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Contos-->Powered by Smirnoff. -- 31/10/2003 - 13:37 (Fleide Wilian R. Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Aquele dia nasceu estranhamente mais bonito para Ana. Ela acidentalmente acordara bem antes do horário. Entretanto, o despertar não lhe fora tão penoso como sempre. Os sonhos sonhados a noite foram sonhos vagos, transparentes, insípidos e profundos. Tão profundos que o amanhecer fora-lhe inicialmente tomado como sendo um sonho dentro de outro sonho.

O corpo de Ana era solto sob o lençol fino, o quarto era clareado pela cal branca que revestia as paredes recortadas pela porta, pela janela e vez por outra por quadros pobres e penduricalhos que enfeitavam o aposento simples. As manchas de mofo no teto - sob seu olhar perscrutador - transformavam-se em nuvens e sendo nuvens tornavam-se elefantes, camelos, florestas habitadas por feras, terras fabulosas habitadas por príncipes encantados.

O fruto da imaginação tinha cheiro. Cheiro de coisa gostosa de sentir com os dedos e botar na boca. O mundo era perfeito, colorido e brilhante. Ana via o que seus olhos mostravam, com o âmago. Seus olhos brilhavam com a claridade do dia singular que despertava e iluminava-lhe o ser.
Da cama a moça via os primeiros raios de sol penetrarem por uma fresta na janela, projetando a sombra de uma formiga na porta entreaberta do guarda-roupas que já se ocupava nos afazeres diários. A sombra não era nítida, porém era perfeitamente perceptível que a mancha disforme era a de uma formiga carregando alguma coisa. Sim, era uma formiga, não havia dúvida. "Uma operária sobrevivendo", pensou. Ana quis levantar-se, quis apreciar de perto aquele pequeno ser que levava seu fardo, cambaleante, para algum lugar, mas o corpo não obedeceu. Desconhecida era a sorte do inseto, como o sua.

A morte, o que havia de concreto e poderia relacionar a jovem e o animal. As duas existências findariam definitivamente com a morte. Era perturbador aquilo que estava acontecendo, Ana sentiu no íntimo uma inquietação muito grande ao se deparar com aquela coisa irracional, tão distante e tão próxima, paradoxal.

Ela, um ser humano complexo, provido de razão, alma, sentimentos e emoções. A formiga, irracional, pequena, feia, sem graça, um inseto asqueroso. E ambos desfrutando o mesmo sopro de vida que proviam seus corpos de movimento. Eram dois animais em busca da sobrevivência, que cumpriam nada menos que sua função ecológica e que morreriam obedecendo as determinações de um ciclo biológico que se repetia a milhares de anos.

Em seu íntimo tudo era turvo, um denso e misterioso torpor a envolvia.

O animal veio, abriu suas entranhas, suas feridas na alma e se foi.

A formiga passou, sua sombra não mais refletia no quarto. Ana sentiu-se confortável e a amplidão do silêncio acalmou-a.

