À Sombra do Jatobá XVII – Ciúmes de Chico
Naquela noite, enquanto esperava que Delfina viesse buscar Filó para a novena, Chico remoia seus pensamentos. Não concordava com a idéia de Ana ir para a cidade e admirava que Teobaldo não desse logo uma resposta, proibindo aquela loucura. Quando Delfina intercedeu, para que ele fosse estudar em Fortaleza, Teobaldo ficou muito bravo, não concordou, e não permitiu que ela voltasse ao assunto. Como iria deixar Ana sair agora de casa?
Chico percebia o desabrochar de Ana; achava-a cada dia mais bonita e o ciúme passou a machucá-lo. Medo de perdê-la, de ser posto de lado pelas novidades da cidade. Aproveitando o silêncio da varanda onde Filó esperava pela irmã, ele se aproximou.
- Tia Delfina não aprova Ana ir para a cidade, não é?
Filó olhou-o demoradamente. Os olhos negros do rapaz não se afastaram dos seus.
- Delfina não manda nesta casa. Se Teobaldo decidir, Ana irá, sim.
Tia Elvira pediu. Que mal há nisso?
Chico respondeu, impaciente:
- Não, não há mal nenhum! Pelo contrário, vai ser tão bom, que ela vai ficar por lá mesmo! Não vai querer voltar, e a senhora vai se arrepender. Eu conheço a Ana. Quando se pegar livre, dona do seu nariz, vai inventar modos para não voltar. Eu, se fosse Teobaldo, não deixava, mesmo.
- Está bem, não fique bravo. Teobaldo vai resolver. Eu, por mim, acho bom ela ir; vai ajudar a tia e vai aprender a se cuidar sozinha. Depois, a Ribeira é ali mesmo!
Pararam de conversar porque a caminhonete de Delfina havia cruzado a porteira. As duas partiram e Chico ficou olhando a luz dos faróis sumirem na estrada.
Depois da novena que decidiram fazer para o restabelecimento de Dalva, que andava em crise de asma, Delfina perguntou à irmã:
- Teobaldo já decidiu?
- Ainda não. Ele ficou danado porque você se meteu.
- Sei, ficou danado comigo e por isso vai deixar a Ana ir...
- Mas Delfina, que mal pode haver em Ana fazer companhia à Elvira?
- Nenhum. Só acho que Ana está ficando moça e precisa de você, que está na hora de vigiá-la e não de soltá-la, Filó!
- Até parece que estou jogando minha filha no mundo! Ela vai ficar perto da nossa irmã, lembra? Você não acha que será horrível se Elvira tornar a perder um filho?
- Acho, mas não se concerta um mal com outro.
- Como, Delfina? Que mal tamanho é esse? Não somos da mesma família, não devemos nos ajudar?
- Devemos, sim. Já pedi à Elvira que viesse para a fazenda, mas Arnaldo não quer. Prefere levar uma criança, como a Ana, para ajudar a mulher, e não sair das suas comodidades. Isto é egoísmo! Não sabemos como Ana vai reagir lá na cidade.
- Não confia em Ana? Você quer me ofender?
- Ora, Filó, Ana é uma criança, ainda, mas é maluca pelas novidades da cidade. Eu acho que está na idade de ser orientada por você, e não por terceiros.
- Elvira me parece muito ajuizada
- É sim. Ajuizada, bem casada, amparada pelo marido e a Igreja. Não confunda as coisas, Filó. Quem precisa do amparo seu e do Teobaldo é a Ana
- Ora, o Teobaldo fará o que eu quiser – pavoneou Filó.
- Pois então vocês decidam e assumam a responsabilidade. Nem sei porque me preocupo. Afinal, como você diz, a filha é sua, mas não percebe o quanto ela é infantil e abestada!
- Delfina, não ofenda!
- É sim, sempre foi cheia de romantismos e caraminholas na cabeça.
- Delfina, você tem Miloca...
- Sei, e a mantenho de rédeas curtas.
- Tão curtas que a coitada nem arranjou namorado.
- Você acha, por acaso, que está na hora de Ana arranjar namorado? Está ficando cretina, Filó?
- Com você não se pode conversar. Sabe o que mais, cuide da sua vida.
- Cuido sim, e com sacrifício, eu garanto. Façam o que quiserem, mas não venham culpar depois.
Bufando de raiva, Filó saiu pisando duro e entrou no carro. Partiram caladas, como duas inimigas. Delfina ia ruminando a sua raiva: “Abestada! Largar a filha na casa de Elvira; uma tia cheia de problemas, cheia de temores, não pode ser boa companhia para uma mocinha. Ora! Cegas! Teobaldo moleirão, só quer parecer o chefão da família! Que se danem!”.
Para desespero de Chico, Teobaldo irritado com a opinião de Delfina, permitiu a ida de Ana para a cidade.
Num fim de semana, ao entardecer, Arnaldo veio buscar a Ana. Parou seu carro em frente à varanda e desceu. A casa gritou a sua simplicidade, quando o dentista entrou esbanjando elegância, importância e vida farta. Ele tinha o dom de acachapar tanto as pessoas, quanto o ambiente que o cercasse, da mesma forma que seus pertences pareciam tomar vida própria, suas roupas impregnavam-se com o perfume de sua lavanda; seu carro luzia como se acabasse de sair da loja; suas casas – gabinete dentário e a de moradia – recendiam a óleo de peroba e cera. Tudo que era dele precisava ser reluzente e caro.
Teobaldo, que sempre se mostrara senhor de si e do seu terreiro, constrangeu-se ante a figura emproada do concunhado. Parecia estar recebendo favores, em vez de concedê-los.
A própria Filó ficou cheia de dedos e não sabia se o convidava para sentar, se lhe oferecia um cafezinho. O ambiente de sua casa tornara-se diferente, mesquinho, com a presença daquele homem tão bem vestido e tão bonito. Ele não cabia ali. Destoava da simplicidade de Teobaldo e de Chico – um rapagão vigoroso e tostado do sol. Sempre orgulhoso do irmão adotivo, Teobaldo comparou-o, por instantes, com o janota que os inibia. Chegou a sentir pena do dentista, tão enfatuado e tolo. A sua face pálida mostrava pequenas veias azuladas na pele lisa e, no fundo daqueles olhos verdes, havia um brilho seco de empáfia, enquanto a sua boca, perfeita, sorria um sorriso forçado, sob o bigodinho bem tratado.
Chico era um touro de forte, criado com o apojo das madrugadas, recendia a feno, um símbolo de campo aberto, de liberdade. Agora, com a cara enfarruscada, demonstrando que não lhe agradava a presença do intruso e a saída de Ana, permanecia calado a um canto da sala.
Arnaldo declinou dos convites da cunhada para ficar um pouco. Tinha pressa, ia haver reunião na casa paroquial, onde seriam resolvidos assuntos importantes, e ele não podia se atrasar. Ficaria para outra vez. Sua voz de sino, em palavras precisas, deu recados de Elvira à irmã. Ao se despedir, ele afirmou:
- Não se preocupem com Ana. Ela estará bem, lá em casa, e não há de lhe faltar nada.
Teobaldo sentiu o peito apertar. Quando faltara alguma coisa a seus filhos? Ainda estomagado com a teimosia de Filó, não se conteve e retorquiu:
- Arnaldo, quem cuida dos meus filhos sou eu. Não confunda a situação. Ana vai para ajudar a sua mulher, e não porque precise que vocês a sustentem. Vamos deixar bem claro que, quando nascer o seu filho, ela volta para casa.
O dentista percebeu que havia melindrado o dono da casa e, por isso, respondeu, maneiroso:
- Por Deus, Teobaldo, eu não quis ofendê-lo! Longe de mim uma grosseria dessa. Eu quis lhe dizer que faremos tudo para que Ana se sinta em sua própria casa.
Ana, fuzilando o pai com o olhar, despediu-se dele, da mãe e do irmão Tonino – que, muito emburrado, mal lhe retribuiu o abraço.
Chico puxou-a para o lado e avisou baixinho:
- Você vai porque é louca e sua mãe igual a você, mas cuide bem, se não se comportar direito eu vou lhe buscar – dizia estas palavras, enquanto apertava o cotovelo da mocinha.
Ana deu um safanão, soltando o braço, e respondeu, raivosa:
- Não se preocupe. Eu sei me cuidar.
- É bom saber, mesmo. É bom saber!
Ao levar a filha até o carro, Filó sentiu o coração ficar pequeno. Ana, muito senhora de si, entrou no veículo e se acomodou ao lado do tio.
Se arrependimento matasse, Filó estaria aquela hora estatelada no chão. Parecia-lhe perder a filha, tão assustada estava com as palavras de Delfina a martelarem seus ouvidos, seguidas das contestações de Teobaldo e Chico.
A medida que o carro se afastava, sentia que o mundo engolia a sua filha. Agora teria que enfrentar o silêncio pesado entre o marido, Chico e as lamúrias de Tonino.
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