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Contos-->À Sombra do Jatobá -XXVIII - O sonho de Elvira -- 07/11/2003 - 02:11 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá XXVIII – O sonho de Elvira.

Quando Delfina saiu, levando Ana para casa, Elvira dormia profundamente. Teve sonhos incríveis, pesados, lutava por se libertar, ouvia a voz de Arnaldo chamando-a, mas ela não conseguia achar a sua direção e, num momento, aquela voz angustiada tornava-se sonora, num hino religiosos que ela tentava acompanhar no órgão, mas seus dedos emperravam, as notas lhe fugiam e os olhos verdes do marido se tornavam acusadores; toda uma platéia se levantava contra ela e pedia de volta o seu ingresso. Ingresso na igreja? Ora! Que loucura! De repente, padre Jesuíno levantava uma batuta e ameaçava agredi-la. Ao apertar os pedais do instrumento, reparou que estava descalça, sentia o frio do metal nas solas dos pés e, baixando a cabeça pra fitá-los, reparou, também, que seu vestido, transparente, delineava totalmente as suas pernas e, mais acima, seu busto. Nua! Ela estava nua, em plena igreja!

Elvira se revolvia na cama e lutava por fugir do pesadelo. Acordou extenuada, sentindo a língua grossa e a saliva pegajosa envolvendo seus dentes.

Não tardou em levantar e entrar num chuveiro. Ao se arrumar, lembrou-se do sonho e da cena que tivera no quarto de Ana. “Estarei ficando louca?” – pensou.


Acabando de enrolar os cabelos, ela se dirigiu até o quarto da sobrinha. Precisava vê-la, pedir-lhe desculpas, conversar francamente com ela e falar-lhe da criança. Faltava tão pouco tempo para Ana “descansar” e havia tanto a fazer...

Ao ser surpreendida por Miloca, desviou os passos. Queria falar a sós com Ana. Saberia como convence-la a entregar-lhe o filho; não precisava entregá-lo “todo”: bastava que deixasse que ela participasse de sua criação, pois não iriam viver sob o mesmo teto? Ele chegaria, com os olhos de Arnaldo, os cabelos de Arnaldo, e talvez com a bela voz do pai. Formariam novamente uma família, ela o acompanharia no órgão...

Percebendo-se sozinha, tornou a percorrer o corredor e entrou no quarto de Ana. Estranhou de encontrá-lo às escuras, pois Ana era madrugadora, mas, firmando a vista, não descobriu a sobrinha em sua cama. Foi até a janela e abriu-a completamente, e seu coração deu um pulo em seu peito: a cama não tinha sido mexida e sobre ela se empilhava todo o enxoval que, pouco a pouco, ofertada ao “seu filho”. O silêncio de Ana, ao recebê-lo e guardá-lo, criara como um pacto entre as duas, é o que havia imaginado. Compreendendo a situação, ficou desesperada: ela se fora! Levara todo o seu sonho. Viu-se sozinha, sentiu a sua cabeça girar e as idéias se misturarem. Correu para a cama e reuniu todas as roupinhas, ergueu-as, juntas. e abraçada com elas, sentou-se no leito. Fitou a porta aberta, os moveis vazios, e, lentamente, começou a balançar o corpo, para frente e para trás, ninando... ninando...

Delfina foi encontra-la assim, patética, envolvendo um mundo de camisinhas, de cueiros e sapatinhos, com suas fitas pendentes, suas rendas e bordados, junto ao peito, a embalá-los, entre suspiros e gemidos, tendo os olhos cheios d’água. Chamou-a docemente e ela não respondeu, nem deixou de balançar o corpo, em ritmo certo. Ainda docemente Delfina ergueu-a pelos ombros e foi, pouco a pouco, fazendo-a soltar a peças. Ainda abraçada com a irmã, conduziu-a para fora do quarto. Elvira estacou de repente, no meio do corredor, e envolvendo o pescoço de Delfina, deixou que o pranto a sacudisse.

