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Contos-->À Sombra doJatobá - XXIV - A visita de Chico -- 25/10/2003 - 19:29 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá XXIV – A visita de Chico

Parado junto à cela de Teobaldo, Chico prende as vigorosas mãos nos varões frios da grade e, com os olhos estagnados de dor, o peito opresso pela revolta, fita, calado, o irmão; o ambiente pesado da prisão lhe é insuportável. Veio-lhe, subitamente na lembrança todo o horror que sentira, toda a sufocação que o assaltara, quando, ainda menino, presenciara a morte de um pássaro, um lindo e possante sabiá, que atingido na cabeça por uma das pedras da sua baladeira – pedras atiradas quase a esmo, como quem se diverte sem a intenção de matar – veio cair-lhe nas mãos. Por instantes, estrebuchando, abrindo e fechando o bico, lutava pela vida; depois, a paralisia total! Nem mais um arfar! Nem mais um vibrar de asas! E o menino ficou ali, pasmado, com tanta beleza sem vida nas conchas das suas mãos! A morte assim, captada de imediato, deu-lhe tremenda gastura, como que a constatação de um poder brutal e desconhecido, houvesse açambarcado a exuberância que ainda há pouco se expandia em canto e cor!

Teobaldo se aproximou do irmão e colocou, sobre as dele, as suas mãos rudes. Os olhos negros de Chico buscaram os seus pequenos e desconfiados olhos:

- Não se aborreça comigo, Chico! – eu fiz o que devia.

- Por que você não me deixou acabar com ele? Não vê que sou sozinho, que ninguém precisa de mim? Não vê que ele... Que eles já haviam desgraçado a minha vida, desde o dia em que me levaram a Ana? Teobaldo – Chico falava apressadamente, num transbordar de penas e recriminações, ao mesmo tempo – por que não confiou em mim? Por que não me contou o que o desgraçado tinha feito com Ana? Esta miséria de vida não me serve, mesmo, pra nada! Eu queria ficar ai, no seu lugar.

A cabeça de Chico pendeu para o peito, enquanto que soluços sacudiam o seu corpo.

Profundamente penalizado com o sofrimento e a revolta do rapaz, Teobaldo segurou-o pelos ombros e o sacudiu com delicadeza:

- Chico... Chico... Eu sou mesmo um estúpido! Não percebi que você estava apaixonado pela minha filha! – depois, sorrindo – teria sido tão bom... Mas para mim, vocês dois são meus filhos, e crianças, ainda! – depois, tornou a sacudi-lo. Chico, nesta vingança eu deixei Tonino e Filó ao abandono; preciso que você olhe por eles.

Chico parou de soluçar e fixou Teobaldo. Seus olhos agora luziam e um pequeno brilho mau iluminava suas pupilas. Entre dentes ele desabafou:

- Eu odeio a Filó! – ante o espanto de Teobaldo ele argumentou – Foi ela que arranjou esta encrenca toda! Eu vigiava a Ana. Esperava que um dia, quando ela deixasse de ser tão criança, tão avoada, quando assentasse juízo de mulher, viesse a gostar de mim...de outro modo... Eu não tinha pressa, mas a Filó encasquetou de mandá-la para a cidade e, olha Teobaldo, foi difícil para mim, mas eu falei com ela. Eu lhe pedi que não deixasse a Ana ir embora. Ela não me ouviu; ficou brava, como se eu a estivesse espezinhando! – Lançando os olhos pelo cubículo onde o irmão de criação ficaria fanando, enjaulado não se sabe por quanto tempo, ele acrescentou – Não consigo mais olhar para a cara dela!

- Chico... Chico...- exclamou Teobaldo amedrontado – Você vai me abandonar agora?

---x---

Ê, boi...ê...ê...ê...boi...

A voz do boiadeiro se perde na vastidão dos cerrados e das caatingas, acompanhada pelo som forte e tristonho dos berrantes. O gibão de couro proteje o seu corpo do emaranhado da vegetação, assim como o chapéu, também de couro, colocado sobre a testa, evita que seus olhos sejam atingidos pelas pontas dos galhos eriçados. O boi faz seu caminho em túneis entre a mata de aroeiras, juremas, faveleiros e mameleiros – estes últimos quebram-se facilmente com a passagem do gado desembestado, ficando para trás farpas e lascas agressivas esperando, entre garranchos e espinhos, a passagem do boiadeiro e sua montaria, o que os obriga a cobrirem-se de couro cru: encourados.

A solidão lhe faz companhia e, para afugentá-la, o boiadeiro abre o peito em aboios repetidos, de grande lamento e de grande beleza. A voz se solta, livre, em toda a sua potência e vai sendo modulada na garganta, em volteios e repetições. Também nesta capacidade de expansão, há o inesperado, na figura atarracada e selvagem dos vaqueiros nordestinos: o vigor para a luta, a sanha para vencer toda e qualquer dificuldade, brota nos lábios como um grito de guerra, que já vem vitorioso de suas entranhas, vencendo o silêncio, o cansaço, as distâncias, as tristezas e os desânimos.

