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Contos-->O MOTORISTA -- 28/10/2003 - 18:57 (Fernando Antônio Barbosa Zocca) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estávamos em 77 ou 78, não me recordo muito bem, mas era início da primavera e havíamos deitado cedo depois da novela das oito.

A calorama, porém, impedía-me de conciliar o sono e por isso resolví fazer algumas palavras cruzadas no aconchego do colchão de molas macio. A luz tênue e o silêncio da noite propiciavam a percepção dalguns ruídos que vinham de longe. Mas aquele farfalhar da vegetação longínqua poderia ser provocado por gatinhos ou castores, não saberia precisar no momento. Segundo os astrólogos a lua transitava por gêmeos e isso facilitava os exercícios psiquicos. Estava inquieto; minha mulher dormia boquiaberta ronronando igual a um Massey Ferguson desregulado. Pruridos acometiam-me a cada instante, mas enfim, com esforço, concentrei-me.

De repente, não mais que de repente, um enxame de bactérias alvoroçadas componentes daquela nuvem gasosa do fatídico peido-mata-marido, envolveu-me provocando dispnéia. Com as mãos na garganta, procurando desesperado por oxigênio, saltei da cama rumo à porta. Eu tossia desalentado. Cheguei a pensar que a mulher me odiava ou que desejava castigar-me por alguma falta cometida.

Resolví sair. A noite fresca induzia a propulsão pra fora. O firmamento límpido autorizava a visão das estrelinhas lá no céu. Um zambeta que havia saído do boteco próximo passava cambaleante resmungando; talvez ensaiasse uma resposta que não havia dado. Pude reconhece-lo: era o Zé P. Lanka, um sujeito que de tão azarado, saiu vasectomizado do hospital onde fizera uma consulta sobre sua otite estonteante.

Na verdade Zé P. Lanka era um jaburu simplório que vivia a água e laranja na orla distante de Tupinambicas das Linhas. Ele caminhava em direção ao ponto de ônibus. Talvez fosse pra região central da urbe. Voltei pra dentro de casa e vestí-me açodado.

Saí correndo e pude acompanha-lo por mais alguns metros finais até que chegamos juntos ao local onde esperaríamos a jardineira. Quando o abordara, chamando-o pelo nome, mostrou-se acoelhado; olhou-me de cima pra baixo como se perguntasse: "Mas o que é isso?". Ou: "O que é que está acontecendo aí?".

Ele reconheceu-me e tranquilizou-se. Gostava de mim porque achava que eu era corintiano. Ele nascera perto das margens do rio Ibicui lá no Rio Grande do Sul e viera pra São Paulo acompanhando seu pai. O velho acreditava ser essa a região mais propícia pra ajuda-lo na criação dos seus filhos tão bem amados.

Perguntei-lhe como estava indo e ele desalentado, depois dum muxoxo, respondeu que tava numa maré tão ruim que quando ocorriam as brigas dos urubus lá em cima, era ele quem levava as cagadas, ali em baixo.

O ônibus, enfim chegou, parando com o freado espampanante, e soltando aqueles seus gases comprimidos e quentes. Desejei, o sonhar com os anjos, aos que dormitassem àquela hora.

Embarcamos; havia uma dúzia de usuários desesperançados distribuídos aleatoriamente pelo interior do veículo empoeirado. Algumas crianças e adolescentes, quietos observavam, como que sob efeito dos hipnóticos, a paisagem sombreada, que se sucedia pelo movimento.

O motorista estava bêbado. Seu rosto vermelho e seus atos bruscos, ao manejar as trocas das marchas, certificaram que ele não mantivera a sobriedade necessária pra trabalhar naquele turno.

O Zé P. Lanka deu-me a ficha do elemento: tratava-se do Hipólito Fransonso, respeitável 171 que viera da metrópole e se instalara na cidade vivendo da exploração da credulidade alheia. Seu problema era falar demais. Tal fato arreliava os poderosos, pondo-os em polvorosa. Eles, os mandões, aproveitando-se então, dum mal estar causado por uma gastrite corriqueira internaram-no; por meio de uma cirurgia invasiva espoliante projetaram manda-lo pro seu devido lugar. As dores impediram-no de trabalhar por meses e isso fez com que todas suas contas vencessem impagáveis. Como o pai do Hipólito Fransonso fora assassinado, no mesmo ano, perto dum hospital lá em S. Paulo, ele não teve outra alternativa do que a de mudar-se pros cafundós do cu-do-conde.

Mas essa sua função de motorista exigia sensatez, prudência e sobriedade. Ele dirigia com temeridade e soltava palavrões. Imprecava contra as demais pessoas e constrangia os passageiros do ônibus.

Achei que deveria fazer alguma coisa. Na segunda-feira seguinte escrevi uma carta ao gerente da empresa relatando os fatos, identificando o coletivo, e seus horários.

Algumas semanas depois vi o arreliante nas ruas. Fora demitido e entregara-se definitivamente à já-começa. Não sei se fiz mal. Creio que teria sido pior se ficasse quieto. Afinal, meus amigos, minhas amigas e senhoras donas de casa: um motorista embriagado pode causar muito, mas muito mais males do que consegue imaginar essa nossa pobre, enfraquecida e vã filosofia.



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