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Artigos-->A prática do professor e a formação para a pesquisa -- 05/07/2002 - 13:56 (Dante Gatto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A prática do professor e a formação para a pesquisa



[Trata-se de uma palestra proferida na Semana Pedagógica da UNEMAT, Campus de Tangará da Serra (MT), em 09/03.2000. Mantive-a integralmente]



Praticamente me convidei a esta fala, nesta circunstância tão propícia a um assunto tão importante quanto polêmico: a prática do professor e a formação para a pesquisa. A oportunidade é única pela reunião de profissionais de diferentes disciplinas e pela discussão que pode daqui advir. Tenho minha experiência em sala de aula que penso da maior importância repassar, principalmente, no sentido de ouvir críticas e ratificar ou retificar, aqui e ali, valendo-se pois da interdisciplinaridade e da opiniões dos profissionais do assunto que são os pedagogos aqui presentes.



Tenho recebido críticas a minha prática e venho defendê-la, sem animosidade ou revanchismo. Aliás, noto que tais críticas nascem de uma concepção do ser humano, diferente da minha, e que me parece limitada e distorcida. Comecemos, pois, deste ponto: como concebo o ser humano? Ou melhor, prefiro outra terminologia: fenômeno humano, termo apropriado da moderna teoria de recursos humanos. Fenômeno singular que consiste na necessidade inerente do Ser em transcender, ir além e, ao mesmo tempo, deixar sua marca, digamos assim, uma singularidade que o diferencia como ser único. É fácil de perceber: o impulso à criação faz parte deste processo. Sim, desejamos criar. E criar aqui não consiste apenas em perpetuar a espécie, mas afirmar as luzes raras do fenômeno humano. Ora, isto já estava em Platão como força subjacente à condição amorosa.



É, pois, a capacidade criadora própria do ser humano. Todos somos criadores, nascemos para criar e transcender. Isto é inerente a nossa índole enquanto seres humanos. No entanto, não é difícil perceber que tal fenômeno não se efetiva na prática. O que prevalece é uma descrença generalizada em tal poder criativo que acaba se afigurando como característica de poucos bem dotados. Na verdade, ao meu ver, ocorre que somos educado para esta moral de rebanho. Aliás, somos deseducados. Obedecer e não criar, eis a prerrogativa tácita das nossas elites intelectuais que ainda respiram um ar carregado da herança burguesa e pensam em pessoas como recursos (mão-de-obra) indispensáveis ao objetivo maior, o lucro.



A educação, com eu a entendo, na sua prática, deve criar condições propícias para que o educando se torne um criador, tornando viva a pujança humana que lateja dentro de si, inerente ao fenômeno humano, como comentávamos. Como isto pode ser feito dentro da sala de aula? Aliás, Roland Barthes já falou do caráter essencialmente subversivo que se configura este espaço, neste sentido.

Ora, na sala de aula podemos desmascarar o caráter absoluto de todo e qualquer verdade, apontando-lhe a incessante transformação dialética. Na sala de aula podemos incluir o aluno neste processo transformador, estimulando-o à participação, como agente ativo, criador e criatura. É uma tarefa das mais árduas, tendo em vista os valores introjetados em sentido contrário. Vamos examinar, novamente, o que diz as teorias de recursos humanos, conforme Flávio de Toledo no seu pequeno livro O que são recursos humanos (2.ed., Ática, p.40), reportando-se novamente à questão do fenômeno humano: “fenômeno que o homem buscou durante os milênios de sua evolução, e busca teimosamente hoje, condições de liberdade para poder assumir a responsabilidade na condução de seu projeto. A não-participação seria, então, a institucionalização do ser humano, como ser condenado a ter seu destino preestabelecido por minorias e por estas ser comandado, organizado e manipulado, seja coercivamente, seja com a generosidade aparente de um paternalismo possessivo.” A participação em sala de aula não se prende somente ao produto, isto é, a superação da verdade absoluta, mas ao próprio processo. O grupo deve participar no processo, fazendo a aula com o professor. A prática da participação ativa, quem já experimentou sabe, é extremamente motivadora.



Vamos tentar, resumindo, discernir as palavras chaves da nossa reflexão, até agora: levantamos a questão do fenômeno humano que a educação deve permitir que aflore sob pena de se configurar como uma deseducação; em seguida, inferimos que a capacidade criativa é própria do fenômeno humano; depois se nos configurou como essencial a participação. Faltou um elemento da maior importância para que todos os outros se efetivem: a liberdade! Sim, o fenômeno humano anseia e se alimenta de liberdade.



