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Contos-->Louca vida -- 14/11/2003 - 22:36 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O ruído proporcionado por aquele despertador era absolutamente cruel e inadmissível. A situação era insólita demais. Era impossível se ter um dia bom acordando com aquele barulho, mas também era impossível para Tomás acordar com qualquer outro tipo de campainha, música ou barulho.

O mais impressionante era que Mara não acordava com aquela algazarra, nunca.

Depois de extenuante negociação com o despertador, Tomás decidiu por desligá-lo em definitivo, evitando que continuassem os alarmes a cada nove minutos, como ocorria já há trinta e seis minutos.
Levantou-se, sem ser sequer notado por Mara, que dormia um sono invejável, que invariavelmente durava até, no mínimo, nove horas da manhã, menos de meia hora antes do expediente na escola onde trabalhava.

Tomás, como de costume, dirigiu-se de olhos fechados até o banheiro, e não abriu-os até seu rosto encontrar a água gelada da pia. A higiene matinal de Tomás era simples, rápida e objetiva. Lavava o rosto, dia sim dia não fazia displicentemente a barba, escovava os dentes e, vez por outra, jogava um pouco d’água nos cabelos a fim de por alguns fios rebeldes em seus devidos lugares.
O café da manhã variava de acordo com a disponibilidade encontrada na geladeira, naquele dia foi um pedaço de pizza de muzzarela e um copo de suco de laranja, ambos remanescentes de um jantar da semana passada, que aliás rendera os três últimos cafés da manhã de Tomás. Mara, adepta de alimentação mais saudável e regrada, tomava seu desjejum diariamente na escola.

Beijou o rosto de Mara sem ser notado, quanto menos correspondido, e foi trabalhar.
O caminho para o consultório era breve e agradável, cumprido a bordo de seu carro, uma caminhonete Ford, modelo 1964, que ele havia reformado pessoalmente em finais da década de oitenta. Era uma espécie de xodó seu, azul calcinha, com as rodas cromadas, que impossibilitavam o carro de ser classificado de discreto.

Gostava de chegar cedo ao consultório, antes das sete e meia da manhã. Organizava sua agenda e preparava a programação do dia. Abria seus e-mails, respondia alguns, anotava em pequenos bilhetes informações indispensáveis a respeito de alguns pacientes que atenderia durante o dia e meditava. Todo santo dia, ele meditava por quinze minutos antes de começar a trabalhar.
Naquele dia fez questão de manter sua rotina. Como chegara um pouco mais cedo que o habitual, dera-se ao luxo de meditar por vinte e cinco minutos, pois o dia parecia que seria pesado.

Dora, sua secretária-assistente-contadora-analista-amiga-confidente, chegou pontualmente as oito e quinze, horário em que chegava todos os dias, numa pontualidade de tal maneira freqüente, que chegava a irritar Tomás vez por outra. Dora é uma pessoa extremamente devotada a Tomás. Acredita que seu patrão é o sujeito mais abnegado do mundo, e acha que não há nada mais nobre do que o trabalho realizado por ele.

Não há no consultório de Tomás uma função específica para Dora, ela simplesmente tem que estar lá para o que precisar, e ela não falha. São mais de sete anos trabalhando juntos, desde a abertura do consultório, quando Tomás era um psiquiatra recém-formado, na flor de seus vinte e sete anos, e Dora era uma menor de idade que buscava uma forma de se ver livre da casa do pai violento e da mãe alcoólatra.

- Bom dia, Doutor!
- Bom dia, Dora. Tudo bem?
- Tudo ótimo. Depois da noite que tive ontem, vai ser difícil estragarem meu dia.
- Que beleza, hein! Me recuso a pedir detalhes.
- Ainda bem.

O primeiro paciente viria às oito e meia. Tratava-se de uma senhora, que vivia dividida entre o amor sincero e verdadeiro que sentia por seu marido e uma incontrolável compulsão pelo adultério.
Era uma mulher muito bem feita de corpo, com uma pose de grã-fina e uma maneira de falar que lhe lembrava uma tia de sua mãe, mas sua compulsão era algo que ela não pretendia abandonar. Procurava Tomás apenas para sentir que fazia algo contra aquele desejo pecador, que lutava contra aquilo.
Tomás nada poderia fazer para ajudá-la, e isso já havia sido dito à tal senhora dezenas de vezes, mas ela recusava-se a abandonar as seções. A Tomás ficava o conforto de saber que naquelas cinco horas semanais ela não faria nenhum ato desabonador à sua qualidade de esposa. Pelo menos nesse aspecto ele contribuía para o bem do relacionamento do casal.

