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Contos-->Tempo de Escola -- 18/10/2003 - 18:17 (Dulce Baptista) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tempo de Escola

O professor Benigno lecionava inglês. O aspecto era inconfundível: fios de cabelo penteados de uma orelha a outra disfarçavam a calvície - pelo menos a intenção era essa - e despertavam o espírito de zombaria nos alunos. Terno folgado para seu tamanho, fazia um gesto característico, sempre imitado, que era o de esticar impetuosamente o braço esquerdo para a frente com o objetivo de enxergar o relógio no pulso. Sempre bem humorado e conversador, preferia, no entanto, narrar as peripécias dos netos a dar aulas de verdade. A seqüência de atividades que incluíam planejamento, explicações exaustivas para uma turma de adolescentes endiabrados, e mais ainda, a correção meticulosa de provas e trabalhos, era algo que já o cansara de todo.

Estava na verdade contando tempo para aposentar-se, e enquanto isso, a cada aula uma nova traquinagem era narrada com riqueza de detalhes. Para tanto, fechava cuidadosamente a porta que dava para o corredor, certificando-se antes que o supervisor não se encontrava nas proximidades. Os alunos, de sua parte, achavam ótimo: enquanto os da frente fingiam ouvir o mestre com grande atenção, os de trás trocavam piadas e brincadeiras. Era como se fosse a extensão da hora do recreio. Vez por outra, a coisa ficava fora de controle, como quando os cinco da última fila combinaram tirar os sapatos e jogá-los no chão ao mesmo tempo, e com tal ímpeto, que a sala parecia estar sendo dinamitada. De outra feita, dois ou três resolveram fumar, o que acabou por incomodar o mestre. De um modo geral, no entanto, a hora transcorria sem maiores sobressaltos até que o tempo esgotava, o professor se retirava, cedendo lugar ao titular de outra disciplina e era só então que a turma se aquietava. Pois estava claro que qualquer professor era mais exigente que o Benigno, fosse da matéria que fosse.

Um belo dia porém, as inevitáveis provas. Estava no calendário escolar, não havia como fugir. O Benigno convocou Ricardo, um dos que ficavam na última fila, para distribuí-las entre os colegas. Ninguém se lembrara que era aquele o dia decisivo. Será que alguém saberia responder ao menos uma questão? Alguém havia pegado no livro? Bem, sempre tem alguém, há os que estudam apesar de tudo e todos. Esse era o caso de Aninha, aluna aplicada em todas as matérias, e porque não dizer, no inglês também. Nem por isso era considerada chata pelos colegas; se era CDF, problema dela. No mais, era legal e parecia se divertir como todo mundo. A franja quase cobrindo os olhos, e o aparelho nos dentes, davam-lhe até certo ar de menina levada.

O professor chamou-a num canto e antes que ela esboçasse qualquer reação, nomeou-a assistente-mór da disciplina, incumbindo-a da correção das provas. Não adiantaram os protestos, ele acabou por convencê-la de que a estava prestigiando com a tarefa. O que diriam os colegas? Não havia problema, o Benigno argumentava que a palavra final, a nota, seria de responsabilidade dele, mesmo que ela fizesse as correções e contagem de pontos e décimos que fossem necessários. Terminado o diálogo, e distribuídas as questões, fez-se silêncio na sala. "What is your name?", "How are you?", "Where is the book?" e outras tantas perguntas do mesmo teor passaram a monopolizar os estudantes. Olhares furtivos para mesas vizinhas, e sussurros, faziam parte do processo de procurar respostas não aprendidas de antemão. Aos poucos, os que terminavam iam se retirando da sala. Alguém contudo parecia ter ouvido algo da conversa entre professor e aluna...

Uma hora depois, Aninha se viu a braços com volumosa pasta contendo quarenta provas a serem corrigidas por ela. Não sabia o que pensar: Sentir-se honrada com a incumbência? Recear tanta responsabilidade? Não sabia o que a esperava quando abrisse a tal pasta.

