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Contos-->Um Conto do Futebol: A Promessa, O Cartola e O Apito Moderno -- 05/02/2000 - 01:02 (Daniel Sampaio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A PROMESSA, O CARTOLA, E O APITO MODERNO


I

Eis que o futebol é mesmo o extrato da paixão dos brutos. Ali, podemos vê-los todos, alterados pelo álcool, pelo calor, pela violência de seus fracassos diários ou pela simples vontade de alienar-se da insipidez do mundo individual e entregar-se aos delírios da multidão. Para os que vão a um estádio, e mesmo para os que roem as unhas em frente à tevê, o futebol tem propriedades terapêuticas.

O episódio sobre o qual se detém essa narrativa diz respeito à terceira rodada do Campeonato Carioca do presente ano, mais precisamente ao jogo envolvendo as equipes do Cruz Malta e do Voltaço, realizado no estádio deste último. A lotação foi inevitável, as arquibancadas foram completamente tomadas. Em verdade, havia poucos torcedores legítimos do Voltaço, equipe inexpressiva que, no correr dos anos, oscilou entre a segunda e a primeira divisão do futebol carioca, jamais tendo conquistado um título de repercussão. O público era mesmo dividido entre os que torciam a favor e contra o Cruz Malta, segunda maior torcida do Estado, e time que vivia ótimo momento, repleto de jogadores considerados “de seleção”. As equipes entraram em campo no horário, às quinze horas de um domingo. Mas o sol chegou bem antes, quem sabe para aquecer este prelúdio.


II

Tolos são os que imaginam ser o jogo um quadro composto à luz de uma inspiração, de um talento com hora marcada para revelar-se. Bem sabem os pintores que, tão importante quanto o arremate genial de uma obra perfeita é ter dinheiro para comprar as tintas e pincéis. Sem isso, não há o que emoldurar-se.

No sábado que antecedeu o jogo, Romeu checou a correspondência e lá estava o envelope que tanto ansiava e, ao mesmo tempo, temia. No seu interior, a quantia avençada. Uma noite mal dormida seguiu-se e não pode olvidar as palavras, escritas em letra de fôrma no bilhete que acompanhava o dinheiro: “Boa Sorte”.


III

“Apita o jogo Romeu Araújo Poltrão!” – anunciou um dos repórteres de campo que cobriam o jogo para a tevê por assinatura. Romeu estava absorto, com a bola entre as mãos, parado, de pé, no círculo central do campo. Era jovem, trinta e um anos, aquela era sua oitava partida como profissional e a primeira pelo esquema. Estava nervoso. Embora houvesse, aparentemente, superado os dilemas morais que habitualmente instauram-se na consciência dos homens em situações como aquela, sentia-se então contrariado consigo mesmo. Um frio de vergonha passeava em sua barriga. Por um momento, pensou que fosse desmaiar. Quando o temor passou, imaginou que talvez fosse conveniente simular um desmaio e, mais tarde, devolver o dinheiro. Refutou a idéia e mitigou seu sofrimento invocando o argumento de que, se não o fizesse, outro faria. Só aumentou seu mal-estar, pois era triste imaginar que a corrupção fosse generalizada a ponto de nela se pensar como um problema reles, definido ao sabor das menores divagações. Afastou tudo aquilo ao ponderar que a função de juiz de futebol não era compatível com tais elucubrações filosóficas. Foi quando ouviu-se trilar o apito convocando os capitães das duas equipes para o sorteio do campo e da bola.


IV

O jogo começou. O gramado era ruim e a bola parecia acesa e insubordinada. Havia pés galanteadores, mas a sedução que eles outrora provocaram parecia aplacada pelos uniformes – Nike, Adidas, Reebok – que agora os apertavam e os faziam tão iguais entre si. Passados nove minutos, porém, a bola encontrou o carinho e o conforto de que tanto precisava. Autores da façanha eram os pés do garoto Edmário, dezenove anos, meia-esquerda do Voltaço, que pela primeira vez a tocava, iniciando ali um flerte sem hora para acabar.

Aos dezesseis minutos, quando o Cruz Malta parecia assentar seu domínio em campo, um contra-ataque do Voltaço fez com a bola fosse parar nos pés de Edmário. O garoto aplicou um drible sem nome no último zagueiro do Cruz Malta. Poderia ter tocado na saída do goleiro, seria trivial, simples e acertado. O garoto queria mais. Só não conseguiu porque teve suas pernas seguras pelo goleiro. Penalidade escandalosa. O juiz Romeu estava a poucos metros do lance.

Naquela fração de segundo, Romeu amaldiçoou o esquema tático do Cruz Malta, desdenhou de um dos craques “de seleção”, que havia perdido a bola no meio de campo e permitido o contra-ataque. Imaginou que talvez o melhor fosse dar um cartão amarelo ao garoto pela “simulação” e prosseguir com o jogo. Mas as câmeras de tevê possivelmente o denunciariam e os comentaristas especializados em arbitragem ficariam com o pé atrás em relação ao seu trabalho, desconfiança que poderia subtrair-lhe a chance de vir a ser, brevemente, conforme lhe fora prometido, um “aspirante ao quadro da FIFA”. Romeu marcou o pênalti e foi elogiado no rádio e na tevê. “Estava em cima do lance e não hesitou!” – foi o que mais disseram.

