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Contos-->À Sombra do Jatobá - XXVI - Delfina e suas protegidas -- 01/11/2003 - 02:02 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá –XXVI – Delfina e suas protegidas.


Há muito tempo Elvira escutava o movimento da casa, os passo das criadas, pondo a mesa do café, a voz de Delfina comandando. Até ao seu quarto chegava também, como havia chegado a noite toda, o desagradável tossir de sua mãe.

Desde que viera para a fazenda, não lhe fora permitido ir ao quarto de Dalva; temiam que a velhinha se emocionasse ou que fizesse perguntas e se pusesse a par da tragédia que havia surgido na família. Assim tinha resolvido Delfina, e ela havia concordado, aliviada, com a resolução. Não poderia, mesmo, suportar comentários que revolvessem os destroços do seu mundo.

Dormia mal, e ficava até tarde na cama, sem ânimo de se cuidar ou se interessar pelo mundo que agora a cercava. Sabia que, em algum lugar da casa, Ana guardava, dentro de si, o filho que deveria ser seu. De todos os desgostos que sofrera, este lhe parecia o maior deles.

Que lhe importava Arnaldo, com sua tirania, seus comandos e preconceitos? Hipócrita, a torturá-la como santarrão e a traí-la com sua própria sobrinha! Mas, que restava dela agora? Seu leito vazio, seus braços vazios, seu corpo vazio. Nunca fora, de fato, boa amante, ou melhor, a atitude de recato que Arnaldo a forçara sempre assumir, tolhia-a e nunca pudera lhe dar o calor, a sofreguidão, a explosão livre do sexo que, com certeza ele libertara e aproveitara de Ana!

Deitada em sua cama, ela acariciava de leve o seu ventre, enquanto os seus pensamentos davam voltas e voltas...Ansiava pelo filho que Ana rejeitava.

Lentamente ergueu-se da cama e caminhou até a sua camiseira, em frente da qual parou. O corpo envolvido na camisola de seda, os braços pendentes, os pés descalços, cheia de tristeza e desânimo. Aos poucos foi se agachando e, cruzando as pernas, sentou no tapete e abriu uma gaveta do móvel, O enxoval de seu filho, dos muitos filhos que esperara e que lhe haviam fugido, estava lá, a espera de um corpinho para abrigar. Elvira escolheu algumas camisinhas, alguns pares de sapatinhos, envolveu-os numa fralda e depois, fechando novamente a gaveta, colocou o pequeno pacote sobre o móvel. Trocou rapidamente de roupa e tomando novamente as peças do enxoval, chegou até a porta, olhou para os lados e, percebendo-se sozinha, caminhou apressadamente até o quarto de Ana.

Nas horas das refeições, quando a família se agrupava em torno da mesa, Ana sentia sobre si os olhos de Elvira. Eram olhos febris, aloucados, acusadores. Ana se esgueirava, fugia de ser vista, e à medida que seu ventre se avolumava, a amargura ia aumentando.

A princípio, duvidava que aquilo estivesse crescendo e viesse a dar na vista. Apertava-se com faixas e roupas justas. Depois, ante a evidência, afrouxou as saias, alargou as blusas, e passou a se esconder.

Naquela manhã, depois do banho, ao entrar em seu quarto, encontrou as roupas do bebê sobre a sua cama. Seu rosto ardeu como com o calor de um tapa! Sem vontade de tocar nas peças, ficou rodando pelo quarto, sem saber o que fazer. Enchendo-se de coragem, enrolou as roupinhas na fralda e socou-as na última gaveta de seu guarda-roupa. Chegou até a janela e, com os olhos dançando sobre a paisagem, procurava concatenar as idéias: por que Elvira fizera aquilo? Para lembrá-la de quem era o filho? Para acusá-la? Mas ela própria não se acusava? Seria possível alguém pensar que não se remoia de vergonha, de remorso, pela conseqüência de sua leviandade? Não sofria pelo pai. aquele pai vigoroso, livre e trabalhador que restava no fundo de uma cela? E Arnaldo, não se mantinha ainda entre a vida e a morte, no hospital, em Fortaleza? E não lhe acachapava o zelo de tia Delfina, o carinho de Miloca e de todos que dela cuidavam?

Ela se transformara num monstro, por dentro e por fora. Aquela bola a crescer, crescer, a se mexer, a pular e bater... Não era capaz de lhe dar formas. Sentia-a como um cancro. a lembrá-la, sempre, o seu pecado. E padre Jesuíno falava na remissão dos pecados... Quando? Onde? Mais inferno do que a sua vida havia se tornado?