Ao chegar em casa, já de tardinha, mal falou com a mãe - que felizmente estava ocupada ao telefone - entrando incontinenti no quarto, o pesado volume queimando-lhe as mãos, oculto sob um casaco de frio, a ansiedade prendendo-lhe a respiração. Se o pai visse essa forma de entrar em casa, com certeza a interpelaria. Mas, felizmente também, ele ainda não voltara do trabalho. Na verdade, pensou, não havia o que esconder já que não fizera nada de errado. Aquele momento, no entanto, o de abrir a pasta e conferir o que nela existia, parecia-lhe só seu, reservado, algum mistério havia ali dentro que só a ela cabia desvendar. Mesmo que contasse tudo depois aos pais, era ela quem veria as provas primeiro.

E assim foi. Trancando a porta, depositou o volume no chão, desvencilhando-se de seus próprios livros e cadernos. Descalça, sentou-se, sempre preferia o chão à cama quando se tratava de espalhar papéis. Soltando os elásticos laterais, abriu a pasta e se deparou com a pilha de provas. Verificava nomes e cabeçalhos. Nada de extraordinário, no princípio. Entretanto, após as duas ou três folhas iniciais foi constatando um número cada vez maior de questões não respondidas. Para completar, havia bilhetes que, em letra vermelha, diziam: "Preciso de sete para passar!"; "Preciso de nove!"; "Querida, eu te amo!"; "Se não passar minha mãe me mata"; "...Meu pai me esfola", etc, etc. Uma a uma, Aninha leu todas, incrédula. Pelas respostas, somente dois alunos tirariam sete. O resto da turma seria de três para baixo, se o critério de correção fosse o usual, o da contagem de pontos. Ela, Aninha, não conhecia outro.

Leu e releu, uma a uma. Vez por outra achava graça numa daquelas mensagens desesperadas. E sentia-se inevitavelmente superior por ser capaz de acertar tudo. Por outro lado, foi se tornando nítida em sua cabeça a encrenca em que estava metida: se não corrigisse as provas, ficaria mal com o professor; afinal, acabara dando sua palavra, pois havia um prazo regulamentar a ser cumprido, e o Benigno atribuíra-lhe tal tarefa não só em função de sua competência, como também porque ele tinha um compromisso médico urgente - ela não sabia qual - que o impediria de dar conta do serviço. Foi esse, enfim, o argumento que a convenceu. Pensava agora nos colegas; é claro que eles todos lhe declarariam guerra tão logo saíssem os resultados.

Sua mãe bateu na porta, mas não, ela não queria compartilhar nada por enquanto. Limitou-se a responder "oi mãe, já vou", e arrebanhando a papelada, colocou-a na pasta, escondendo-a em seguida na gaveta do armário.

Jantar, lavagem de pratos, jornal, televisão, a rotina familiar entreteve pais e filha por um bom tempo. Aos quatorze anos, Aninha era tida e havida como pessoa responsável, estudante nota dez. Foi cedo para o quarto, parecendo preocupada com a próxima prova.

Luz apagada, deitou-se pensativa. Gostava da maioria dos colegas. A Priscila, pretinha e sempre falante; Mônica, magricela e namoradeira; Camila, cada dia com novo penteado; o Ricardo, grande contador de vantagem; o Maurinho, se pudesse, punha fogo nos livros, tal a aversão aos estudos; o Lucas, lindão; o Toni, super míope... Uma outra figura se insinua em seus pensamentos. Veste terno de linho, largo e amarrotado, cor tendente ao cinza. Das ombreiras saem mangas tão compridas que cobrem as falanges. Passa a mão direita sobre a cabeça, conferindo os ralos fios, cuidadosamente dispostos. Arremessa o braço esquerdo para a frente e verifica a hora: hora de ir embora, adeus.