Secretamente, Romeu torceu para que o veterano atacante Biluca confirmasse sua sina de batedor displicente e jogasse pelos ares a chance. Biluca bateu mal, é verdade, fraco e no meio do gol. Pena que o goleiro tenha precipitado-se para o canto direito. A metade do estádio que torcia contra o Cruz de Malta explodiu numa euforia desmedida. Biluca exibiu uma camiseta em que homenageava um traficante de drogas seu amigo, que fora preso e morto pela polícia dias atrás. Havia um foto e a inscrição: “Do pó viemos. Ao pó voltaremos. Somos todos iguais.” Foi aplaudido até por alguns desavisados torcedores do Cruz Malta.

Romeu ia apitar o reinício da partida quando, em meio a algazarra da torcida, sentiu um estranho silêncio em torno de si. O corpo estremeceu, causando-lhe um frisson que, em outra situação, poderia até ser confundido com prazer. O suor que escorria de sua cabeça concentrou-se numa gota pesada sobre a testa, que escorreu até o olho direito. Romeu esfregou com força o olho, que começou a arder. Tão logo a visão recuperou a nitidez, ele enxergou nas cadeiras especiais a razão de seus temores. Eurico Viana, presidente de honra do Cruz Malta, cercado por seguranças, o observava. Era impossível ler o que poderia estar escrito naqueles olhos, mas era tão fácil, e talvez até mais sofrido, adivinhar. Romeu perdeu-se rapidamente e, ao recuperar a atenção para o jogo, viu ansiosos os jogadores do Cruz Malta. Apitou e a partida seguiu.

Era preciso que o Cruz Malta reagisse. Romeu marcava todas as faltas na intermediária e algumas perto da grande área. Exibia convicção e poucos o contestavam. Coibia com severidade e cartões amarelos a cera do Voltaço. Era questão de tempo. Nada de marcar penalidades ou expulsar jogadores. Romeu era profissional, discreto, e não queria confusão. Porém, manter o equilíbrio com o Viana tão perto não era tarefa das mais fáceis.

As chances para que o Cruz Malta empatasse a partida foram sucessivamente desperdiçadas. Seus craques pareciam tanto inspirados quanto infelizes nas conclusões. Fim do primeiro tempo.


V

No intervalo, um repórter de rádio, após localizar Eurico Viana nas cadeiras especiais, aproximou-se para entrevistá-lo, mas foi repelido com empurrões pelos seguranças. Um início de tumulto ameaçou instaurar-se e foram ouvidos muitos palavrões. Eurico pouco se moveu. Permanecia sentado, indiferente a tudo o que circundava sua pessoa. Os boatos sobre corrupção não o constrangiam. Ele dizia abertamente que era capaz de tudo por amor ao Cruz Malta. A receita vinha tendo sucesso. Nos últimos nove anos, foram cinco títulos estaduais, dois nacionais e um sul-americano. Em razão disso, toda sua truculência, falta de escrúpulos e envolvimento em diversos escândalos do meio esportivo pareciam, ao invés de diminuí-lo, fazê-lo melhor aos olhos do público e de grande parte da mídia. “Ah, se ele torcesse para o meu time!” – suspiravam alguns fãs de outras equipes. “Digam o que quiserem dele, mas é um vencedor” – praguejavam os admiradores confessos. “Defende os interesses do futebol carioca” – afirmou certa feita um presidente da federação local.

Naquele momento, precisamente, tudo o que interessava a Eurico era que o Cruz Malta revertesse o placar. Tinha atenção especial para o juiz que, no seu conceito, vinha bem, ainda que pudesse melhorar. No entanto, até ele reconhecia que o pênalti havia sido evidente demais para não ser marcado e os olhos que Romeu imaginou temíveis transpareciam então cansaço e dispersão.


VI

Edmário foi eleito o melhor do primeiro tempo por todas as rádios que ainda reservam espaço para esse tipo de votação. No vestiário, contudo, foi duramente repreendido por seu técnico em razão da firula que originou o pênalti. “Devia ter chutado antes. Tocasse por cima ... E o gol era nosso” – argumentou o treinador. Edmário sorriu com subserviência irônica. O treinador notou e pensou em puni-lo com a substituição. Anteviu, contudo, a eventual derrota da equipe, os comentários maldosos que o acusariam de cercear o talento e a demissão superveniente sem o pagamento da multa rescisória. Olhou para o garoto, sentiu-se como um adestrador de cães, e gritou então com entusiasmo repentino e severidade comedida: “Vai com tudo, garoto! Quero igual no segundo tempo. Igual!”


VII

Romeu voltou para o segundo tempo sabendo que o Cruz Malta dominaria as ações. “Na pior das hipóteses, marco um pênalti. Já dei um para o outro lado ... Não pega mal” –considerou.

