Usina de Letras
Usina de Letras
96 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62240 )

Cartas ( 21334)

Contos (13265)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10368)

Erótico (13570)

Frases (50639)

Humor (20031)

Infantil (5436)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140810)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6194)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->À Sombra do Jatobá -XXI - Ana volta para a fazenda -- 12/10/2003 - 21:28 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Sombra do Jatobá –XXI – Ana de volta para a fazenda.

A viagem de volta de Delfina e Ana para a fazenda correu no mais pesado silêncio. Sem querer perguntar como ou por quê, Defina mantinha-se calada.

Nem Ana poderia contar como, pouco a pouco, de mansinho, o tio foi tomando intimidades com ela; a princípio, numa carícia suave, simpática, uma brincadeira que a fizesse rir; depois uns beijinhos inocentes, na face da menina, beijinhos que ele chamava de “bicotinhas” –“ Uma bicotinha pro titio, minha linda!”– e dai vieram os chamegos nas horas vagas, entre um cliente e outro, rápidos, testando, insinuando, despertando arrepios, uns risinhos nervosos, provocando a vontade de um pouco mais... Por fim, já vinham os chamamentos de fala dengosa, muxoxos, remelexos com o corpo: “Vem cá, minha bichinha, deixa o titio dar uma cheirada no cangote! Deixa?” Negaças, também de corpo mole, cooperando: “Não, tio, sai pra lá! Deixa eu trabalhar em paz...”
Ele insistia: “Meu caçuazinho de flor, um cheiro no pescocinho?” – as mãos entraram em ação, leves, borboleteando ora aqui, ora ali, pregando sustos; depois, mais ávidas e atrevidas, passaram a explorar o corpo da sobrinha, enquanto esta, de escovinha em punho, lavava as agulhas, as brocas, que compunham o material de tortura dos clientes, elas subiam-lhe pelas pernas; agora, já sem pregar sustos, sem fazer rir ou fugir, lentamente, afagando-lhe as coxas. A mocinha se esquivava e ele tornava a assediá-la, enquanto o fogo o consumia. Seus olhos verdes tornavam-se opacos, sua boca sensual se apertava e se retorcia, em pequenos gemidos e, quando ela se assustava e fugia, ele tornava à calma e ria, desavergonhado, como se tudo não passasse de “estripulias”.

Mas, naquele anoitecer, quando o último cliente saiu, ele preparou o palco: trancou, sem que Ana percebesse, a porta de entrada da casa e voltando para o consultório, começou brincar com ela. Já acostumada com seus atrevimentos, gostava de provocá-lo, de ouvir coisas picantes, e rir , como uma muleca arteira; deixou-se ficar no gabinete, se pôs a correr em volta da cadeira de dentista e a rir dos seus botes frustrados. De repente, ele a pegou e encheu sua boca de beijos, puxou seus cabelos para trás e mordiscando seu pescoço, sussurrava coisas, entre bufos e gemidos. Apertando-a com força junto ao corpo, ele se lhe amoldava como sanguessuga.

Das brincadeiras, dos risos, das investidas e fugidas, restou aquele momento concreto, sem recuos, sem mentirinhas; restou a sujeição ao desejo, restou a vontade incontrolável de ir até o fim; ele, de possuir aquele corpo jovem, que há tanto tempo cobiçava; ela, de atender ao chamamento do sexo, de conhecê-lo todo, de provar de vez o ignorado.

E provara, e se machucara, e lhe ardera o corpo todo na posição incômoda, no chão duro e frio, no peso que lhe parecia absurdo de Arnaldo sobre ela e lhe ficara o travo amargo da violência, típico do sexo sem amor.

Além do cansaço, o grande desencanto se antecipou ao arrependimento. Ele a deixara ali, caída no chão, a soluçar baixinho, e lhe dissera:

- Arrume-se no banheiro e depois vá para casa. Eu irei na frente, já é tarde e Elvira pode desconfiar... – afagando-lhe a testa suada, continuou – eu lhe direi que você ia passar na farmácia, fazer umas compras. Não se apresse.

Ainda sorrindo, tornara a beijá-la, completando:

- Cuide-se bem! Não me vá aparecer lá com esta cara de pomba assustada!

