Como de costume foi atraído pela felicidade alheia. Foi o riso alto da menininha no fusca vermelho que chamou sua atenção, e o levou a espiar para dentro do carro.
Eu poderia descrever a cena, páginas e mais páginas sobre os dedos do menininho, a saia da menininha, sua bucetinha rosa como um botão de flor. E a raiva, a confusão e o desejo do psicótico, seu sorriso e seu aceno cordial pegando de surpresa as crianças num momento de felicidade. Eu poderia contar que ele entrou no carro, e todos sumiram e nunca mais foram vistos, e então insinuar alguma cena macabra ou idílica, alguma salvação ou perdição, ou poderia dizer apenas que foi uma conversa amistosa, ou nem isso, ou nada.
Poderia dizer a verdade. Poderia dizer que fui eu, numa subida de casa para o banco quem viu as crianças, e que nem espiei, só imaginei. Que dei um tchau e continuei meu caminho.
Poderia tanta coisa! Mas só consigo me lamentar por ter ficado para trás o tempo em que eu nem imaginava que poderia tanta coisa. O tempo em que andava pela cidade no fusca laranjado do pai, e brigava com meu irmão para sentar atrás do banco da mãe.
Começar a escrever essas coisas é sinal de que estou ficando velho.
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