Recomposta e feliz, Ana levantou-se. Espreguiçou-se, acompanhando o dia lento que se iniciava, lindo. Todos na casa ainda dormiam, ela tomou a toalha e dirigiu-se ao banho. Descalça, tranqüilamente, a moça despiu-se pelo caminho, aproveitando cada minuto. O corpo de Ana estava menos cansado, a boca mais fresca e os sons da manhã fria de agosto mais vivos aos seus ouvidos. No banho o corpo de Ana deliciou-se com os potentes jatos de água morna que jorravam do chuveiro. Relaxante. Ana sentiu vontade de urinar, olhou para o vaso mas mudou de idéia. Com os olhos fechados e a água do chuveiro caindo sobre a nuca e ombros, a moça afrouxou os músculos de seu baixo abdome até sentir o líquido quente escorrer pelas pernas. A bexiga esvaziava-se lentamente proporcionando prazer intenso. Alegre como uma criança que acabara de ganhar, inesperadamente, um sorvete, sorriu, sim, ela se permitira cometer o ato de fazer xixi nas pernas durante um banho. E como era bom, como era bom infringir aquela regra interna idiota. Nojento? Não era nojento, era natural, fisiológico. "As crianças fazem xixi nas pernas, qual o problema? Sou uma criança também". A moça combinou mentalmente de fazer aquilo todos os dias dali em diante. Quase às gargalhadas a garota pensou "como sou sapeca" e deixou seu corpo escorregar apoiado na parede, pelas costas, e no piso, pelos pés, até que se sentou no piso molhado do banheiro. A água caía sobre seus seios e ventre e como era bom. A jovem respirava com ferocidade, enchia os pulmões de ar e soltava bem lentamente enquanto contorcia seu corpo nu sob a cachoeira de fluido morno que brotava do chuveiro. Ana queria mais, ela queria olhar para cima, contra os belos fios de água. Ela, então, forçou o rosto contra os raios d água que vinham do céu, mas não conseguiu abrir os olhos. A água inundava-lhe a face, penetrava nos olhos, nariz e boca e transbordava. Como aquilo era bom, Ana nunca tinha sentido sensações tão boas. A água enchia-lhe a boca e com os dedos a garota acariciou as gengivas, a língua e cada um dos dentes, limpando-os com as pontas dos dedos indicadores e polegares. Escovar os dentes? Para que? Sua boca estava absolutamente limpa, "quem duvida?", pensou, "e quem vai saber que não escovei os dentes hoje?", completou. Um bem estar indescritível a tomava naquele banho, um banho simples, sem sabonetes especiais, música, incenssos ou qualquer acessório. Em seguida, a moça ficou de quatro e deixou que o jato de água massageasse abundantemente suas costas e nádegas enquanto ela contorcia-se no piso do banheiro, direcionando o jato forte de água quente em seu corpo a fim de conseguir o máximo de prazer. Como era bom, "Melhor que qualquer homem", ana não tinha dúvida.

Após algum tempo ali, absolutamente relaxada, a mulher levantou-se e ao se enxugar viu-se no espelho do armário do banheiro. Mesmo embaçado pelo vapor, Ana achou-se feia, limpou o espelho com a toalha e ainda achou-se feia, encarou-se, ficou ali por alguns instantes investigando-se até que não suportou mais o embaraço.

Ana teve vergonha de ser feia, ela poderia se cuidar mais, pensou. Mas era tão caro comprar bons cosméticos e ela era, declaradamente preguiçosa, redargüiu, parcialmente satisfeita. Suspirou, abaixou a cabeça e foi para o quarto terminar de se arrumar. Estranhamente, quis a moça iniciar a arrumação pela maquilagem, passando batom. Para isso, usou o minúsculo espelho do estojo portátil de maquilagem que carregava na bolsa. Refletido no pequeno objeto, a moça viu seus lábios rosados, grossos, bem definidos, guiou o reflexo para os olhos e encarou-se, olhou a testa, as sobrancelhas fartas, o nariz bem delineado, as bochechas e viu que o conjunto era bom, um pouco bonito. Ana gostou do que viu. Voltou ao banheiro e olhou-se novamente no espelho do armário. Examinou cabelos, orelhas, colo, seios, estufou o peito e fez pose. Sim, eles eram bonitos, ela era toda bonita, viu com os olhos da alma e se sentiu bonita. Então, Ana ajeitou-se ali enquanto fitava admirada cada pequena parte de seu corpo. Perfeito, ela viu que tinha um corpo proporcional simétrico e coerente. Ela não achou-se mais feia, sentiu vergonha de ter se achado feia. "Sou bonita e vou andar bonita", disse firmemente á meia voz no mesmo instante que fechou o punho da mão direito com força, ainda se encarando. Voltou ao quarto e procurou uma roupa que ela não usava porque julgava, internamente, ser bonita demais para ela.

