Usina de Letras
Usina de Letras
87 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62240 )

Cartas ( 21334)

Contos (13265)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10368)

Erótico (13570)

Frases (50639)

Humor (20031)

Infantil (5436)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140810)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6194)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->À Sombra do Jatobá - XV - A morte de Chora -- 28/09/2003 - 01:10 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá – XV – A morte de Chora.

Deus deve ter ouvido os lamentos de Chora. Até parece coisa encomendada. Depois que todos partiram, após o féretro de Otávio, a fazenda Esperança ficou uma desolação só. As mulheres se amparavam. Delfina, Miloca e mesmo Chora se uniam, para suavizar o sofrimento de Dalva. Filó e Ana ainda ficaram alguns dias, mas voltaram para casa porque Dona Verenciana estava acamada e Chico e Teobaldo cuidavam dela e de Tonino.

Durante alguns dias o tempo se firmou, para decepção dos moradores da Ribeira do Curú, mas logo novamente o céu abriu suas comportas e o aguaceiro tornou a cair, correndo em fortes levadas, arrastando tudo que estivesse em seu caminho.

Lá da cozinha, Chora escutou o guincho desesperado de um bacorinho e viu, da janela, um revolver de cabeça, corpo e pernas, no meio da enxurrada. Saiu correndo e segurou o bichinho pelo pé, mas escorregou na lama e caiu, batendo com as costas nas raízes expostas de um cajazeiro.

Ali foram encontrá-la, gemendo e se retorcendo, mas segurando ainda, firmemente, o porquinho pela pata.

Em vão o Dr, Januário foi chamado. Lá na cozinha, as cunhãs choravam e comentavam:

- Tem jeito, não! Desmentiu o espinhaço!

Delfina, com a ajuda de Miloca, instalou o velório de Chora na capela, onde ha poucos dias tinham velado por Otávio. Ficaram admiradas com a quantidade de pessoas que vinham se despedir da velha negra, que lhe traziam flores e se acercavam do seu caixão, se persignavam e continuavam rezando baixinho, com os olhos rasos d’água.

Miloca encobrira a mão mirrada de Chora com a sua mão perfeita e enrolara as duas, assim unidas, com o terço da querida amiga, que parecia sumir na largura do caixão.

Delfina providenciou um lanche reforçado, com canja e cuscus de milho para os colonos e amigos que ali ficaram fazendo o quarto e puxando ladainhas à morta.

Padre Jesuíno havia chegado para encomendar o corpo e, comovido, lembrara que Chora era uma das muitas mulheres anônimas que, com a sua vida reta, de dedicação ao trabalho e cumprimento dos deveres, ajudam ao Cristo a carregar sua cruz. Assim como foi o velório de Otávio, mais uma vez a velha capela tornava-se soturna, com o bruxulear das velas que circundavam a urna e projetavam sombras enormes nas paredes.

Com a voz embargada pela emoção, convidou os presentes a acompanhá-lo na Excelência que nesta noite, puramente nordestina, ele faria os seus paroquianos cantar em louvor à Nossa Senhora e em exaltação à Chora.

O padre começou, com vós trêmula, mas muito doce, cantando sozinho a abertura:

- Oh! Mãe de Deus, rogai por ela, Mãe de Deus.
Mãe de Deus, Mãe de Deus, rogai por ela, Mãe de Deus.

Com toda a singeleza e boniteza do cântico, padre Jesuíno puxava o abecedário da Excelência e o povo, contrito, respondia:

- Diz o A - Ave Maria
- Diz o B – Bondosa e bela
- Diz o C – Cofrim da Graça
- Diz o D – Divina Estrela

- Diz o E – Esperança nossa
- Diz o F – Fonte de Amor
- Diz o G – Guia do povo
- Diz o H – Honesta flor

- Diz o I – Incenso d’alma
- Diz o J – Jóia mimosa
- Diz o K – Coro dos Anjos
- Diz o L – Luz formosa

- Diz o M – Mãe dos mortais
- Diz o N – Nuvem de brilho
- Diz o O – Orai por nós
- Diz o P – Por vossos filhos

- Diz o Q – Querida mãe
- Diz o R – Rainha da Paz
- Diz o S – Socorrei sempre
- Diz o T – Todos mortais

- Diz o U – Uma Esperança
- Diz o V – Vale Profundo
- Diz o X – Xis dos mistérios
- Diz o Z – Zelai o Mundo

(Pesquisa de cânticos nordestinos feita pelo nosso Acadêmico Ariano Suassuna e cantada por Antonio Nóbrega – recolhida na Internet, no site do cantor)

E assim a noite do velório passou, com a Excelência entremeada com o Pai Nosso, Ave Maria e Salve Rainha.

Os terços rolando, conta por conta, nas mãos humildes e, na maioria, rudes e nodosas, dos amigos de Chora. De vez em quando alguém saia e ia para a sacristia se alimentar, tomar um café quentinho, e voltar a cantar a Excelência.

Que noite de tanta paz! De oração pura! Em união do Amor e já a saudade.

Neste ambiente, Delfina, Miloca, Filo e Ana atendiam o seu povo, mas permitiam que as suas próprias lágrimas rolassem livremente, por Chora, por Otávio e por Roberto.

----x----

Aos domingos, depois da missa, padre Jesuíno, dando o braço para Dalva, e acompanhados da família, seguia para o cemitério. Iam rezar sobre as campas de Otávio e Chora. Dalva levava flores e, depois das orações, enquanto enfeitava e arrumava, carinhosamente, as sepulturas, todos esperavam silenciosos e, na maioria das vezes, desfeitos em lágrimas.

Esta obrigatoriedade de reverenciar o pai, como finado, engolido pela terra, causava mal estar à Delfina. Ela jamais visitara a campa de Roberto, porque procurava mantê-lo vivo, perto de si, participando de seus pensamentos, da sua vida. Durante dois anos usara luto; a princípio pela imposição da sociedade e depois por não encontrar motivo para tirá-lo: não existia data marcada para se deixar de sofrer, pois seu coração seria sempre viúvo.

Por exigência de Miloca havia posto de lado as roupas pretas.

- Não gosto ver a senhora sempre de negro, mãinha.

- A cor não importa...

- Com não importa? As pessoas até falam baixo, perto da senhora. Todo mundo dá sempre um jeito de perguntar como foi o acidente, com se fosse pecado falar de coisas alegres com quem está de luto.

Delfina fitou espantada a filha. Já se fazia mocinha, alta, magra, séria, parecendo ter mais idade que seus doze anos. Como que descobrisse em suas palavras um queixume, talvez um pedido de socorro, percebeu o mal que a sua figura sempre de negro e tristonha, estava causando à filha. No dia seguinte foram as duas para a cidade e ela permitiu que Miloca, cheia de alegria, escolhesse as fazendas e desse palpites nos feitios dos vestidos.

É para os vivos que se têm de viver e é mantendo a lembrança dos nossos mortos, dos momentos de alegria que nos concederam, que sublimamos a dor da separação. Delfina aprendeu isso, ao perceber que todos os domingos Dalva tornava a enterrar o marido, e tornava a deixá-lo lá, na solidão. Não o trazia consigo, como ela lembrava de Roberto, aquecido no coração pela gratidão de tê-lo tido como esposo. Por tão pouco tempo lhe durara a companhia de Roberto, mas valera a pena, e, se não lhe bastasse os momentos de amor e ternura, Miloca estava ali, para enriquecer-lhe a vida.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui