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Contos-->À Sombra do Jatobá - XXV - Arnaldo -- 30/10/2003 - 01:23 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
`À Sombra do Jatobá –XXV – Arnaldo

No quarto tacanho, mal cabem a cama, a pequena mesa de cabeceira e uma cadeira de pau, pintada de branco.

O peito enfaixado arfa entre gemidos; o rosto branco, exangue, é iluminado por uma réstia de luz que escapa da veneziana fechada. As pálpebras cerradas pesam, sem movimento, sobre os olhos.

Ereta, fria, aos pés da cama, Delfina olha-o. Desanimada, fecha o livro de orações que tem nas mão e fala ao padre, ao seu lado:

- Não adianta não, Jesuíno. Não estou rezando, estou repetindo suas palavras, mas sem convicção, sem Fé. Ao contrário, não consigo sufocar a raiva!

Olhando-a também desanimado, o padre responde num murmúrio:

- Eu também não encontro piedade na minha prece!

- Sabe, Jesuíno, eu não estou pedindo por ele, estou barganhando com Deus a sua vida, em troca da liberdade de Teobaldo! Vamos sair daqui?

- Sim, vamos conversar lá fora.

Antes de se retirar, Delfina se dirige ao cunhado que, ela sabe, está entre a vida e a morte:

- Vou procurar rezar por você, Arnaldo, vou procurar rezar unicamente por você, porque neste momento, penso apenas em Teobaldo. Se você morresse agora, seria o fim de Teobaldo, de Filó e dos meninos. Eu vou, tenho certeza, que vou conseguir rezar por você.

No corredor estreito do pequeno hospital, padre Jesuíno fala livremente:

- Ele me enganou; ele enganou a todos! Eu o vejo perseguindo a Ana, abusando de sua criancice, e sinto-me arrasado, enojado; e culpado, incrivelmente culpado, porque o Chico me procurou e me fez notar o quanto a Ana estava se modificando. Você mesma foi contra a saída dela da fazenda e eu...

- Não se mortifique, Jesuíno. Quem haveria de pensar que logo Arnaldo, o responsável por ela, iria causar toda esta tragédia? Teobaldo não é culpado sozinho, não! Eu também sou criminosa: eu o matei a tapas! Queria vê-lo morto, naquela hora.

Delfina suspirou profundamente:

- Você acha, que se eu fizesse uma promessa, pedindo pela vida de Arnaldo, para libertar Teobaldo, seria uma barganha?

- Barganhar com Deus? E quem somos nós para barganhar com Deus? Ele é dono dos nossos destinos

Delfina ficou horrorizada:

- Não me diga uma coisa dessas! Não me diga que tudo isto já estava escrito! Você me faz descrente!

- Não, não, eu não sou fatalista. Deus me livre! Mas acredito que Ele possa cobrar os nossos atos, independentemente das nossas rezas! Creio, sim, que você pode fazer a sua promessa de sacrifício pela recuperação de Arnaldo.

O padre parou de falar, e sacudiu a cabeça, como num movimento de repulsão aos próprios pensamentos:

- Eu também o condenei. É tão fácil falar em “oferecer a outra face”, quando a ofensa é para os outros, quando não nos atinge. Fico até envergonhado quando lembro as mil vezes que falei no púlpito, procurando despertar a piedade, a fraternidade, e, no entanto, quando a coisa é comigo, deixo-me dominar por esta raiva!

- Credo, Jesuíno!

- É mesmo! O padre que sou vai embora e fica o demônio em seu lugar! Hipócritas! Tanto ele, como eu! Esta revolta me faz entender Teobaldo: ver sua filhinha...

Jesuíno retirou um lenço do bolso profundo da batina e assoou o nariz:

- Eu também o condenei e condeno! Deus tenha piedade de mim! Vamos à igreja. Preciso me penitenciar pelos meus maus pensamentos!

Os dois alcançaram a saída do hospital e caminharam até a igreja. Os olhos de Delfina se prenderam, penalizados, na figura de um rapaz que, de quatro no chão, subia com dificuldade os degraus de pedra; Em cada movimento de suas mãos e joelhos, uma corcova se movia, molemente, em sua espinha, acima da cintura. Era um bolo disforme, como que gelatinoso, que pendia para os lados, seguindo a inclinação do pobre corpo. Não era um ser humano que estava ali. Pela sua posição, o seu rastejar, era um arremedo de um animal. Usava, para o espanto de Delfina, um calção marrom sob um blusão de franciscano e tinha o rosto encoberto pelo capuz de São Francisco.

- Padre! – admirou – ele está “pagando” promessa?

- É, quando foi à Canindé, ele não “caminhava”. Foi levado de maca pelos pais e irmãos. Agora está feliz porque pode se arrastar, dessa maneira. Botou a mortalha do Santo e vem, sempre, agradecer em frente da imagem e acender-lhe uma vela.

Os olhos de Delfina tornaram-se opacos:

- Por que Deus haveria de deixar nascer uma criança tão defeituosa e depois...

- Mostrar-se magnânimo? Quem conhece os Seus designos? Mas, neste milagre está a sua comprovação.