Quando Filó, Chico e Tonino chegavam para vê-la, recusava-se a recebê-los e trancava-se em seu quarto. Deitava na cama, virava o rosto para a parede e ficava sofrendo.

Nestas ocasiões, Elvira também se escondia, pois a presença de Filó lembrava a sua própria fraqueza, lembrava que fora ela que implorara a companhia de Ana, que havia forçado a irmã a convencer o marido do quanto era frágil e necessitava que a amparassem, que a cercassem de cuidados, que modificassem suas vidas para atendê-la! Delfina fora contra, apontara os perigos, mas ela era fraca, e pusera, dentro de sua casa, a força, a juventude exuberante de Ana! Junto ao seu marido! Que estúpida que tinha sido! Agora a sobrinha crescia, nutria em si o filho dele, o filho que não pudera lhe dar! Elvira odiava e invejava Ana. Andava desnorteada pela enorme casa da fazenda. Faltavam-lhe as palavras de comando do marido: faça isto, vista aquilo, não se penteie assim, fale baixo, sorria...

Agora as duas se refugiavam sob os cuidados de Delfina e de Miloca, que procuravam novamente encaixá-las no mundo e mantê-las no seio da família

- Elas que se entendam, padre – Delfina falara – que aprendam a se tolerar, que purguem seus erros, que se soquem, mas aqui, debaixo do meu teto! São minhas! O mundo que se dane! Arnaldo que vá pro quintos dos...

- Delfina! Lembre-se que ele está em coma!

- Pois que morra!

- Se continua nestes termos, eu vou embora! Me contamino com seu ódio! Assim não encontro forças para ajudá-la e lembre-se de Teobaldo, pelo amor de Deus!

- Não , padre, ele não vai morrer... Mas há de sair um caco, daquele hospital e...

- Com você não se pode conversar! Vá tratando de se acalmar e depois me procure – padre Jesuíno sempre saia batendo o pé, sabendo, de princípio, que esta seria a forma de Delfina cair em si esfriar a cabeça. Aos trancos e barrancos ela ia se entendendo com o amigo e abrigando as duas infelizes.

Delfina se mantinha firme nas atitudes, mas voltara a usar as palavras como chicotes, como no dia em que Manfredo e Ema vieram de Sobral para oferecerem ajuda. Houve prazer dela em receber o irmão e constrangimento de Elvira e Ana, ao se sentirem analisadas pelos olhos frios de Ema.

Depois de trocarem as primeiras impressões sobre tudo o que havia acontecido, Manfredo se ofereceu para levar uma das duas com eles, mas Elvira se recusou a largar Delfina.

Foi aí que a coisa complicou: Ana, abatida pelos enjôos dos primeiros meses de gravidez e, também querendo fugir do convívio com Ema, que lhe era quase uma estranha, disse, titubeante:

- Eu não tenho passado muito bem e... E tenho medo da viagem, de dar trabalho, vocês sabem...

- De dar trabalho? – retrucou Ema, ríspida – Dar trabalho? E você pensou em “não dar trabalho” alguma vez? Arranja esta encrenca toda, e teme, agora, dar trabalho? Ora não me faça rir, Ana, com este olhar de ingênua!

Delfina afastou-a da sobrinha com um empurrão e falou-lhe, junto ao rosto assustado:

- Se nós precisássemos de sermão, eu garanto que não seria a você que pediríamos! Dê Graças a Deus de ter um marido vivo ao seu lado e um nome para seu filho! Não me venha a ditar regras de puritana, dentro de minha casa! Ah, você não! Você não, mesmo!

Manfredo se juntou à mulher e bradou:

- Delfina, os anos passam e você continua grosseira!

- Grosseira e mandona, debaixo do meu teto, e se vocês vieram ferir a Ana, perderam tempo e viagem! Ela fica aqui, comigo!

- Mal agradecida! – berrou Ema – Dou mesmo Graças a Deus de ter saído daqui, e Ana ainda vai se arrepender!

Delfina, em poucos passos, chegou até a porta da saída e abriu-a, com violência, dizendo:

- Aproveita e dá partida no carro, Manfredo, enquanto o motor ainda está quente!

Sem mais uma palavra, nem mais um gesto; ficou segurando a porta aberta para os dois passarem – e passaram tinindo de raiva. Ela fechou, de supetão. Logo depois, fitando as duas atônitas mulheres, disse, no mesmo tom de voz com que despedira o irmão e a cunhada:

- Vocês vão ficar aqui, vão enfrentar esta situação toda, vão engolir os seus mau humores, ou botá-los todos para fora de uma vez, uma para a outra, mas, aqui, onde meu berro possa alcançar e calar a boca de qualquer um. Entenderam bem? Armaram esta situação e vão aprender a desarmá-la ou a conviver com ela.

De fato, padre Jesuíno tinha tido muito trabalho para vencer o gênio de Delfina, mas a respeitava e amava como a nenhum outro membro da sua paróquia.

Não era nada fácil a vida na casa da fazenda, e o gesto de Elvira, depositando as roupas do bebê sobre a cama de Ana concorrera para piorar, e muito, o humor da revoltada sobrinha.

À tardinha, quando o sol amainava, Ana descia os degraus da varanda e se punha a caminhar, lentamente, pelo jardim, ao lado da casa. O ventre volumoso lhe pesava sobre as coxas, dificultando-lhe o andar; muitas vezes a tia ou Miloca a acompanhavam e a animavam a sonhar com a criança que ia chegar, mas Ana fugia do assunto. O filho era apenas um peso, um desastre na sua vida; não sonhava com ele, sonhava, apenas, em ver-se livre daquela deformação; livre daqueles olhares de pena e curiosidade dos que a cercavam; livre da inveja e acusação que havia nos olhos de Elvira.

Caminhava e depois, cansada, voltava para seu quarto e se deitava, sentindo a pulsação acelerada em seu pescoço. As pernas tremiam pelo esforço do passeio e doíam as suas juntas. Os pés deram de inchar um pouco e Dr. Januário tirara todo o sal de sua alimentação. Miloca vigiava para que não abusasse de esforços nem fugisse da dieta ou remédios.

Onde quer que estivesse, sentia a presença de Elvira e, amedrontada, continuava a socar as roupinhas de nenê que a outra sempre deixava em sua cama. Passou a trancar a porta do quarto, quando saía, mas ao menor descuido, lá estavam distribuídos pelo colchão os mimos feitos para todos os nenês que Elvira havia esperado com tanta ansiedade e perdido com tanta tristeza.

Nessa tarde, Ana voltou do passeio terrivelmente cansada, puxando com dificuldade os passos, sentindo-se só e infeliz. Sem se dar ao trabalho de fechar a porta do quarto, dirigiu-se para a cama e se deitou, virando o rosto para a parede e chorou. Chorou por todos que amava tanto e que aos quais tinha decepcionado terrivelmente. Chorou por ela mesma, por sua mocidade, pelo filho que se anunciava tirano, fazendo-lhe doer os rins, os seios!

“Vovó Dalva teve seis filhos! Como pode alguém passar por isto seis vezes?” - Nela, tudo se transformara, se desgastara, seus cabelos andavam opacos, sem vida, sua pele cheia de manchas, seus olhos ora se afundavam, ora amanheciam inchados, o nariz engrossara e os lábios se avolumaram; sentia a sua pele esticar, em cada movimento. Os encantos da maternidade só poderiam mesmo existir se houvesse carinho entre marido e mulher, apoio por parte dele e orgulho dela, em dar-lhe um filho, porque, nesse abandono, nesse desencanto, era sacrifício jamais imaginado.

Assim chorando, não ouviu os passos de Elvira, entrando no quarto, nem sentiu o calor de seus olhos febris, a percorrer o seu corpo a se fixar no seu ventre . A pele de Ana adquirira uma transparência leitosa, que descia pelo seu busto, pelos seus braços, dando-lhe suavidade, fragilidade. Elvira invejava os seios que se turgiam, invejava o andar balançado da sobrinha e. à medida que ela se avolumava, perseguia-a com mais volúpia: seu filho estava ali... Era filho de Arnaldo, logo era seu! Via-o como crisálida, num tronco inóspito. Percebia a aversão de Ana e se regozijava. Ela o receberia, ela o acalentaria. Vagarosamente se aproximou do leito e com as mãos em delírio, tocou de leve, o ventre inflado.

Ana, assustada, volveu a cabeça e a encarou. Horrorizada, ao notar a presença da tia, se transformou. Sentiu-se nua, virada pelo avesso, dissecada por aquele olhar de cobiça:

- Não me toque! – berrou – tire as suas mãos de cima de mim! Vá para longe, com estes olhos de louca! Chega! Chega de me seguir!

Aparvalhada com os gritos da sobrinha, Elvira se deu conta do que havia feito. Uma onda de calor espalhou-se em seu rosto. As mãos esticadas tremiam; os lábios tremiam; os olhos se contraiam, e ficou indecisa, ante o inesperado.

- Saia! Saia! – berrou Ana, cheia de asco.

Delfina surgiu na porta e, compreendendo o que se passava, apressou os passos, envolveu Elvira pelos ombros, e levou-a para fora do quarto.



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