Pula da cama, acende a luz, meia hora mais diante daquelas provas. Respira fundo, pensa em fisionomias angustiadas e mãos postas em súplica. Pensa ainda nos gritos que ouviria, no mínimo seria chamada de traidora. Alguém ouvira tudo, não conseguia entender como. Pensou na alternativa de falar logo com sua mãe, ela lhe diria o que fazer. O problema no entanto, é que queria resolver o assunto por conta própria, sempre fora auto-suficiente, gostava de apresentar fatos consumados. Além do mais, a mãe tinha um monte de preocupações com que se ocupar. Uma delas, bem que ela sabia, por mais que pai e mãe tentassem não falar muito no assunto, era com o aluguel, cada vez mais difícil de pagar. Mesmo ela costurando muito, e ele vendendo todos os eletrodomésticos da loja em que trabalhava, a coisa andava difícil. Ainda bem que pelo menos a escola era pública...

Uns três dias se passaram. As provas lá no fundo da gaveta e Aninha sem encontrar uma solução... Só tinha certeza de que teria que encontrar alguma, fosse qual fosse, antes que a semana terminasse. Enquanto isso, tentava não demonstrar qualquer preocupação diante dos colegas. Ao chegar em casa, ia invariavelmente para o quarto, lembrando-se de cada um deles. Nos últimos dias, o pessoal parecia mais compenetrado, talvez pela perspectiva da prova de matemática. Aninha mal conseguia estudar; a sorte é que sempre prestava atenção nas aulas.

Quinta-feira, noite alta, casa quieta, a família já se recolheu há muito. De repente, tal e qual raio que risca o céu causando susto e medo, uma fisionomia invade a mente da menina, a da única pessoa em quem se recusara a pensar. Já era madrugada quando finalmente adormeceu.

Embora suas aulas fossem na parte da tarde, Aninha seguiu para a escola de manhã a pretexto de ter que estudar para a prova. Distava uns três quarteirões de sua casa, de modo que ia a pé, mochila nas costas, pasta segura nos braços, o passo rápido para não perder tempo. Para a mãe, avisou que almoçaria na cantina do colégio.

A supervisão ficava no fundo do corredor. Estivera lá, uma ou duas vezes. Era uma sala espaçosa e branca, com uma grande listra verde pintada no meio da parede, por toda a volta. A menina lembrava de uma mesa de madeira clara cheia de papéis e da fisionomia da supervisora, muito séria ao recomendar que os alunos não perdessem aula. Ela havia sido informada de que alguns alunos andavam faltando às aulas de português e dizia que uma coisa dessas era grave, podendo custar a reprovação ou a falta de vagas no ano seguinte. É claro que Aninha nada tinha a ver com esse assunto, porém ali estivera na qualidade de colega dos faltosos, membro de um grupo. Da outra vez, se não lhe falhava a memória, o assunto tinha sido as aulas de música. Quem preferia banda? Quem queria coral? Mas tudo isso já fazia tempo. A pessoa era outra agora, e o assunto em questão muito mais sério. Pelo menos para ela...

Entrou na saleta de espera, verificando que não havia conhecidos por perto. Naquele horário poucas turmas tinham aula. Esperou um bocado, entre resignada e ansiosa. A secretária informou que o professor Paulo estava atendendo um telefonema importante, por isso a demora. Além do mais, ela não havia marcado hora e a agenda do supervisor era carregada. “Preciso falar com ele, é urgente”, dizia a menina. “Tente ver uma brecha, por favor, de tarde tenho aula...” A insistência foi tanta que a moça teve pena.

Finalmente, constatando que a conversa telefônica terminara, e antes que o supervisor iniciasse outra, a secretária indagou se ele poderia atender aquela aluna que viera ao colégio de manhã somente para falar com ele. A estudante entrou na sala, onde o professor a aguardava curioso. “ Então Aninha, tudo bem... Nossa, pra quê tanta coisa?...”

