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Contos-->São José dos Cocos -- 18/10/2003 - 18:26 (Dulce Baptista) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
São José dos Cocos
Dulce Baptista

A história era transmitida de uma geração a outra, vez em quando avós se pegavam comentando o episódio com os netos, pais com filhos, tios com sobrinhos, comadres, vizinhança, sempre de forma casual, a coisa ocorria de repente, naturalmente, a propósito de tudo e nada, e nem tomava proporções de boato, de tal forma já se achava incorporada ao folclore do pequeno município mineiro de São José. Era perfeitamente natural que, cedo ou tarde, os atuais habitantes tomassem conhecimento do fato de que um dia chovera cocos, muitos cocos, nos telhados e cabeças de todo mundo. Torrencialmente.

É verdade que isso fazia anos e anos, ninguém sabia precisar direito se fora antes ou depois da Proclamação da República. Alguns se referiam aos anos quarenta, já depois da Segunda Guerra. Mas essas imprecisões eram irrelevantes diante do susto e do transtorno vividos pela população de umas três mil almas à época, em meio à súbita avalanche daquelas frutas graúdas, redondas e duras como pedra, caindo ininterruptamente durante uma hora, destelhando casas, quebrando postes, pondo o povo pra correr em busca de abrigo, até que, ao parar de uma vez, deixasse o lugar intransitável, as bolotas obstruindo caminhos, ruelas e pastos.

Durante um bom tempo estabeleceu-se tácito silêncio em São José, na medida em que não havendo explicação possível para o fato, as pessoas preferissem guardar o acontecido para si, com medo talvez de algum castigo extraterreno para os pecados que viviam confessando ao padre. Foi só com o tempo que a coisa se transformou em estranha lembrança a ser cultivada e transmitida como herança aos moradores do lugar. De tal forma que um dia, já nos anos cinqüenta, o vereador Edmilson Praxedes, notório pelas iniciativas excêntricas, propôs que se mudasse o nome do município para São José dos Cocos.

Segundo a lenda, o nome original de São José se devia ao grande número de carpinteiros existente na cidade. Homens simples e trabalhadores, cujas habilidades com plaina e serrote haviam se transformado no orgulho da população, principalmente quando móveis e peças de madeira passaram a ser encomendados até do exterior. O fato extraordinário, entretanto, embora ocorrido em época indeterminada e sem qualquer registro na imprensa, justificava, no entender de Edmilson Praxedes, que se acrescentasse a especificação “dos cocos” ao nome da cidade. Pois, que além de terra de carpinteiros, aquela era uma terra onde, em algum momento desta era cristã, chovera cocos. Nada menos que cocos, com todo seu peso e quantidade, embora dos mesmos não tivesse restado vestígio, sequer um pedacinho de cocada conservado em museu.

Para desapontamento do vereador, no entanto, a proposta não foi bem recebida pelo povo. Alegando falta de respeito para com o santo carpinteiro, para com os carpinteiros não santos, e para com a comunidade Joseense em geral, o povo saiu em passeata repudiando a idéia. Edmilson propôs um plebiscito, foi à rádio local – a televisão ainda não havia chegado lá – mas com medo de perder eleitores, jogou a toalha. A verdade no entanto, é que justamente essa proposta acabou servindo para que as pessoas não mais se esquecessem que um dia – sabe-se lá qual – haviam caído cocos na cidade.

E era essa a história que durante anos os habitantes de São José foram incorporando à sua prosa do dia-a-dia, um fato entre tantos outros, tais como as histórias de disco voador que vez por outra assombravam os cidadãos, cobras cascavel que se enroscavam nas cercas das fazendas à espreita de novilhos recém-paridos, almas penadas, infestação de piranhas no rio que banhava a cidade, o Timbó. Sempre havia quem duvidasse de tudo, claro, aquilo mais parecia conversa fiada para tardes de calor em porta de barbearia...

Até que um dia, convocada pela maior cadeia de televisão do país, a vidente Clarisse, famosa em São José e adjacências, previu, ao vivo e a cores, um futuro terrível para a cidade. Antevia o rio Timbó completamente poluído – nem as piranhas resistiriam -, a superpopulação – já umas trinta mil almas nos anos noventa – padecendo com o desemprego, mato crescendo em pastos abandonados, dinheiro escasso, pragas, assassinatos... A causa, dizia ela, era uma só: a recusa do povo em reconhecer os fatos sobrenaturais como bençãos de Deus, verdadeiros prêmios que já poderiam ter transformado São José em atrativo para grandes investimentos em hotelaria, e portanto, em pólo turístico de primeira grandeza.

Por essa época, alguns dos carpinteiros mais conhecidos haviam ido embora, em busca de melhores condições de vida nos grandes centros. Fazendeiros arruinados haviam vendido terras que foram ficando abandonadas; uma fábrica de papel despejava grandes quantidades de poluentes no rio... E tudo isso eram apenas prenúncios do que estaria por vir. Mas Clarisse insistia que se o povo quisesse, poderia reverter todo esse processo, começando pela criação de um calendário de eventos da mais alta significação: o dia do disco voador, o das almas penadas, o dos cocos...tudo com total transparência e lisura na aplicação dos recursos públicos. A cidade voltaria com toda certeza a ser o oásis de felicidade que já fora um dia.

Clarisse era enfática diante das câmeras. O povo brasileiro – particularmente o de São José – a escutava com grande atenção. E foi assim que, movida pelo impacto de suas palavras, a comunidade Joseense finalmente se mobilizou para que o calendário fosse proposto às autoridades, e brevemente posto em prática. O primeiro evento seria – ora vejam só – a mudança definitiva do nome da cidade para São José dos Cocos. O segundo evento seria a inauguração de uma rua com o nome do falecido vereador Edmilson Praxedes, que tanto se batera para rebatizar o município, sem contudo obter respaldo popular. Já o terceiro evento consistiria numa grande feira mística em homenagem às almas que visitavam becos e ruelas na calada da noite. Seria lançada também uma campanha voltada à despoluição do Timbó, a começar com o indiciamento dos diretores da fábrica. Propôs-se ainda a construção de um hotel de vinte andares...

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