A roupa escolhida era um macacão de lycra preta que colava perfeitamente ao corpo e deixava-lhe o colo á mostra. Atraente, mas esquecido no fundo do guarda-roupas, coberto por uma pilha de outras roupas e por um pudor velado, absurdo.
Terminado a arrumação, a Ana sentiu-se bem, passou seu melhor perfume e sentou-se á mesa da cozinha para comer alguma coisa. Olhou ao seu redor, achou tudo tão simples. "Simples mas limpo, somos muito asseados", enalteceu-se e sorriu orgulhosa de ter sido criada num meio onde a higiene eram ensinados desde cedo. Na fruteira sob a geladeira antiga viu algumas bananas, "Ah, como eu gosto de banana", disse baixinho. Levantou-se e pôs-se a escolher a mais bela banana da penca. Lembrou-se de quando era criança e sua mãe a obrigava-a a comer as bananas com a casca mais escura primeiro, para não perder, ensinava a mãe cuidadosa. Mas ela não precisava mais obedecer, Ana já era adulta, e ela estava sozinha. Ela gostava muito de ficar só, passava horas assim se fosse possível. A jovem pegou a banana mais perfeita da penca, sentou-se e descascou-a vagarosamente. Ana degustou a fruta calmamente apreciando cada nuance de sabor. Ela sentia-se uma deusa comendo a mais nobre iguaria de todo o mundo, uma privilegiada, única. Ana comeu ainda duas outras bananas antes de sair de casa para o trabalho, despreocupada.

Do lado de fora, o dia espreguiçava-se, como Ana, desapressado, lindo.

A caminho do trabalho, a jovem não sentia seus pés tocarem o chão, sentia-se novamente entorpecida. Ondas de êxtase transportavam-lhe, ela tinha a sensação de estar levitando sob o asfalto roto que levava á parada de ônibus como uma borboleta voando sob a grama verde de um jardim florido de uma tarde de primavera. Suave, Ana deslizava entretida em seus sonhos rumo ao trabalho. Um carro ali seria fatal, pois Ana não prestava atenção em nada, ela simplesmente fluía.

Pelo caminho e dentro de si. Ria, quase saltitava, enchia os pulmões do puro ar da manhã especial, cantarolava músicas que só ela entendia e fazia jestos inpensados com os braços, parava, dançava e intimamente sentia um prazer indescritível. Naquela manhã Ana examinava e acariciava a própria alma, ela era a perfeição, o ser humano puro, descontextualizado do mundo. Ela não era a filha exemplar, a boa aluna do curso de letras, a escriturária na loja de departamentos, a jovem que gostava de tomar sol no domingo pela manhã e comer arroz com feijão e abacaxi. Ana era Ana, só Ana, o ser sem carne, pele e ossos.

No ônibus, Ana não quis estabelecer contato com outros passageiros. Ela sabia que todos estavam ocupados com seus problemas amplificados ao gosto de cada um.

A moça sentiu-se superior. Seu olhar atravessava as pessoas: hipócritas, mesquinhas, egocêntricas. Cada um carregando no peito um punhado de frustrações, mágoas, rancores e sobretudo: preconceitos. Ela não tinha problemas, naquela manhã Ana não tinha problemas, soluções e não buscava nada. Ana, naquela manhã estava acima de tudo e de todos, ela fluía, só. De dentro do ônibus ela via o interior das pessoas e ria daquilo tudo. A condução não passava de um carregamento de carrancas a caminho do mercado, objetos inertes, desprezíveis, não muito mais que um bando de animais, e só. "Um bando de gente querendo ser bicho", disse Ana em voz alta. Ninguém entendeu nada, mas a julgaram: "Tá doida!". Alguns se afastaram dela. Ana gostou e riu alto.

"Gente fede", pensou Ana e teve ânsia de vômito. Avançou sobre a janela atropelando os totens carrancudos e deixou-se ventilar. O ar fresco da manhã penetrou em seu corpo, por suas narinas e inflou seu corpo inteiro.

Inesperadamente, penetrou em suas narinas o odor petulante de uma mangueira carregada de bebês manga, flores. Delicioso, Ana nunca havia percebido o quanto era delicioso o grosseiro perfume das flores de uma mangueira. Embaixo da copa da árvore um cão maltrapilho espreguiçava os primeiros movimentos na companhia da árvore e de seu cheiro. Que inveja do cão, sentiu a jovem, era tão mais fácil ser um animal irracional, livre, como aquele cão sem raça, sem dono, sem explicação, sem destino, sem porque e pra quê.

Sendo como aquele cão, ela não teria que fazer escolhas, e como doía para Ana fazer escolhas. Dava sempre tudo errado em sua vida. A moça sentiu-se momentaneamente infeliz, mas logo recompôs-se ao pensar no privilégio que ela desfrutava sendo capaz de aprender e executar as coisas para melhorar sua própria qualidade de vida. Ana, enquanto praticava introspecção, Sorria sozinha durante todo o trajeto ignorando os olhares encabulados de alguns passageiros.