Percebam que aqui se apresenta o grande complicador ao trabalho do professor. Sim, tendo em vista que a prática disseminada na escola é coercitiva, isto é, não somos educados para a liberdade (a máquina capitalista, o socialismo real o próprio instinto gregário nos coage) e, no mais das vezes, não sabemos o que fazer com ela. Enquanto alunos, fomos preparados para obedecer, sob a sombra dos dogmas. Na nossa vida em coletividade, orientamo-nos sob o poder dos valores institucionalizados, cuja recusa implicaria exclusão do convívio dos nossos iguais, ferindo a nossa própria natureza social.



Vamos colocar as coisas de outra maneira, ao mesmo tempo que ampliamos nossas reflexões. Nós, professores estamos inseridos no processo de preparar nossos alunos, essencialmente, para aquilo que costumo chamar de homem integral (outra terminologia raptada das teorias de recursos humanos). Sim, a educação, na acepção mais profunda da palavra, deve objetivar esta espécie de super-homem nietzscheano: criador, lúcido, participante, dono do próprio destino e livre, sociologicamente falando. (Com que alegria, quase zaratustriana, vejo que a moderna educação está descobrindo a poderosa contribuição de Nietzsche que desde sempre orientou minha prática de educador). O que implica isto? Tem uma dupla implicação: por um lado, preparamos nossos alunos para se dar bem no mundo, profissionalmente falando, não é verdade? Sim preparamos os nossos alunos para tal sucesso. Por outro lado, o preparamos, também, para negar esse sucesso, negar a si mesmo enquanto sucesso, negando as contradições que o rodeiam. Sim, porque fez-se sucesso num mundo perpassado de contradições. Só um Homem com senso de liberdade pode faze-lo. Só um homem educado para ser livre.



Como é difícil, no entanto, praticar a liberdade na sala de aula. Às vezes, perco o ritmo, cai-me das mãos a batuta num despropositado descompasso. Costumo, nestas circunstâncias, contar a história dos meus cachorros. Deixe que vos conte, também: meu filho, um dia, trouxe um cachorrinho para casa. Rapidamente, todos nos apaixonamos por ele. Não tinha raça definida, mas uns grande olhos de ternura e festa. Morávamos então numa avenida movimentadíssima e, para proteger o cachorrinho, não o deixávamos sair: certamente seria atropelado, pensávamos, dado aos sinais de infantilidade que emanava dele. Um dia, em que estávamos neste briga cotidiana, cuidando para que ele não saísse, um vizinho, que já vinha observando a situação, interviu decisivamente, abrindo o portão e dizendo: “Pare de torturar o animal, deixe ele dar um voltinha”. Qual foi o nosso espanto ao vê-lo se movimentar entre os carros, a esperar na calçada o momento certo de atravessar a rua. Deste dia em diante, tornaram-se diários os seus passeios. Viveu oito anos, morrendo lentamente de uma súbita moléstia que lhe paralisou os movimentos. A comoção foi generalizada. Deixou um vazio enorme, principalmente no cotidiano dos meus filhos. Desta vez, tentando suprir-lhe a falta, minha filha apareceu com outro cachorrinho, com o mesmo ar faceiro, daquela infantilidade que sabia de tudo. Quando ele já estava bem crescidinho, não tive dúvidas, abri o portão para que ele experimentasse a liberdade das ruas. O resultado, no entanto, foi bem outro: para minha tristeza e desespero dos meus filhos este cachorrinho se precipitou em baixo de um caminhão, tendo morte instantânea e horrível. Cheguei ao ápice da perplexidade quando o meu vizinho, o mesmo, com o dedo em riste, desabafou com o seguinte comentário: “você não poderia deixar este cachorrinho sair numa rua tão movimentada”. Era-lhe óbvio o que para mim era impossível discernir. Tudo me parecia semelhante nos dois cachorros. Que acurada percepção, uma espécie de psicologia canina, possuía o meu vizinho, além das minha possibilidades.



O mesmo acontece com a nossa prática em sala de aula, no que se refere a liberdade. Em alguns casos podemos, e devemos, abrir-lhes os portões. Ser-lhes-á extremamente salutar; em outros, não sabem o que fazer com a liberdade e não fazem nada, resultando em grande prejuízo para sua formação. Ora, é o que já falamos: foi-lhes negada esta prática. Precisam ser cerceados como sempre foram, precisam do autoritarismo, se sentem seguro com o mando, precisam saber o que deve ser feito porque não tem poder de decisão. Aqui se afigura a problemática maior, uma vez que estão todos inseridos no mesmo espaço, a sala de aula, e devemos conceder-lhes igualdade de oportunidades.



