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Contos-->Anita -- 08/11/2003 - 18:07 (Dulce Baptista) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Anita
Dulce Baptista

Uma bola de creme, outra de pistache, mais uma de creme. Por cima, uma boa colherada de calda de chocolate e umas castanhas picadas para completar. Taça na mão,um copo d água mineral bem gelada, confere no caixa, paga, recebe o troco. Concluída essa parte do ritual, Anita se encaminha para uma das poucas mesas vagas que encontra. A tarde é quente, ensolarada, e a sorveteria fatura alto no finalzinho das férias escolares.

São cerca de quatro horas e há tempo para se ficar parada, saboreando, observando, forçando uma trégua no curso das preocupações. Sim, porque Anita não é mais estudante e não está propriamente de férias. Está simplesmente desempregada; eis o drama. O mundo, segundo lhe parece, não quer fazer jus à sua competência. Enquanto isso, um sorvetinho, de vez em quando, serve para acalmar a ansiedade que se torna cada vez mais insistente à medida que o tempo passa. Engordará? Talvez, mas esse não é um problema imediato...

Professora por formação, abandonara o ofício tão logo percebeu que teria contas a pagar na vida, tais como aluguel, telefone e outras banalidades que costumam transformar o cidadão em escravo de Jó. Largou o magistério pela carreira bancária e não se arrependeu nunca da troca, tendo em vista vantagens como remuneração decente, assistência médica, até financiamento de casa própria. O banco, como se dizia então, era o mesmo que mãe. Dez anos se passaram.

Não era pessoa acomodada. Nos primeiros boatos de que iriam "reduzir os quadros" ou "enxugar a máquina",pôs-se a estudar para todos os concursos que surgiam na cidade. Aprovada finalmente para o Tribunal de Contas, Anita sonha em ser chamada, e enquanto não é, o tempo passa, voa, e o diabo do concurso está prestes a perder a validade.

À sua volta, percebe um pessoal descontraído, falante, tudo garotada, algumas mulheres, pequenos engraxates circulando entre as mesas. Deixa-se fazer parte desse cenário por um bom tempo. O marido, aposentado da Câmara dos Deputados, e um casal de filhos adolescentes, aguardam-na em casa. Já é quase noite.

Uma semana depois, Anita analisa um pouco sem querer, o porquê de preferir estar sozinha com aquele sorvete na frente. Dessa vez, é uma mistura de crocante com marshmallow, calda de chocolate - indispensável - e biscoito palito. Trata-se de uma espécie de compensação solitária diante das vicissitudes. E não há porque culpar-se. Alberto, o marido, adora ser síndico e com isso se entretem em horas a fio de compenetrada prosa com o porteiro e os garagistas, em prol da segurança e da limpeza do prédio onde moram. Os meninos, como é natural, gastam o resto das férias em festinhas e piscinas.

Quanto a ela, sente por vezes a falta de uma grande amiga com quem possa trocar idéias, da irmã, talvez, que nunca teve. Suas conhecidas estão quase todas empregadas e quando não, os afazeres domésticos absorvem tanto que não há tempo para mais nada. No final das contas, parece que só ela, Anita, se encontra desocupada, entregue a si mesma em pleno dia útil. Lembra-se de Flavia, uma antiga vizinha que prosperou como dona de padaria; de Nilza, funcionária pública; de Carla, que se tornara uma executiva de prestígio; de Lilian, que vivia metida em política. Todas elas estarão a anos-luz de distância no exato momento em que sente o conteúdo gelado de uma colher de plástico na boca.

O jornal publica pela milésima vez a conversa de que os concursados serão chamados. Enquanto isso, lá pela sexta semana desde a primeira notícia, terminam as férias escolares e a pirralhada cede lugar a uma certa juventude despreocupada, que juntamente com os comerciantes das redondezas continuam a lotar as mesas da sorveteria. Gente que costuma ter metade do dia disponível para bater perna acaba sempre parando por ali. É que aquela é uma entrequadra comercial das mais movimentadas, por conta da variedade de opções que oferece em termos de compras: de remédios a sapatos, roupa de butique e livros, além, é claro, dos comes e bebes.