No trabalho, Ana não se importou com os olhares curiosos dos colegas que a viram entrar ensolarada e emanando o frescor divino daquele dia. Comprimentou rapidamente a todos os que lhe dirigiram atenção e foi rapidamente para a sua sala. Aconteceu que quando a moça sentou-se e girou a cadeira para o computador, deparou com seu chefe debruçado sobre a o monitor. Sorrindo sarcasticamente.

Toda a subjetividade presente em Ana perdeu-se subitamente naquele instante com uma pergunta insensível da máquina humana.

-Ana, seu relatório mensal está pronto? Perguntou com a voz metálica, como um robô.

Num estalo, Ana se deu conta que era uma simples operária sobrevivendo, como a formiga que lhe acordara horas antes. Socialmente, porque dentro de si Ana já havia tomado consciência de que possuía o universo inteiro.

Era tarde.

Ana abaixou-se novamente, retirou os sapatos, levantou-se, com uma ironia cáustica nos lábios, gargalhou perto do ouvido do chefe, lambeu sua bochecha e saiu correndo pelos corredores da empresa. Todos espantaram-se, o chefe espalhou que foi agredido e que sua funcionária o teria contaminado com várias doenças na lambida. Inventou que ela o teria ameaçado e que ela estaria completamente drogada. Claro que todo mundo acreditou, quem duvidaria de um chefe? Sua reputação era a melhor possível e sua conduta corporativa inquestionável.

Fora do prédio, a jovem corria e ria sem direção. Ela seria livre, procuraria a liberdade, procurava ter o controle de sua própria vida, como o cachorro de quem a pouco sentira inveja. "O cachorro, quero vê-lo agora!", pensou, deu um grito agudo e mudou repentinamente a direção da corrida para o meio da rua. E um carro...

O carro abalrou-a levemente, e Ana caiu. O carro saiu em disparada, furou um semáforo e sumiu na cidade. Um cotovelo e um joelho de Ana ficam esfolados no tombo mas isso não interrompe sua corrida desvairada. Por entre turbilhões de ventos característicos dos meses de agosto, Ana procurou o cão e o encontrou. Em tal momento, no meio da rua, uma grossa coluna de vento e poeira os envolveu.

Transeuntes observavam com temor o que viam: Uma mulher, louca, e um cão vira-latas, sem dono, no meio de um redemoinho. Redemoinho esse que foi tomando força, foi crescendo, crescendo. Porém, Ana e o cão não saiam de sua região crítica. Os ventos já forçavam o fechamento de lojas e o desvio de carros de seus trajetos, mas a jovem e o cão brincavam e riam sem serem incomodadas pelo vento e o lixo que o furacão tirava da superfície e jogava no céu que já era escuro. Casas começaram a ser destelhadas, placas de publicidade eram destruídas como se fossem de papel, o barulho era ensurdecedor. De repente algo de extraordinário aconteceu.

A jovem e o animal foram levantados pela força do vento. Poucas pessoas viram o que aconteceu devido à poeira que era revirada. Rapidamente o tufão tornou-se muito forte e suspendeu muito alto a moça e o cão até que não se podia mais vê-los. Abruptamente todos os ventos dispersaram-se misteriosamente deixando apenas o rastro de destruição e uma pergunta coletiva: O que acontecera com a louca e o cão?

Não se sabe o que aconteceu e a imprensa não divulgou por se tratar de um caso extremamente absurdo. E além disso, mortes, roubos e vidas de artistas vendem mais.

Porém essa estória está sendo divulgada pelo povo, de boca em boca. No lugar onde Ana e o cão desapareceram foi edificado um pequeno altar onde se acendem velas e ofertam oferendas a santa Ana do vira-latas, como ficou conhecida, visto que a Ana são atribuídos vários milagres. Outros dizem que o lugar é visitado, a noite, por discos voadores e a há quem jure ter visto pequenos homens vermelhos saindo da terra e bebendo a cachaça das garrafas que também são colocadas em seu altar.

O que o povo não sabe é que no dia seguinte ao desaparecimento de Ana no olho do furacão, noutro lado da cidade, a comunidade hippie ganhou mais dois membros, uma moça e um cão.
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