Neste monólogo sonoro, ele junta palavras espontâneas, que falam de seus sentimentos. Chico tange o gado para o lado do açude e seu cantar agora é diferente, pejado de mágoa. Com Teobaldo aprendera a aboiar desde menino e o fazia com grande entusiasmo, descobrindo floreios e requebros nos “dós-de-peito”, que lançava a bel prazer.

---x---

Filó debulhava feijão-verde sentada no copiar da casa. Parou o trabalho e ficou pensativa, escutando o aboio choroso, desabafo amoroso do seu quase filho. De há muito percebera o encantamento de Chico por Ana, e agasalhava, em suas esperanças, um casamento dos dois. Temia que a intimidade de irmãos, como foram criados, afastasse esta possibilidade e via a filha fazer-se moça e bonita, sem perceber os olhares de carinho que Chico lhe lançava. Como ela, Filó, pudera esquecer tudo isto, motivada pela preocupação com a Elvira e pelo entusiasmo de Ana?

Agora tudo terminara. Teobaldo preso, Arnaldo entre a vida e a morte, Elvira aparvalhada e Ana se recusando voltar para casa, se recusando em ver a mãe, o irmão e, com certeza, temendo enfrentar o desprezo do Chico.

Onde os sonhos? Onde a alegria, a paz que há tão pouco tempo desfrutavam? O aboio tristonho fez ninho em sua alma, explodiu em soluços e foi, de quebrada em quebrada, revolvendo seus ais.

Chico ausente, cuidando do gado, da roça, das terras, fugindo do lar. Apenas meias palavras existiam entre eles agora. Monossílabos, com que se entendiam, e Filó percebia a acusação, na maneira esquiva do rapaz. Na opinião dele, toda a culpa da tragédia da família cabia a ela, e essa percepção aumentava o seu sofrimento, o seu remorso. Parecia-lhe que o diabo havia revirado as suas vidas, como se fizesse angu dos seus destinos.

E Tonino choroso, sentindo falta do pai e da irmã.

Os dias surgiam e se findavam, sem trazer alívios ou esperanças. Apenas Sinhá os confortava. Com a velha amiga, Ana conversava e se abria e Filó ficava aguardando, ansiosa, que a rendeira trouxesse notícias e as expusesse com detalhes minuciosos. Chico também dava um jeito de ficar ouvindo, disfarçando a sua curiosidade e a sua emoção, porque as palavras de Sinhá vinham carregadas de tristeza: Ana penava remorso, vergonha e desencanto. Escondida na casa da fazenda, sempre fugindo de se encontrar com Elvira.

Sinhá contara que Delfina a tratava com carinho e respeito e que Miloca fazia-lhe companhia e trazia-lhe pequenos presentes da cidade, roupas, sandálias confortáveis, guloseimas, inclusive mimos para o nenê, mas Ana repudiava tudo que lhe lembrasse o seu estado, não se sujeitando à idéia de que um novo ser se desenvolvia dentro dela. Pelo menos agora ela se prendia à vida, pois tentara se suicidar, quando soube do ato de violência que levara seu pai à prisão: caminhando até o açude, se atirou n’água, mas foi salva por um vaqueiro. Carregada, já sem forças, até a casa da fazenda, voltara a si, do estado de inércia que se impusera, aos trancos de Delfina. Levara tapas secos no rosto, enquanto ouvia a tia dizer:

- Ana, se morrer resolvesse o caso desta família, eu propunha um suicídio coletivo. Juro, eu propunha! Mas é preciso viver, enfrentar a situação, buscar o respeito perdido!

Assustada, a moça desabafara:

- O jornal, tia! O jornal! Pôs a cara de meu pai, chamando-o de monstro e me pôs como culpada do crime! Me chamaram de ...

- Que importa? Que importa os outros, agora? Somente a nós importa, Ana! Somente a nós, quero que entenda isto! – a sacudi-la levemente pelos ombros - a tia falava-lhe com o rosto rente ao seu – Não fuja! Sofra o momento, mas, creia em mim, Ana, tudo há de passar. A nós, importa você e o nenê!

- Eu não o quero!

- Quer sim, é seu filho! Ele é nosso, da nossa família, e nós o queremos. Ana! Creia! Nós o queremos!

Na força moral de Delfina, Ana se apoiava, abrigava-se no seu modo desabrido de afastar a maledicência das cunhãs.

Filó levou para a cozinha a peneira repleta de feijão-verde e foi dar inicio ao almoço. Naquela tarde iria visitar Teobaldo na cadeia e, depois, iria á fazenda Esperança e, com Delfina e padre Jesuíno, seguiriam a novena que faziam para que Arnaldo sobrevivesse, para que o marido não fosse condenado como assassino.
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