- E é preciso que Ele se mostre cruel, para depois estender-nos a mão? Padre, padre! Quando me ponho a filosofar, eu me perco! Eu tenho que agir, tenho que lutar com as minhas próprias forças. Não sei rezar nem pedir! Quando preciso lançar mão do auxilio espiritual, já estou tão brava que, em vez de reza, sai briga!

- A paciência e a resignação, também são dons a serem alcançados.

- E por isso Ele nos malha?

- Delfina!

- Eu não disse a você? Prefiro lutar contra forças palpáveis. Fico horrorizada cada vez que vou à Canindé: miseráveis, tortos, cegos, tuberculosos, buscando a Graça Divina. Por outro lado, a Capela dos Votos me assusta. Aquela quantidade de muletas penduradas no teto, os milhares de retratos, as pernas, braços e corpos de cera, exibindo chagas que foram curadas. São testemunhas de um bem que eu não entendo! E testemunhas, também, do nosso subdesenvolvimento, do nosso abandono. Perdendo o apoio na terra, o povo se apega ao céu. Fanatiza-se, e vai subindo os degraus de mil igrejas, vai à mil fontes, mil grutas milagrosas. Dentro do sacrifício que já é a sua vida, sacrifica-se, ainda mais, esperando ser notado por Deus...

- Ah! Você falou uma verdade! Perdendo o apoio na terra! A Natureza é perfeita e equilibrada, mas o homem se desagregou dela. O Paraíso está sendo perdido agora, e sempre que o homem inutiliza os seus instintos ou os explora, indevidamente. Não vamos culpar a Deus por nossos infortúnios, e sim a nós mesmos, pelo nosso descaso, nosso egoísmo, nossa ânsia de desfrutar a vida, com Arnaldo o fez!

- É... Vadico tinha razão...

- Tinha sim! Tinha toda razão! Se o nordestino é fanático é porque lhe faltam a comida, a higiene, a saúde, a moradia digna! – o padre foi se exaltando – sabe-se lá o que é ter doze filhos e, entre eles, surdos e paralíticos? E viver numa miséria tão grande, num abandono criminoso?

Alcançaram a igreja, atravessaram sua nave, se persignaram ante o altar e entraram na sacristia, a velha sacristia de tantos encontros, conversas e discussões. Dai a pouco entrou Dr Januário. Vinha rubro, suando.

- Eu os vi subindo os degraus da igreja e me apressei. Foram ver o Arnaldo?

- Sim - respondeu o padre – fomos tentar rezar por ele.

- Que rezar, coisa nenhuma – rouquejou Delfina – não há reza que me faça perder a gana de matá-lo!

Caindo em si, caminhou pra o médico:

- Como está ele? É preciso que viva.

- A bala atingiu-lhe o pulmão, está lá localizada. Vou ter que levá-lo para Fortaleza. Exige uma intervenção cirúrgica delicada.

Caminhando até a janela, de onde a vista se perdia na distância, acompanhando as curvas do riu Curú, Delfina levou algum tempo remoendo as suas preocupações e depois desabafou, irritada:

- Eu disse à Filó e a Teobaldo que era uma loucura deixar a Ana, tão criança e deslumbrada, vir para a cidade. Foi no que deu! E se o miserável morre? Vejam em que situação estamos lá na fazenda, com Ana emburrada pelos cantos, fugindo de se encontrar com Elvira. Por outro lado, a Elvira, abobalhada, chora e se maldiz o tempo todo. Não enxerga um palmo de ante do nariz. O meu único apoio é Miloca, que vigia as duas e ainda cuida da mamãe.

- Por que você não manda Ana para casa dela? – quis saber Januário.

- E ela quer ir? Quer enfrentar o Chico?

- Manfredo poderia levá-la para Sobral – concluiu o padre.

- Ah! Duvido que a Ema concorde – respondeu Delfina – aquela não há de querer sarna para se coçar...

- O que faz a leviandade de um homem – cogitou Jesuíno.

- Leviandade? – exclamou Delfina – sem vergonhismo mudou de nome? Canalhice mudou de nome?

- Se acalme – aconselhou Januário.

A amiga voltou-se para a janela; seus olhos brilhavam sem se fixarem em um ponto certo e tornou a falar:

-Eu fui visitar Teobaldo na cadeia e engrossei com o delegado. Aquilo é uma pocilga! Uma fedentina! Ou ele dá um jeito de limpar aquela imundice ou eu...

- Calma – pediu Januário.

- Calma? Teobaldo não pode ficar naquele nojo de cela. Já levei sabão e soda cáustica, para lavar aquela porcaria! As redes têm de ser fervidas! – olhando firme para o padre, ela concluiu – Já sei como vou rezar, Jesuíno: é de vassoura na mão! Vou lutar para aliviar o sofrimento daqueles presos miseráveis! Acho bom você explicar ao delegado o que pretendo fazer. Ele que não me venha com melindres...

- Não se preocupe. Ele vai lhe agradecer. Agora estou mais aliviado, Deus irá abençoá-la e terá clemência com Arnaldo.

Januário contestou:

- Já não lhe bastam os problemas com sua família? Vai se preocupar com os presos, também?

Já se retirando, respondeu séria:

- Cada um reza a seu modo, Januário. Uns com terço na mão, outros com bisturis; as minhas terão sabão e desinfetante. As minha e as das minhas cunhãs.







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