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Contos-->Trajando Negro -- 16/10/2003 - 14:17 (Cleber Lussana Sana) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Trajando negro das calças ao sobretudo, dos sapatos ao guarda-chuva, do coração aos sentimentos, apenas o grosso blusão de lã bege, destoa, emprestando alguma vida a figura sombria do homem esguio que deixa o trabalho em direção a sua casa depois de um dia de trabalho. No frio inverno gaúcho, anoitece em Porto Alegre, o equipamento na esquina cintila entre as 17:50 e os 12º C, mesmo assim o homem decide voltar a pé. O caminho de volta é longo, são mais de seis kilometros, uma hora de caminhada a passos lentos e pensativos.

Pensa: “Vamos lá” enquanto as pernas entram em ação iniciando a caminhada. A calçada está lotada, alguns caminham na mesma direção que o homem, outros em direção contrária, outros ainda estão parados formando as filas de espera dos ônibus. Nos primeiros 200m a caminhada é um diminui velocidade, espera, passa rápido pela direita, desvia para a esquerda, para de novo, espera uma fila de pessoas passarem entra em outra fila que segue a passos lentos, encontra um espaço, da uma corridinha, sai da calçada, volta apressa o passo, diminui e assim sucessivamente. Nosso personagem faz estes e outros movimentos sem ao menos perceber, carrega o guarda-chuva e não é de se admirar que cutuque com ele um ou outro pedestre. Sua cabeça já não está mais na rua, está viajando longe, lembrando do dia de trabalho, das mudanças na empresa, no novo chefe, na falta de dinheiro, mas principalmente nela, ou melhor neles.

Assim que sobra espaço na calçada, pode-se ver um senhor pra lá dos 60 anos, tocando ora sax ora pistão, alegrando um pouco a vida dos pedestres. Aquela figura já conhecida que normalmente arranca um pensamento feliz e alguns trocados do nosso homem, hoje não ganha nem o tradicional sorriso.

Será que sou mesmo egoísta? Só penso em mim, nos meus sentimentos e necessidades? Não vejo o quanto ela sofre também? Não! Não! Eu sempre vejo, percebo isso, sei que ela está sofrendo também, mas o que mais eu posso fazer? Estou esperando ela, sou fiel, tento fazer tudo para que ela possa ser feliz. É verdade também que as vezes perco o controle, cobro muito que ela tenha mais tempo, digo coisas que não deveria, jogo na cara dela que ela mudou a minha vida, tento insinuar que ela é culpada pela minha infelicidade, mas no fundo não quero que ela acredite nisso, ela pode querer ir embora para me ver menos triste, ela já tentou isso tantas vezes! Será que é para me ver feliz? As vezes acho que não, penso que pode ser apenas uma desculpa dela para me deixar e não assumir que não me ama mais, que eu fui um engano na vida dela. Será? Será?

Aos poucos o frio vai aumentando, o guarda chuva que vinha firmemente seguro nas mãos agora vem sendo usado como uma bengala Nesse momento está passando pela ponte dos Açores, não vendo a linda imagem do monumento do açorianos, emoldurado pelo lindo laranja do céu, efeito de mais um dos belíssimos por do sol entre nuvens ralas no Guaíba, sua cabeça continua girando, moendo e remoendo, fatos isolados, tentando formar uma lógica naquilo tudo, tentando achar a verdade por traz de tantas duvidas e desconfianças. Continua caminhando a passos lerdos, como um trem ao partir da estação, devagar, moroso, derrapante, vacilante. Neste passo percorre ainda um grande espaço, atravessa ruas, para em sinaleiras, sem nada perceber ao seu redor, continua imerso em seus pensamentos, o céu perdeu o laranja, a lua já surgiu, as estrelas brilham e ele não percebe.
Ate que uma cena lhe chama a atenção. Está caminhando ao lado da pista de corrida do parque, quase em frente ao Hotel de luxo que foi erguido para aproveitar a linda vista do rio. A sua frente um homem corre em sua direção, e uma senhora está levemente escorada em um poste a direita da calçada por onde caminha. Não sabe porque, mas aquela cena lhe dá a sensação de perigo, não para, nem diminui o passo, segue firme, porém prestando mais atenção ao homem que aparentemente pratica sua corrida habitual, com sua bermuda e camisa de mangas curtas apesar do frio. Nesse momento está quase cruzando pelo homem, segura firme o guarda chuva e presta toda a atenção aos movimentos do homem que passa e segue a sua corrida, parece que sem ao menos notar-lhe a presença. Ouve uma voz que diz:

- Vai uma chupadinha moço?