A menina colocou a mochila na cadeira desocupada e ato contínuo abriu a pasta na mesa do supervisor. Pausadamente foi mostrando as provas dos colegas, argumentando que, de um lado, não lhe competia corrigí-las e de outro, não se sentia bem ao não fazê-lo, já que o professor Benigno era ótima pessoa e confiara nela. Ao pensar no que fazer, sem trair a consciência e nem as pessoas, “achei que a única solução seria pedir sua orientação”, dizia ela, encarando o supervisor. “Mas talvez eu esteja traindo o professor, já fico triste...”

O supervisor ouviu tudo atentamente, detendo-se por vezes numa ou noutra prova. Era um homem de fala calma, parecia jovem ainda por trás dos óculos redondos, os cabelos cacheados davam-lhe certo ar de cientista maluco, na percepção de Aninha. “Você fez bem em me procurar. O professor Benigno deve estar um pouco cansado, mas não se preocupe; está tudo resolvido”. “Como?”, perguntou a menina, ansiosa. Receava alguma situação nova que ainda piorasse tudo. “Só lhe digo que não se preocupe; você já fez muito pelos seus colegas e pelo professor... amanhã, no horário de inglês irei à sua sala dar uma explicação e tudo ficará bem. Fique tranqüila”.

Não foi por maldade que o supervisor deixou Aninha sem uma resposta mais clara. É que ele mesmo estava ainda tomando uma decisão. De momento, no entanto, o que ficava acertado seria sua visita à sala de aula no dia seguinte. “Confie em mim”, disse ele, “vai dar tudo certo.” Pela primeira vez em dias, Aninha sentiu-se leve, o espírito aliviado, apesar do mistério. Sentiu fome de repente; as aulas da tarde daí a pouco começariam. Agradeceu a atenção do professor Paulo, deixando-lhe em mãos o pesado fardo que andara carregando, para sair corredor afora, mochila sempre nas costas e quase aos pulos rumo à cantina. Sequer lembrava da existência de alguma listra verde nas paredes da supervisão.

O dia foi movimentado, com a aula de ciências, depois os exercícios tira-dúvidas da matemática. No intervalo, alguém lembrou que no dia seguinte teriam aula de inglês. Será que o Benigno corrigiu as provas? A indagação por parte dos alunos era acompanhada de olhares maliciosos em direção a Aninha. A garota fazia-se de desentendida como se nada daquilo fosse com ela, embora desse tudo para saber quem ouvira uma certa conversa... Só por curiosidade, pois ainda que ninguém soubesse de nada, sua atitude teria sido a mesma. Agora tinha certeza disso.

Pela primeira vez em uma semana, Aninha conseguiu dormir direito. Embora estivesse bastante curiosa quanto à solução encontrada pelo supervisor, era uma curiosidade tranqüila, mesclada ao sentimento otimista de que tudo acabaria bem.

* * *

A turma entra agitada na classe; terminou o recreio. Para surpresa geral, quem entra na sala não é o professor Benigno, mas o supervisor. Nem precisa pedir silêncio, pois a atenção é imediata, há sempre a expectativa de alguma novidade quando o supervisor aparece. Ele aguarda um minuto, o suficiente para que a secretária lhe traga a folha de chamada. Confere um por um dos presentes e lhes informa que tem uma comunicação importante a fazer: o professor Benigno estaria dali por diante impossibilitado de dar aulas devido a um problema de saúde que, embora sem gravidade, lhe exigia licença médica. Assim sendo, haveria exercícios em sala de aula a serem passados por ele, o supervisor em pessoa, e valendo nota. Afável, e ao mesmo tempo enérgico, foi logo dividindo a turma em grupos de cinco alunos, incumbindo-os de responderem as perguntas contidas no livro. Na segunda metade da aula, todos teriam oportunidade de mostrar suas respostas em voz alta e de resolverem as dúvidas com ele. Entrementes, ele circularia pela sala e ajudaria quem pedisse.

Curiosamente, nem Aninha nem seus colegas perguntaram pelas provas. Amnésia geral. O professor Paulo, bem sério, tentava não rir da história toda. E pensava, talvez, em como dar uma solução definitiva para as aulas de inglês. Que, afinal, sempre foram o ponto fraco da escola...

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