Senhoras e mocinhas circulam tranqüilas, detendo-se nas vitrines mais atraentes, enquanto o tempo mansamente transcorre, parecendo a Anita que pára mesmo, como que numa estranha relutância em dar seqüência aos acontecimentos. Anita se preocupa com os acontecimentos que terá que enfrentar, dos mais imediatos aos puramente hipotéticos. Dentre os primeiros, incluem-se a compra de uma vassoura nova para a cozinha e de pasta de dente para a família. Tem ainda a viagem de Alberto a Minas para ver o pai doente e a reunião no colégio dos meninos. Marcelo, o mais velho, fora repreendido ao conversar na aula de matemática e respondera com maus modos. Cabe a ela pôr panos quentes na situação. Dentre os acontecimentos hipotéticos, estão a reforma do apartamento, um prêmio na loteria, a chamada para o Tribunal - ah, o maldito concurso...

Mas Anita sempre tenta ser prática, não ocupando a cabeça com tudo ao mesmo tempo, e dessa forma vai levando as coisas. Como não é de ferro, presenteia-se com um pequeno interregno, e é então que a angústia de ver o tempo voar é substituída pela já sentida sensação de inércia. Pelo menos enquanto degusta mais um daqueles memoráveis sorvetes de morango com creme chantilly e biscoito champagne. Na mesa ao lado, chama-lhe a atenção um casalzinho que se dedica ao diálogo mudo de namorados apaixonados. Indiferentes a tudo e todos, os dois abraçam-se e beijam-se numa confusão de mãos, cabelos e bocas, que parece não teminar. Sem saber por quê, Anita procura gravar essas imagens na memória. Entre uma colherada e outra, distrai-se, como se nada existisse a não ser o instante presente.

O chamado à realidade é por conta do moleque maltrapilho que lhe pede uns trocados para o ônibus. Cata as moedas que consegue, não sem antes perguntar onde o menino mora. "Em Samambaia", responde. Poderia ser em Santa Maria ou Santo Antonio - é tudo igualmente longe, e ainda assim parece estranhamente normal que seja tão longe. Lá se vai o garoto.

Março chega ao fim e com isso, mais um verão de muito calor. O tempo fica tão abafado que de repente o céu carregado, ameaçador, parece querer desabar. Anita, como todo mundo, transpira, os sentidos em alerta pressentem raios e trovões.
******

Na última sexta-feira do mês, Anita iniciava seu périplo vespertino. Banca de jornais, açougue, farmácia, uma paradinha na igreja para rezar um padre-nosso. Embora não fosse freqüentadora assídua de missa, algo lhe dizia que era preciso rezar de vez em quando. Pediu a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que velasse pela saúde do sogro, pelas notas do Marcelo na escola, para que Adriana fosse sempre uma boa menina, que Alberto continuasse bem ocupadinho como síndico, e finalmente para que um emprego voltasse a surgir no horizonte. Nem que fosse para ganhar pouco, meu Deus, contanto que desse para comprar os alfinetes e ir ao cinema de vez em quando por conta própria.

A lembrança de um ambiente de trabalho, onde a competição coexistia com possibilidades concretas de ascensão em meio a amizades e intrigas, e sobretudo, a lembrança de um bom salário traziam-lhe ao pensamento um cotidiano de luta, de movimento - de bravura, até. O que foi se tornando claro ali na silenciosa penumbra da igreja, é que não sobrevivera, não conseguira permanecer entre os vitoriosos. Correu para a sorveteria.

A noite cai mais cedo e Anita chega em casa com seus pacotes. É carne, remédio para gripe - Alberto voltara de Minas cheio de tosse e nariz entupido - xampus e sabonetes, um livrinho de auto-ajuda, desses que prometem fazer o cidadão sair do próprio túmulo aos pulos. As mãos cheias dificultam a abertura da caixa do correio. Mesmo assim, com algum malabarismo, Anita consegue retirar contas, revistas, papéis diversos. Os poucos dias de ausência do Alberto haviam sido suficientes para que se acumulasse a correspondência, já que ela raramente mexia na caixa. No meio de tudo isso, vislumbrou um pequeno envelope em seu nome. "Propaganda de butique", foi o que ocorreu. Ao verificar o remetente, o coração pulou: Tribunal de Contas da União. Chegando em casa, larga tudo na primeira cadeira que vê e lê incrédula sua convocação para o cargo de assistente técnica; o concurso expiraria dali a três dias.

Alberto dorme, com uma ponta de febre, enquanto os meninos assistem TV. Tudo está normal, ou quase. Anita conta a boa nova aos filhos e fica feliz com a alegria deles. Quando o pai ficar bom irão todos comemorar na melhor pizzaria de Brasília. Em caráter imediato porém, os meninos contentam-se com um resto de sorvete de flocos que encontraram na geladeira, e ao qual, a mãe, por motivos que só ela deve saber, nem pensa em aderir.

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