Como que despertando de um torpor que a tornara ausente por momentos, chorava livremente e murmurava:

- Eu o amo tanto! Eu o quero tanto! Sonhei tanto com ele, você me entende, Delfina? Eu já o sentia meu, como se estivesse mesmo dentro de mim! Eu queria sentir os seus movimentos e... Por isso eu a toquei. Queria ter certeza de que estava vivo, de que logo chegaria! Eu não quis assustar a Ana! Eu não quis! E agora ela foi embora e levou o meu bebê... Você entende que ele é meu? É sim, é de Arnaldo! É meu! – depois, fitando a irmã no olhos, disse-lhe, com rancor – ela não quer, ela o amaldiçoa – e soltando o pescoço da irmã esticou os braços vazios e choramingou - eu o quero tanto! Tanto!

Delfina tornou a envolvê-la, desta vez pela cintura e fê-la caminhar lentamente, com ela, enquanto lhe falava com doçura:

- Elvira, o bebê é nosso, é de todos nós, porque todos nós o amamos e vamos tratá-lo com carinho, para que não lhe falte nada, Ana somente agora despertou para este amor tão grande, que você vem sentindo por todos os filhos que já esperou. Não acha isto muito bom? Ela não fugiu, ela foi contar para Filó o quanto está contente, agora; o quanto amadureceu de ontem para hoje. Não fique triste, eu tenho a certeza que ela vai precisar muito de você; todas as vezes que ela sair e deixar o nenê com a Filó, vai chamar você para ajudar. Sabe porque, Elvira, porque Filó tem muito o que fazer. Olhe; enxugue o rosto, pare de soluçar e vamos pensar como será bom, quando ele nascer. Como todos nós vamos cuidar dele, hein?

- Ela desprezou as minhas roupinhas...

- Não! Ela estava meio desnorteada e assustada com você. Pensou que você queria lhe tirar o bebê, mas fez isso por ser muito criança e não entender que você sabe que filho é coisa sagrada, não se tira de ninguém! Nós duas iremos lá, em casa de Filó, e vamos levar todas as roupinhas, já bem lavadas e passadas, de presente para Ana e você vai dizer-lhe isto, que quer ajudar a criar o nenê, como nós queremos.

- Você sabe, - continuou Elvira ao chegarem na sala e se acomodarem nas cadeiras – eu fiquei desesperada, quando ela fez ... Fez aquilo com o Arnaldo. Fiquei louca, imaginava a cena, via os dois se embolando e se enrolando no consultório! Imaginava os olhos dele! Os beijos que lhe dava e via as suas mãos, percorrendo o corpo dela...

- Elvira! Não se martirize!

- Não, eu preciso falar! Quero que você entenda porque me apeguei tanto à idéia de ter o bebê para mim... Eu me sentia roubada, entende? Acho que Arnaldo queria demais um filho, e eu não podia dar-lhe. Ele me ama, sabe, Delfina? E se eu tivesse o nenê só para mim, ele voltaria! Fico encabulada de dizer isso, depois de tudo o que nos aconteceu. Mas... O amor está no sangue da gente, está na minha pele. Olha, Delfina, deixa eu lhe dizer... Eu sonho com ele todas as noites e muitas vezes eu o escuto chamar: “Elvira! Está na hora, vamos chegar atrasados na igreja!” – parou um pouco de falar e suspirou – a nossa casa, o piano, ele cantando e me olhando com orgulho! Eu o vejo sentado à mesa, mastigando com gosto...

Elvira voltou a soluçar; procurando acalma-la, Delfina levou-a ao seu quarto, mas, ao transpor a porta, ela sentiu que toda a solidão daquele ambiente atingiu a irmã. Seu olhar dançava sobre os móveis, sobre a cama desfeita e vazia. Voltou-se, angustiada, para Delfina, enquanto sua voz, rouca de pranto, reclamava, com verdadeira fúria:

- Eles não estão mais aqui – seus punhos fechados surravam seu ventre e seu peito – Eles sumiram! Não estão mais aqui, aqui dentro de mim! Eu quero que voltem! Preciso que voltem!

