Eu não existo. Além do que tudo aqui é ficção. Eu quase morri de rir quando vi a cara do delegado federal ao saber que abortaram a operação. Eram ordens de Brasília, e não valia a pena desobedecer ordens diretas do ministro. Pelo jeito das coisas aquele carnaval seria muito louco.
Meu nome é Victor, mas isso não interessa pois como eu não existo, tanto se lá fez, uma vez três, três. Eu tinha o costume de ficar perambulando ali pela Praça Machado de Melo o dia todo, de manhã, à tarde, à noite e de madrugada. Eu aproveitava a pinga que os caras jogavam pro santo e santo mesmo não toma cachaça, mas um sujeito vil como fui eu em vida, e que vivo penando agora depois de morto, alimento meu vício das crendices do povo.
Gosto das cores do delírio. Tudo se move do azul ao vermelho. Solomon disse-me que eu sou “O Poeta Metálico”. A miséria não é fantasia, daqui não vejo o mar, mas sei que as ondas desmancham-se em espuma branca na areia e nas pedras, uma após outra. Sonhei outro dia com Virgínia Woolf e foi ela quem me garantiu que é assim. Não digam nada a ninguém, mas eu fugi mais de uma vez do hospício.
Quando eu era menino, às vezes eu fui feliz. Num Natal eu ganhei um bicicleta Caloi. Era do tamanho menor que havia e azul como o céu do verão. Foi nessa época que eu aprendi que além do horizonte há outro horizonte. Descia a Rua Azarias Leite e parava na esquina da avenida. Ali eu ficava espiando os ônibus passarem. Olhava para o início da avenida e tentava adivinhar o destino do ônibus que surgia e vinha na minha direção. Sabia de cor todas as linhas:
1) Rua Araújo Leite/ Rua XV - Duque de Caxias;
2) Vila Falcão;
3) Bela Vista;
4) Vila Cardia – Monlevade;
5) Vila Giunta;
6) Vila Independência;
7) Vista Alegre;
8) Vila Popular:
9) Altos da Cidade.
Eu ficava ali, sentado na sarjeta, olhando para cima e
para baixo, durante várias horas, dizendo: “ aquele é o Vista Alegre, agora o Rua Araújo, etc...”, passava assim muito tempo. Eu adorava o cheiro da fumaça do óleo Díesel. Queria ser motorista de ônibus. Eu pedi para minha tia que me ensinasse a ler para ter certeza que tinha adivinhado o destino dos ônibus. As manhãs eram doces, as tardes amargas e as noites intermináveis.
A estação de trens era a maior do interior. Maior do que ela, somente a Estação da Luz, em São Paulo. Eu tinha muito orgulho disso, ainda mais que, dizem, um tio meu, que era chefe da estação, impediu com suas bandeiras que dois trens se chocassem bem ali.
Há muita coisa na minha infância que mesmo depois de morto eu não consigo esquecer. Desde pequeno eu acompanhava o futebol pelo rádio. Então montava meus times de botão, tudo em celulóide de relógio. Formava aqueles ataques impossíveis de serem parados: Joel, Gerson, Índio, Dida e Babá; Maurinho, Zizinho, Gino, Dino e Canhoteiro; Garrincha, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo. As defesas dos meus times não eram tão importantes e eu escalava somente os craques mesmo que não fossem daquele time na realidade: Gilmar, De Sordi, Mauro, Orlando e Rildo; Cabeção, Jair Marinho, Pinheiro, Oreco e Edson; Valdir, Djalma Santos, Djalma Dias, Dias e Nilton Santos. Não tinha para ninguém. Havia, é lógico, o ataque nunca igualado: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe.
(continua)