Sem continuar a perguntar o como ou o por quê, Delfina ruminava seu ódio, pois tinha todas as respostas; respostas antigas, sabidas, daquele abusar da autoridade sobre a inocência e daquele deslumbrar das coisas novas, sigilosas que se fazia imperioso, pela excitação produzida de maneira contínua, manipulada, maldosa, que Arnaldo, como cobra cavilosa, havia produzido, conscientemente... Quantas vezes Roberto lhe havia comentado outros fatos semelhantes, ocorridos com mocinhas, suas clientes, em Recife! Sempre a prepotência se aproveitando da ingenuidade de adolescentes!

Delfina ruminava ódio, revolta, desconsolo. Filó! Teobaldo! Chico! Elvira! Cristo, que desmantelamento!

O coração de Ana batia descompassado, e sentia-se desorientada como um passarinho que perde o vôo.

A mando de Delfina, Miloca tinha ido buscar a tia Filó; “que a vovó não estava passando bem, que mamãe precisava da ajuda da irmã” Foi a desculpa que deu para Teobaldo.

- Delfina pedindo ajuda? – admirou o fazendeiro – estou pra ver...

- Não, tio, é que vamos começar uma novena...

- Miloca, para Delfina puxar novena é por que é coisa séria. Acho melhor irmos todos... – foi a resposta desconfiada.

- Ora, tio, não se apoquente, daqui a pouco trago a tia de volta!

- Está bem; vocês, mulheres, são cheias de mistérios. Filó vai, e depois eu fico sabendo o que há por trás disso tudo...

Quando Filó foi para o seu quarto, buscar o seu terço e o livro de orações, Miloca a seguiu. Fechou a porta e aproximou-se da tia. Fazendo-lhe sinal de silêncio, entregou-lhe, nervosa, a carta de Ana para Delfina.

Foi difícil para Filó ler e aceitar aquele horror de notícia. Sufocou, com as mãos sobre a boca, o gemido de dor. Depois, num fiapo de voz, quis saber onde estava a filha.

- Lá em casa. minha tia. Mamãe foi buscá-la. Vamos depressa, antes que tio Teobaldo perceba alguma coisa!

- Meu Deus! Como vou dizer para ele?

- Vamos logo, tia, que a mamãe quer conversar com a senhora e com a Ana, primeiro.

Ao passarem pela sala, ouviram Teobaldo perguntar:

- Não seria melhor o Chico ir com vocês? Ele pode ajudar em alguma coisa

Sem diminuir os passos, Filó respondeu;

- Não precisa não, Teobaldo, já, já, estaremos de volta.

Saíram apressadas e subiram na caminhonete. Filó ia tensa, com olhos fixos na estrada. Sentia o mundo desabando e, por fim, deixou o corpo cair no encosto do banco:

- Quando, quando ela escreveu isto? – perguntou, sacudindo a carta na mão.

- Hoje à tarde, o Donato, aquele rapaz da farmácia, veio entregar em casa, nas mãos da mamãe.

- E... e sua mãe?

- Ora, tia Filó! Saiu guiando feito louca para a cidade e já trouxe a Ana!

- Meu Deus! – Filó se retorcia – Eu não atendi aos conselhos, às brigas de Delfina, nem aos pedidos do Chico! Eu forcei o Teobaldo a deixar que Ana fosse para perto daquele miserável! Quem havia de imaginar! E agora, meu Deus! E agora?

Sem encontrar palavras que aliviassem a tia, Miloca apertava o pé no acelerador. Tão bonita, um ano mais velha que a prima, quantas vezes havia invejado a liberdade adquirida por Ana e quanta falta achava na sua companhia, dos seus “causos” de amor e tragédias que ela colecionava, das conversas com as empregadas, com a rendeira Sinhá e tantas outras fontes. Ana fora para a cidade, tornou-se moça bonita, faceira. Miloca sentia a diferença que surgira entre as duas. A prima desabrochara de uma hora para outra. Deixara de ser sua amiga íntima, não havia mais tempo para ficarem conversando e rindo, como antes. Ana participava da vida da cidade e se tornara indiferente para com a família. Na igreja, naqueles rápidos encontros, os olhos de Ana vagavam, ansiosos, buscando a admiração de todos e, quando Chico a interpelava sobre quando voltaria para casa, ela desconversava:

Que ia bem nos estudos, que tia Elvira ainda precisava de sua companhia, que estava ajudando e aprendendo muito com o tio, no seu consultório.