Por uma fração de segundo não entende o que está acontecendo. Quem falou? O que foi mesmo que ela disse? Chupadinha? Mas logo ele se recupera e tudo faz sentido. A senhora encostada no poste é uma prostituta, que faz ponto em frente ao hotel de luxo, foi ela que falou oferecendo um de seus serviços. Brota-lhe um sorriso nos lábios, misto de surpresa e admiração, passa sem ao menos virar-se para negar o convite da "moça".

Continua seu caminho, quase uma linha reta até sua casa, porém a viagem ao seu interior e as suas dúvidas é um labirinto sem saída. Inconscientemente aperta o passo ao passar por uma região mais escura, onde as árvores são mais densas e a presença de um viaduto diminui consideravelmente a iluminação pública. Olhando em frente percebe a torre do castelo, com seu relógio de concreto com ponteiros imóveis. Pensa: "Quando os ponteiros deste relógio marcarem meia-noite, o feitiço que aprisiona a minha princesa ao seu castelo será desfeito, e ela finalmente poderá ser resgatada por uma cavaleiro destemido, em uma armadura negra como a noite, e brilhante como as estrelas".

Ao mesmo tempo uma música lhe vem a cabeça, e ele automaticamente cantarola "Vem, vamos embora, que Esperar não é saber, quem sabe faz a Hora, não Espera acontecer. Vem, ..." Percebe neste momento toda a antítese de sua situação. Espera que um relógio de concreto se mova, enquanto acredita que "quem sabe faz a hora não espera acontecer".

Já está caminhando sobre o canteiro central da avenida, que se alarga gradualmente, formando um belo gramado, se bem que cheio de buracos. Prestando mais atenção ao terreno, em virtude dos buracos e dos desníveis, acaba percebendo uma lata de cerveja jogada no chão, abaixa-se recolhe a lata e procura um lixo. Não encontrando um lixo, Se arrepende de ter pensado mal de quem jogou a lata no chão, mas resolve carregar a lata até em casa, alguns passos adiante encontra uma garrafa plástica, recolhe-a também, mais alguns passos, e é um saco de salgadinho, mais adiante um garrafa "long neck", uma sacola de supermercado rasgada, outra lata de cerveja... Quando percebe não tem mais como se agachar para recolher o lixo, está carregado. Procura novamente por um lixo e não encontra, percebe toda a sua insignificância e Impotência diante dos grandes problemas, ou mesmo dos seus problemas particulares.

Gira a chave na fechadura superior da grade; repete na fechadura inferior; abre a grade; demora um instante para encontrar no escuro o buraco da fechadura da porta; gira a chave a também a maçaneta; abre a porta e entra; encosta o guarda-chuva no canto da porta; acende a luz do corredor; esvazia os bolsos: carteira, chaves, celular e crachá; larga tudo empilhado na prateleira da estante; joga o sobretudo no sofá; entra no quarto; tira os sapatos; pega a toalha; joga o blusão na cama; as calças também; sai do quarto; cruza o corredor; entra no banheiro e acende a luz; joga a toalha por sobre o Box, abre as torneiras do chuveiro; tira o resto da roupa; mede a temperatura da água com as mãos; regula a temperatura; mede novamente e entra no banho.

Aos poucos a água morna batendo-lhe nos ombros, costas, nuca e escorrendo-lhe ao longo do corpo proporciona-lhe a agradável sensação de relaxamento, sua cabeça continua perdida no labirinto de suas dúvidas emoções e certezas, correndo de um lado para o outro, esbarrando nos muros das negativas ou temendo a escuridão da falta de confiança. Não contém mais o choro quase convulsivo, aproveitando-se que o som é abafado pelo ruído do chuveiro, as lagrimas misturam-se a água quente, espalhando-se pelo corpo todo. Permanece muito tempo assim chorando parado em pé debaixo do chuveiro.

Fecha a torneira de água quente, recebendo um jato revigorante de água gelada, fecha esta também, já havia fechado a torneira das lágrimas a mais tempo, enxuga-se, veste o pijama, deita-se na cama. Lembra de um livro que leu: todos os nomes "José Saramago". Pensa em conversar com o Teto como fazia o protagonista do livro, mas percebe a tempo que o teto não responderá, e que se o fizer, ele pode procurar uma clinica psiquiátrica. Nota que sua torneira de lagrimas está com defeito, há um vazamento que não consegue conter, enquanto as lagrimas formam seu curso percorrendo sua face até o estuário do travesseiro, adormece, para mais uma noite agitada por sonhos e pesadelos, mais estes do que aqueles.

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