Chegamos ao mesmo paradoxo, exteriorizando outra de suas múltiplas faces. É o que faz da nossa profissão uma atividade da maior complexidade. Nos alunos do primeiro tipo, brilha a exuberância do fenômeno humano: são autodidatas; são criadores; encaram a vida na sua inteireza, vêem-se agentes do processos, chamam para si as responsabilidades; são marcados pela felicidade. Nos alunos do segundo tipo, ocorre o contrário: estudam por obrigação; fazem o que lhes mandam, extremamente suscetíveis à nota; a vida, para eles, é um castigo, vêem-se vítimas do processo e encaram a felicidade relacionada aos prazeres frugais, obtidos pela regras do jogo capitalista (consumismo, ascensão profissional, etc.). Não é a inteligência, essencialmente, o que os diferencia, aliás, os alunos do segundo tipo cultivam-na com maior dedicação. O que os diferencia, e aqui caminho num terreno instável, é um agregado perdido no seu processo de formação. Múltiplos elementos o configuram, como já dissemos: a cultura, a necessidade de aceitação, o instinto gregário, as instituições. Mas podemos sintetizar todos esses elementos dessa requintada química em apenas um: a Educação.



A nossa prática em sala de aula, portanto, se efetiva na tensão liberdade/cobrança. O ideal seria, numa educação de homens livres, a supressão de todas as formas avaliativas: sem diários, sem nota, sem avaliações. Reunir-nos-íamos para falar de literatura. E que enorme prazer nestes encontros, o júbilo diante da arte, a vontade de transcender far-se-ia expontânea “como as tardes e as manhãs”. Fiz este comentário para uma professora de didática, formada em pedagogia. Ela foi taxativa em afirmar que se fosse minha aluna, nestas circunstâncias, não assistiria às minhas aulas. Ora, aluna do segundo tipo e professora circunscrita a tal contingência.



Escrevi um artigo, contemplando este tipo de professor. Denominei-o professor penitenciário. Arrisquei-me, na ocasião, a configurar-lhe a complexa personalidade, tendo por base todos os representantes da espécie que tive (já que ele existe) a felicidade de conhecer. Aqui basta enfocar uma de suas tiradas lapidares: “compromisso com a sociedade”. O professor penitenciário reveste-se de toda sorte de técnicas punitivas e coercitivas no sentido de excluir os “incompetentes” para atender o tal “compromisso”. Acabará por promover aquilo que há pouco chamamos de deseducação. Acabará por criar protótipos igual a si: alunos penitenciários, digamos assim, que reproduzirão o mesmo mal. O que caracteriza essencialmente o penitenciário, aluno ou professor, é a sua impotência, sua incapacidade de criar. Sim, o terror paralisou-lhe os sentidos, esmagando-lhe o potencial criativo. O trabalho lhe é doloroso. Só reagem sob pressão, enquadrando-se numa fórmula que lhe apontaram como vitoriosa, não significando verdadeira contribuição ao pensamento do seu tempo. Alguns, até, se fazem bons sistematizadores, mas nunca revelar-se-ão criadores. Nunca viverão a exuberância do fenômeno humano que vós falava. Arrastarão seu medo, sua fraqueza, sua doença, contaminando tudo o que tocam.



Na verdade, somos todos um pouco penitenciários, na medida que estamos submersos num mundo penitenciário, mas, como há pouco falava, é aqui que repousa o caráter essencialmente subversivo da sala de aula e a complexidade do nosso trabalho: educamos para o mundo, mas, também, para transformar o mundo num espaço humano, verdadeiramente humano. A prática da sala de aula, portanto, deve abrir perspectivas para tal. O relacionamento professor/aluno deve ser construído, prevendo estas mudanças. O respeito inerente deve nascer disto. O professor deve ser reconhecido como professor, não por uma estrutura hierárquica rígida, não pela coerção da nota, ou recursos que os valham, mas pelas suas qualidades humanas de saber trazer todos à participação, envolvendo o conhecimento, abarcando a realidade e superando suas contradições.



Dante Gatto, Professor Assistente da UNEMAT, Campus de Tangará da Serra (MT).

gattod@terra.com.br
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