E como aprendera! E como terminara, de uma vez por todas, com os estudos! E como ela, Miloca, sentia-se incapaz em demonstrar carinho ou piedade pela tia, ao seu lado.

O mesmo pesado silêncio que envolvera Ana e Delfina no caminho da fazenda, pairava, agora, entre as duas. A viagem parecia-lhe interminável. Apenas o sacolejar do carro, passando pela estrada poeirenta e encalombada, prendiam-nas atentas à realidade do tremendo sacolejão que a vida lhes havia dado.

Na varanda, Delfina esperava por elas. A um canto, Ana parecia encolhida, diminuída pela vergonha e infelicidade.

- Lá está sua filha, Filó. Vamos entrar e conversar com calma. Eu já mandei recado para Elvira. Mandei um bilhete, dizendo-lhe que Ana veio para casa, porque você não estava passando bem.

- Você não deixou que Elvira ficasse sabendo de nada, não, Delfina?

- Você acha que vou por nos jornais as sujeiras da família, Filó? Já pensou no escândalo que irá aprontar?

Filó, procurando uma cadeira para derrear o corpo, lançou o olhar angustiado para a filha.

Ana, emburrada e rubra, encostada numa pilastra da varanda e meio de costas para a mãe, fixava o escuro.

Existem momentos, neste mundo de surpresas e despautérios, em que a gente tem vontade de subir. subir como uma bolha de sabão, leve e luzidia, afastar-se das desgraceiras da terra, dos desencontros e decepções; pairar acima deles, juntar nas lembranças o que de lindo e bom se viveu e, dando Graças à Deus pelo pouco que se juntou, explodir sem deixar cacos.

Diz uma poesia francesa que “os dias tem a cor dos nossos sentimentos”. O dia de Filó, que amanhecera claro e radioso, como o mais comum dos dias, pretejara de repente, como se sua cabeça houvesse sido envolvida por nuvens negras; a noite chegara sem que a pobre desse conta do tempo passar; para ela, ele havia estacado e jamais voltaria a caminhar. O sofrimento se emperra, se agarra em nosso peito, e não lhe importa que o sol nasça, que os dias se renovem, ele não conta os minutos, se emplastra em nosso coração, toldando a nossa mente. Ora, o tempo! O tempo suaviza as arestas dos nossos mil dissabores, mas, as marcas de dor permanecem para sempre, cunhadas à ponta de faca na casca da nossa vida!

Levantando com dificuldade, como se as pernas não agüentassem o peso de tanta mágoa, Filó caminhou para perto da filha e lhe perguntou, em voz baixa:

- Quem lhe disse que você só pode estar nesse... nesse estado?

Encrespando a fisionomia, mostrando o quanto lhe era penoso falar sobre o assunto, Ana sacudiu de leve a cabeça e levou o olhar para muito longe dos olhos da mãe e, mastigando as palavras com dificuldade, respondeu:

- Foi tio Arnaldo. Depois do... Bem, depois de...Bem, eu não tive mais regras. Comecei a ficar doente, com tonturas e ele disse... Bem, ele disse que ia me mandar, não sei para onde, tirar o nenê. Eu fiquei com medo e... e escrevi para tia Delfina.

Filó perdeu a tramontana:

- Cachorro! E desmiolada você também! Fazer isto para sua tia Elvira, para sua mãe! Para o seu pai! E agora, Ana? Por que? Por que?

- Eu não sei... - respondeu a mocinha, sem se mover, sem tirar o olhar do escuro – foi indo... foi indo... e aconteceu!

Depois volveu a cabeça para a mãe e, com toda a amargura do mundo, exclamou:

- Eu queria morrer!

Filó, fitou-a estarrecida e, sem titubear, juntou a filha ao peito e logo suas mãos trêmulas apertaram os seus ombros delicados. Olhando-a com os olhos suplicantes, implorou;

- Perdão, Ana, perdão! A culpa foi minha, bem que Delfina me avisou... Pelo amor de Deus, minha filha, me perdoa? – e voltou a juntá-la num abraço apertado.

Esta seria a hora ideal para o mundo parar; que o tempo parasse, de fato, naquele abraço, que não as fizesse enfrentar o que estava para vir.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui