem um certo sobressalto. Aquela já era, afinal, a hora do sossego. E foi com o ovo na mão que Delmira saiu do galinheiro, deixando os bichos em paz. Teria então que esperar pelo dia seguinte, quando mãe Benedita viesse para benzer.

Entrou na casinha e olhou a criança adormecida e o homem recém-acordado depois da sesta entrecortada de roncos e movimentos bruscos. Antes que ele esboçasse qualquer reação, escondeu o ovo detrás da porta. Aquilo era segredo. Além do mais, o proprietário da chácara costumava pedir contas de quantos tomates, quantas aves, e por que não, quantos ovos.

Eles eram pagos para cuidar e vigiar. Só que de vez em quando, dormiam no ponto: o patrão viajava e a preguiça parecia dominar tudo e todos. A porteira dormia aberta, o mato crescia; as frutas estragavam antes mesmo de serem colhidas.

Nas freqüentes trombas d’água do verão, formava-se a maior lameira e o lodo escorregadio tomava conta. Como se não bastasse, de repente apareciam cobras saídas da nascente situada no final do terreno. Com o transbordamento causado pela chuva, as coisas mais estranhas pareciam simplesmente brotar, e assim, até rato morto, Deus sabe como.

Para culminar, os ladrões entravam, carregavam tudo o que havia na casa principal – de redes a espelhos, passando por agasalhos pendurados, bonés, panelas, até lata de azeite pela metade. Nem os colchões sobravam, ficava tudo limpo. E aí quando davam fé já era tarde. Umas quatro vezes isso acontecera e nenhum dos dois conseguia encontrar explicação.Da última, foi o próprio Juízo Final. Seu Pedrão ameaçou pô-los na rua, ao relento, sem dó nem piedade.

Como das outras vezes, acabou repondo tudo, comprando objetos novos, reforçando a segurança com muros e grades, e promovendo uma faxina geral que deixou o casal de empregados totalmente extenuado.

Zé Cruz olhou a mulher de soslaio. Que diabo estaria tramando? Fazia dias que observava: era um acorda-levanta em horas impróprias, caminhar sorrateiro, jeitão de mistério. Só esperava que não fosse chifre; caso contrário... Pensou aborrecido no facão de cortar cana. Por via das dúvidas, resolveu tirar a limpo, levantando-se e pegando a mulher pelo braço. Deitou-se novamente, desta feita embolado com Delmira numa seqüência de dentadas, beliscões, peitos de fora, roupa rasgada, rudeza de corpos suados por cima de um arremedo de cama. Delmira tinha vontade de gritar, mas não de prazer, eita marido bruto!

Cheira-cheira, até convencer que não tinha nada, era só cisma. Portanto, acabava mais uma vez ciente dos próprios direitos. Quando ela, já conformada com o bafo de pinga, começava a gostar, acabou-se o que era doce. Zé Cruz virou-se para roncar novamente. Nequinho gemia no berço.

Meia hora depois, Delmira constatava hematomas diante do pequeno espelho pregado na parede do banheiro. Foi à cozinha e buscou uma banana para o pequeno, e mais um caneco com água. Só assim o bichinho pararia de chorar. Era fraquinho e vivia tossindo. Delmira não entendia muito bem por que seria, já que tanto ela como Zé Cruz eram até parrudos.

Na paz do lar, dormiam todos novamente. Do lado de fora o céu estrelado cobria aquele mundão povoado de sapos e grilos.

Domingo, pé de cachimbo. Desde cedo Zé Cruz caminha entre arbustos, arrancando ervas daninhas e aparando galhos. Sabe lá se Seu Pedrão resolve aparecer de surpresa... Recolhe frutas bichadas, folhas secas, vez por outra a mão na jabuticabeira carregada. Saboreia e cospe. Aquilo é uma espécie de aperitivo para a buchada que Delmira prepara desde a véspera.

Ferve, cozinha, sobe fumaça, o rosto afogueado da mulher parece estar diante de um caldeirão mágico. Hoje tem que caprichar porque mãe Benedita só tem inspiração e animação para suas rezas e simpatias depois de bem alimentada.

Ao meio-dia ela chegou. Devagarinho vinha caminhando, o vestido claro sobre a pele negra destacava-se ao longe. Transpondo a porteira, aproximou-se da casa e viu Nequinho brincando do lado de fora. Perguntou por sua mãe e o menino apontou em direção à cozinha.

Grandes efusões. As duas mulheres conversaram aos cochichos por uma boa meia hora até Zé Cruz voltar do mato.

O rosto moreno e redondo do homem sobressaía sob a cabeleira precocemente grisalha. Zé Cruz jamais vestira algo diferente de um calção. Pés descalços, mãos grossas, o dorso brilhava. A fome, depois da labuta, era sempre avassaladora. Inebriado com o cheiro da panela, foi logo convocando as duas para a festa. Uma branquinha acompanharia o repasto.

Gostava de mãe Benedita. Mulher sábia, impunha-lhe grande respeito, tanto pelos conhecimentos como pela bondade. O bom humor era outra virtude contagiante. Dessa vez, não atinava muito bem por que viera; normalmente ela só comparecia quando insistentemente chamada. Talvez fossem lá os segredos de Delmira...Não importava, o que queria mesmo era comer.

E foi uma beleza. Cada pratão melhor que o outro, de lamber os beiços; a mulher tinha acertado em cheio. A cada bocado que se punha na boca contava-se um caso ou uma piada que fazia todos rirem à larga. A cachacinha, então, descia muito bem. Logo, logo, os três amoleceram e pegaram no sono, um na cama e cada uma das duas numa das redes trazidas da casa do patrão. O pequeno Nequinho mastigava um miolo de pão com o olhar meio perdido. Tudo era silêncio.

`As cinco da tarde as mulheres se levantaram conforme haviam combinbado. Delmira recuperou o ovo escondido e encaminharam-se para o bosque de bambus. Esse era o ponto que ficava mais distante da residência dos caseiros, situado num pequeno declive junto à nascente. Para chegarem nele, ultrapassaram o portão que estabelecia os limites entre a área reservada aos empregados e o território do dono. Os canteiros de hortaliças, meio abandonados, traíam a ausência prolongada de Seu Pedrão. Pois nos períodos em que ele conseguia se demorar um pouco mais, o aspecto era bem outro.

Cresciam couves, alfaces, cebolas, beterrabas, tudo exuberante e farto, como em tácito reconhecimeto por sua presença. A explicação que ele dava para Zé Cruz não era outra: o negócio é trabalhar. Ensinava o homem a alternar plantios, cultivar sementes, regar, podar, aproveitar cascas e folhas na formação de adubo, a limpar e preparar o solo, a colher no momento certo. E isso valia tanto para a horta como para o pomar. Pocãs, limões, abacates, amoras. Cada qual tinha seu momento certo e exigia cuidados próprios.

Zé Cruz entendia tudo e trabalhava duro. Mesmo porque o chefe liberava parte da colheita para seu consumo e para venda na feira. Passado algum tempo, entretanto, ah por que Seu Pedrão se ausentava tanto...

Delmira contou tudo. Falou da fraqueza de Nequinho, das plantas que teimavam em não crescer direito, das galinhas que não chocavam bastante. Cobras peçonhentas se arrastavam ameaçadoras por todo canto. O ladrão que ninguém via e o pavor de serem postos na rua. Finalmente, e essa a razão do segredo, os ciúmes de Zé Cruz. Por conta disso, vinha tendo maus pensamentos, tais como arrumar outro macho ou deitar veneno de rato na comida. Tudo isso, parecia-lhe, só podia ser mau olhado. Mãe Benedita ouviu em silêncio, de cócoras, preparando o cachimbo. Delmira entregou-lhe o ovo que trouxera no bolso da saia.

Reza que reza, benze que benze, aquele era só o começo da história. Uma boa gemada serviria para tosse. Como os problemas eram muitos e variados, teria que completar com firmeza de anjo da guarda, banho de ervas, descarrego, credo. Andava tudo muito esquisito ultimamente. Mãe Benedita voltaria para conferir.