Caminhou para Delfina. Seus lábios infantis se contorciam:

- Eu não posso dormir... Os pesadelos, as mãos de Arnaldo, quentes, violentas, me acariciam...

- Elvira!

- Sim, me acariciam, me apertam... Eu sinto o Arnaldo! Acordo suando, gemendo, meu corpo ainda se agita e se retorce, E me queima, eu sinto, aqui, em baixo...

- Elvira! Cala!

- Não, não calo! Não sei do que você é feita! Eu tenho sangue! Sem querer - entenda! – os meus órgãos se mexem, se contraem... Não está em mim deixar de sentir! Deus sabe que não está em mim!

Tentando terminar com o desabafo da irmã. Delfina caminhou até a janela e abriu-a de par-a-par. O ar da manhã lhe foi um alívio. As palavras de Elvira haviam-lhe causado forte emoção e ao mesmo tempo repulsa. Detestando aquela intimidade, aquele explodir do sexo incontrolado, sentia-se confabulando sujeiras; no entanto, a figura desprotegida da irmã desmentia impressões. Descabelada, com os olhos vermelhos e inchados, ela era apenas desconsolo, abandono e revolta.

Procurando conduzir o assunto para um terreno mais ameno, seguro as suas mãos e fez com que a irmã se sentasse ao seu lado, junto à janela. Elvira continuou a falar:

- Por que, Delfina? Por que nos aconteceu esta barbaridade? Por que de um dia para o outro tudo se transformou? Eu me arrependo tanto de ter levado Ana para casa! No fundo, eu estou satisfeita por ela ter voltado para Filó, mas o nosso nenê... – e novamente entregou-se ao choro.

- Elvira, sabe, eu acho mesmo que você deve chorar, lavar a alma. Depois... Então – o rosto de Delfina se iluminou - nós pensaremos em adotar uma criança! Os orfanatos estão cheios delas! Vamos escolher a mais linda, o sexo que você quiser, a idade que você quiser! Veja! Que idéia! Ela será só sua!

- De olhos verdes?

- De olhos verdes!

- Você acha... Você acha que Arnaldo vai gostar de um nenê de olhos verdes? – perguntou, quase sorrindo.

Delfina compreendeu-a, em toda a sua fragilidade. Reviu-a menina, presa à barra de sua saia, seguindo suas ordens, dependendo totalmente de sua orientação. Reviu-a mocinha, indecisa, e recordou a mágoa que sofrera, ao ter que deixá-la e partir para Recife, com Roberto.

- “Olhe a Elvira! Não deixe que a magoem! Não permita que se enrabiche por qualquer um! Tome conta dela, Filó! Trate de acompanhá-la para todos os cantos! Não vá a bobinha se apaixonar por qualquer droga de boa lábia!” – Pois se apaixonara, se entregara em casamento com o maior saco-de-vento que surgira na paróquia e sofrera sem compreender o quanto! E cedera, sem saber porquê; e penara sem se revoltar; e passara pela tragédia sem aquilatá-la toda. Sua razão ficou toldada; apenas o enlevo, os jogos de amor e palavras rebuscadas mantiveram-se em seus ouvidos, em sua mente, em seu corpo.

Delfina fitou-a como a um monstro. Calada, continuou a segurar-lhe as mãos delicadas, percorreu seu rosto abatido e macerado pelo pranto, seguiu as voltas de seus cabelos desfeitos, a curva de seus lábios de trejeitos infantis, que ora pendiam, amuamos, ora tremiam em pequenos soluços. A idade marcara-lhe a face, mas estacionara naquelas pupilas, na expressão de seus olhos abertos, como de uma criança. Não se conscientizara da reviravolta do destino.

Delfina, trêmula e engasgada, considerou as palavras da irmã. Ela o queria de volta, mesmo. Pretendia revolver as cinzas, juntar os cacos de um casamento estraçalhado! Como ela dependia dele!

- Ele voltará, Elvira! Acredite, ele voltará!



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