Foi um início atípico. O Voltaço partiu para cima querendo definir o embate e Edmário parecia impossível. Nessa toada, o segundo tempo seguiu até os vinte e um minutos. Foi quando Edmário recebeu uma bola em profundidade pela esquerda, venceu dois zagueiros e, dessa vez, preferiu ouvir os conselhos do treinador e tocou na saída do goleiro. O toque pessoal, contudo, ficou por conta do efeito dado na bola, que descreveu uma trajetória de dentro para fora, o que fez com que ela se chocasse com a trave. Na sobra, Biluca e um zagueiro enroscaram-se na área, sendo que a bola tocou na canela do último e correu desajeitada para beijar as redes. Biluca mais uma vez iniciou sua corrida no rumo da torcida e preparava-se para exibir uma nova camiseta quando ouviu um apito reincidente no centro da área. O juiz Romeu havia marcado empurrão de Biluca sobre o zagueiro do Cruz Malta. Inconformado, Biluca cedeu ao rompante emocional e correu em direção ao juiz vociferando meia dúzia de palavrões. Romeu ouviu cada um deles atônito, corroído pelo sensação de culpa. Embora houvesse ocorrido o choque entre os jogadores, ele não havia visto qualquer falta de Biluca. Marcou apenas por ato reflexo, salvaguardando o interesse que se escondia na sua arbitragem. Os palavrões de Biluca foram ouvidos pelos repórteres postados atrás do gol e, percebendo isso, Romeu sacou o cartão amarelo. Inconformado, Biluca disse mais alguns e foi contemplado, em outro ato reflexo, com o cartão vermelho. Vários jogadores do Voltaço correram em direção ao juiz, que foi rápido em chamar o policiamento. Entre pastores alemães, sopapos, água gelada e entrevistas, foram acalmadas as coisas e o jogo, mais uma vez, reiniciou-se.

Curioso foi que as tevês e rádios pouco divergiram quanto à existência ou não da falta de Biluca sobre o zagueiro. A maioria quase esmagadora dos comentaristas inclinou-se no sentido de prestigiar o árbitro, alegando que houve falta, não no momento em que a bola tocou no zagueiro e entrou, mas um pouco antes disso, no “nascedouro” da jogada. Complementaram observando a falta de segurança no campo do Voltaço e as dificuldades sofridas por um árbitro de futebol em condições como aquela. Eis a mídia compassiva e meditabunda.


VII

Aos vinte e nove minutos, o Cruz Malta empatou numa cabeçada seguinte a um escanteio. Os jogadores de ambas as equipes iniciaram então um empurra-empurra dentro do gol ao divergirem sobre quem levaria a bola até o meio do campo. Romeu intrometeu-se com coragem e distribuiu mais dois cartões amarelos, serenando os ânimos.

Aos trinta e quatro minutos, Edmário driblou dois jogadores do Cruz Malta na intermediária do adversário e recebeu uma entrada duríssima por trás. A expulsão do zagueiro era inevitável. No entanto, Romeu, ao dar-se conta disso, pareceu relutar em correr na direção do zagueiro. A demora foi decisiva, um outro jogador do Voltaço não demonstrou tanta paciência e, tomando as dores de Edmário, deu uma cabeçada no agressor inicial. A confusão mais uma vez estava formada. Romeu agiu com energia e expulsou tanto o zagueiro como o jogador do Voltaço. Edmário teve rompidos os ligamentos do joelho e só voltará a jogar, conforme previsões otimistas, daqui a sete meses. Se não repetir atuações como a presente, ficará legado ao status de promessa que não vingou no futebol e permanecerá imerso na baixa renda, com dentes ruins e primeiro grau incompleto. Sorrirá feio da própria sorte. Fim tão triste quanto corriqueiro.


VIII

Aos quarenta e um minutos, o Cruz Malta fez o segundo gol após uma cobrança de falta lateral, em que a bola quicou e passou por todos os jogadores, iludindo o goleiro do Voltaço. Romeu suspirou aliviado. Ainda se deu ao luxo de, nos acréscimos da partida, não marcar um pênalti que existiu a favor do Cruz Malta. Foi bastante elogiado pela mídia e recebeu nota nove de um dos principais jornais do país, onde constava o seguinte comentário: “notável poder de concentração, entregou-se ao jogo do início ao fim e não cedeu à violência das duas equipes. Sóbrio e simples. É tudo o que se quer”. Seu nome era quase certo para um dos clássicos decisivos daquele turno, previsão que mostrou-se correta.

Sentiu, ao final daquela partida, certo constrangimento apenas quando dois jogadores do Voltaço vieram apertar-lhe a mão e parabenizá-lo pelo jogo. “Perder faz parte” – disse um deles, com a expressão tranqüila e conformada. Os auxiliares, que Romeu nunca soube se faziam ou não parte do esquema, também renderam-lhe homenagens pelos dotes técnicos e disciplinares exibidos. “Não pode deixar que eles cresçam para cima de você” – alertou um deles, para depois completar: “Mas você esteve perfeito!”.


daniel sampaio, em 30.01.2000
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