Passados quinze dias, continuava tudo igual. É verdade que Delmira procurava seguir alguns conselhos, tentando fazer com que Zé Cruz fizesse o mesmo. Como, por exemplo, não esquecer de trancar a porteira à noite. Colocar formicida na laranjeira, mas só na quantidade certa, nada de exagero se não a planta morria. Limpeza no galinheiro, vinagre na cabeça do menino para acabar com piolho – uma trabalheira.

Zé Cruz puxou a mulher com força para o quarto. Ela acabara de retornar da Assembléia de Deus que ficava três quilômetros distante. Mas ele achava que aquilo não passava de pretexto para sair de casa, haja vista a arrumação. Vestido estampado, boca pintada, até sandália no pé. Resultado: enquanto ela rezava, ele cismava.

Noite alta. O céu que havia estado plúmbeo durante toda a tarde começou a desfazer-se em água. Enquanto os mortais ressonavam, raios cortavam a madrugada com riscos e estrondos. O mundo submergia progressivamente.

Súbito, o barulho parecia vir do centro da terra. Algo rompia fragorosamente; era o poste de luz que ficava na entrada da chácara. Desabava por entre faíscas. Toda a estrada de terra que dava à casa principal ficou completamente às escuras.

O casal acordou. O que seria aquilo? Ninguém enxergava nada, o breu era completo. Zé Cruz pensou em apanhar a lanterna, mas desistiu; o medo foi maior. Pensando em algum castigo de Deus, agarrou-se à mulher e ficaram abraçados, trêmulos, ansiosos que o dia clareasse. Era mais ou menos seis horas quando resolveram levantar.

A chácara, toda ela, havia sido tomada pelo lamaçal. Para caminhar era preciso cautela. Devagar e sempre, conseguiram ter à entrada bloqueada pelo poste caído. Para surpresa de ambos, havia um ajuntamento. Gente de chácaras e sítios próximos comentava exaltada o acontecido. O mais terrível entretanto ninguém havia presenciado, já que a polícia acabara de retirar um homem morto de sob o poste. Era um dos ladrões; o outro fugira. Ladrão com chuva? Muito estranho... talvez fosse o próprio capeta que viera aprontar por aquelas bandas. Comentava-se com susto que o corpo fora enrolado às pressas e transportado.

Com um pressentimento, Delmira e Zé Cruz foram verificar a casa do patrão. Pela primeira vez desde que havia assaltos, nada fora tocado. Lá estavam as louças, as cadeiras e o espelho; bonés, casacos e sapatos de borracha. Tudo arrumado em seus devidos lugares. De olhos arregalados, constatavam o milagre. Deus havia mandado chuva na hora certa. Excitados com a descoberta, decidiram o passo seguinte: enquanto a mulher começasse a limpeza, o marido iria de bicicleta à companhia de eletricidade; não queriam outra noite sem luz.

Arruma que arruma, os homens passaram toda uma tarde para recolocar o tal poste. Zé Cruz e Delmira vasculharam o terreno temendo cobras. Nequinho mastigava solitário. Aos poucos, ficava tudo normalizado.

Começou então a circular na vizinhança a história de uma benzeção que havia espantado o demônio, o coisa-ruim que tanto azar costuma trazer aos pecadores. Delmira pensava nos sinais evidentes da boa sorte e do tanto que as pessoas conseguem quando têm fé em suas preces e ações. E principalmente na necessidade de mantê-las secretas, só para si. Mesmo que o povo falasse e imaginasse coisas. É claro que ainda havia muito a ser consertado nessa vida. Por enquanto, contudo, era preciso aguardar com paciência e prosseguir trabalhando.

Certa manhã, pouco tempo depois do temporal, estava ela regando mudas recém plantadas, enquanto Zé Cruz passava tinta branca no muro da casa principal. Havia um pressentimento.

Lá pela onze, um automóvel apareceu ao longe, na estrada de terra. Era Seu Pedrão que chegava.

*************************************************
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui