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Contos-->Destino. -- 04/10/2003 - 18:11 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Há momentos na vida em que meu corpo se torna febril e adoeço misteriosamente. Por um ou dois dias, em minha mente, o mundo se torna fundo e minhas recordações tornam-se figura presente. Passo esse tempo em casa, longe das pessoas, inebriado, adoentado, sobre cobertores, tomando chá, como se eu estivesse resfriado. Durmo, tenho sonhos, pesadelos, às vezes fico num estado semi-acordado. Só a mente trabalha. Ela requer do corpo um pouco de sossego para que ela possa destilar suas memórias, reviver o que passou. Fuço o passado, revivo situações, relembro canções, rio de piadas contadas a anos por pessoas que deixaram saudades, choro. Nesses nomentos, revivo o passado e projeto o futuro, imagino como será minha vida baseada naquilo que aconteceu, traço metas, planejo a vida. Cresço. Assim me encontro agora, em casa, agasalhado, tomando uma xícara de chá. São três horas da tarde. Lá fora uma chuva grossa e constante cai como no dia em que tive a certeza que breve o destino afastaria eu de minha mãe.

Eu sabia que havia algo de errado, pois minha mãe raramente me deixava sozinho em casa. Ela me disse que iria levar o resultado dos exemes ao médico e me fez várias recomendações, mas me disse, sobretudo, que era para mim estar dormindo quando ela voltasse. Só então consegui juntar o monte de situações que estávamos vivendo a meses. Minha mãe estava doente, ela acordava muito durante a noite e muitas vezes vomitava. Tomava muitos remédios, ia muito ao médico e sempre me levava, mas dessa vez ela não me levou. Lembrei que esse era um médico especialista, com quem ela já havia consultado, feito exames e faltava portanto levar o resultado. Naquela tarde não consegui, dormir, brincar ou fazer qualquer coisa diferente de pensar.

Quando minha mãe chegou em casa, chovia torrencialmente. O taxi parou em frente de casa e pela janela eu pude vê-la abrir a porta do carro. Chorando descontroladamente, abafado pelos sons da chuva. Tive o ímpeto de correr para ampará-la, porém a última peça se encaixou. Minha mãe havia me pedido para estar dormindo quando ela voltasse porque o resultado dos exames poderia ser ruim. Voltei à cama, me cobri com o cobertor e fingi que estava dormindo. Minutos depois pude perceber que minha mãe suavemente abria a porta de meu quarto e balbuciando alguma coisa, fechou a porta e mesmo com a porta fechada pude ouvir seu choro descontrolado.

Acordei no outro dia com minha mãe velando meu sono, deitada ao meu lado, me olhando com o olhar doce que eu só via quando ela admirava a foto de meu pai. Não trocamos nenhuma palavra, simplesmente nos abraçamos.

Os dias que se sucederam foram dias de alegria e sofrimento. O estado de saúde de minha mãe piorava e ela tomava cada vez mais remédios. Ela sentia muitas dores, mas não deixava que eu, abertamente, visse seu sofrimento.

Minha mãe sempre fora de poucas palavras, de gênio forte, um pouco intempestiva, mas inteligente, uma grande mulher. Sendo assim, nessa época, ela afastou todos de casa, parentes, vizinhos, amigos. Ás vezes passávamos um dia inteiro quase sem trocar palavras. A única linguagem usada por nós era a linguagem do coração, da sensibilidade. Só essa linguagem bastava. O único som que se ouvia em casa nessa época era o de uma velha fita cassete de Chopin que sempre colocávamos a noite depois do jantar. Eu me deitava em seu colo e ela acariciava meus cabelos. Como era bom sentir seus dedos em minha face, seu colo quente, seu cheiro. Não era raro eu dormir alí mesmo, no colo materno, enquanto o som choroso do piano ecoava pela casa.

Vivemos assim por semanas, até que, após uma noite de muito sofrimento por conta das dores, minha mãe me chamou. Me fez sentar solenemente frente a ela e me disse que na semana seguinte eu deveria ir para a casa de minha avó. Eu não quis questionar nada, apenas abaixei a cabeça e concordei. A linguagem do coração é rápida e direta.

Na noite anterior ao dia da partida dormimos na sala, eu no seu colo, ouvindo o mesmo cassete de sempre. Acordei no quarto, ainda ouvindo Chopin. Levantei-me, chorei muito durante o banho demorado que tomei. Eu sabia o que aquele dia significava. Quando cheguei na cozinha para o café da manhã, na vitrola tocava Nocturne. Minha mãe estava vestida com o vestido vermelho de bolinhas brancas que eu tanto gostava, usava tranças no cabelo, batom vermelho e o perfume que eu mais gostava. Linda, a doença pouco influenciava em sua beleza. Sorridente, ela me serviu com todas as comidas que eu gostava: bolinhos de chuva com manteiga de leite e leite com café bem doce. Comemos despreocupadamente, vez por outra ela acariciava minha mão, e sorrindo elogiava minha educação, meus cabelos e fazia previsões de que eu seria um bom homem, um bom esposo e pai. Aquilo me incomodava, mas eu não conseguia desprender-me do clima criado pela situação. Terminado o café, fui ao quarto pegar minha mala que fora preparada no dia anterior. Do lado, escondida debaixo da cama, vi uma sacola transparente cuidadosamente arrumada com camisolas, toalhas, uma sandália de dedo e uma ficha de hospital preenchida com todos os dados de minha mãe, constando inclusive o número do apartamento que ela ficaria internada. Arrumei tudo de volta sem minha mãe perceber e voltei a sala. Ela me esperava sorridente, em pé, com as mãos para trás. Parei sobre o portal do cômado e ela estendeu os braços. Como seu sorriso era lindo. Corri, abracei-a pela cintura e chorei. As palavras não saiam, só as lágrimas rolavam por minha face. O taxi buzinou na rua, minha mãe agaixou-se, me abraçou fortemente, me cheirou, beijou todo o meu rosto e me disse olhando ternamente em meus olhos: "Siga seu destino, eu seguirei o meu. Seja grande, eu estarei sempre com você".

Da janela do carro vi minha mãe pela última vez. Chorando.

Dias depois, já na casa de minha avó, enquanto brincava ouvi um telefonema, eu sabia do que se tratava. Instantes depois minha avó veio me dar a notícia. Eu a disse que não queria participar de nenhuma cerimônia e que a nossa despedida já havia acontecido.

Adoeci, tive febre, delírios.

A sensação febril que tenho agora e sempre é a mesma sensação que eu tinha quando recebia os beijos e abraços de minha mãe. Ela está em mim, sobretudo nos momentos em que tenho febre.
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