Logo após, às nove e meia, era a vez de Yuri, um jovem advogado que elegera Tomás seu confidente, seu melhor amigo. E Tomás gostava muito do trabalho que vinha sendo feito com Yuri. Eram visíveis os resultados da terapia com o rapaz nos dois anos e meio em que estavam juntos. A série de problemas que Yuri via em sua vida, aos poucos transformaram-se em situações absolutamente convivíveis para o moço. Era um enorme prazer ouvir Yuri falar sobre seu dia-a-dia e vê-lo encarando de maneira positiva problemas com os quais não sabia antes como lidar.

Yuri se foi e havia meia hora para que Tomás descansasse. Na verdade descanso era o nome que ele dava para o ato de sentar-se numa mesa de canto e ler algum livro, freneticamente, sem tirar os olhos das páginas nem sequer por um instante, até a campainha ser acionada por Dora, avisando que o próximo paciente chegara.

Mais de meia hora se passou e a campainha não tocava. Tomás, percebendo o atraso, quase inédito no caso do paciente que ele aguardava, resolveu ir até a recepção e pedir à Dora que telefonasse ao paciente e verificasse se ele viria mesmo. Já fazia planos de se deslocar até uma loja de discos da redondeza caso o Augusto não viesse à sessão.

A cena encontrada por Tomás custou-lhe a crer. Dora estava encostada em uma das paredes, ao lado do bebedouro, braços abertos, rosto escancarando um sentimento de pavor. À sua frente, poucos metros, um senhor, o tal do Augusto, vestido impecavelmente, de terno de três botões, gravata e lenço combinando com a mesma, tendo em uma das mãos um pequeno banco de madeira, o qual ele segurava por um dos pés, e na outra mão seu cinto, preto e de couro, seguro pela fivela. Mexia a mão que segurava o banquinho de forma a parecer que empurrava Dora contra a parede, e a outra mão fazia com que o cinto tentasse estalar como um chicote, coisa que sua natureza de cinto o impedia de fazer.

- Guto, o que está acontecendo aqui? Deixe a Dora em paz.
- Que bom que você chegou Tomás. Essa mulher não é mulher, é o Cão. É o Capeta em forma de mulher.
- Pare com isso, Guto. Ela é mulher, o nome dela é Dora e eu e você a conhecemos muito bem. Agora, solte o banquinho e ponha esse cinto no lugar dele, a Dora está trabalhando e você a está impedindo de fazer o trabalho dela. Vou acabar demitindo-a e a culpa será toda sua.
- Deixa de ser ingênuo Tomás. Tá na cara que ela está tomada pelo Rabudo. Isso aqui é o Mal de Saias.
- Guto, chega disso. A Dora é nossa amiga faz tempo. E nem de saia ela está. Você não está vendo?
- Você não entende nada. Ninguém entende nada.
- Prometo a você que eu vou entender tudo o que você tem pra dizer. Mas vamos lá pra dentro e você me conta o que está se passando.
- Tá bom, mas você tem que prometer que vai prender esse bicho do mal.
- Como assim, prender?
- Vai enjaular essa amaldiçoada.
- Tá, tá. Vou trancar ela no banheiro. A porta é especial e ninguém consegue fugir de lá. Agora, solte o banquinho e o cinto, senão eu não mexo um dedo.

Augusto soltou o banquinho delicadamente no chão, e passou o cinto pela cintura, recompondo-se e aliviando a pobre moça, que ainda não aprendera a lidar adequadamente com essas situações.
Tomás encaminhou-a para o pequeno lavabo da recepção e fingiu trancar a porta. Sussurrou a Dora que fosse tomar um pouco de ar e voltasse após o almoço, quando seu paciente, caçador de vampiros, já deveria ter ido para casa.

Poucos minutos depois, Augusto estava sentado no pufe branco, no centro da sala de Tomás, calmamente contando sobre seus últimos dias, sobre o que tem feito, sobre seus negócios. Não lembrava nem de longe aquela figura dantesca de “domador de secretárias” que Tomás encontrara na recepção instantes antes.

Tomás ofereceu-lhe um café, oferta que foi prontamente aceita por Augusto. Foi até o banheiro, onde, por uma questão meio de preguiça, meio de falta de espaço com tomada, ficava sua cafeteira.
Em questão de dois minutos o café expresso estava pronto, na xícara. Tomás entrou novamente na sala e suas retinas refletiram nova cena lisérgica. Augusto empunhava novamente o cinto e, sem o paletó e a camisa, ameaçava Tomás com um banquinho menor ainda que o da recepção, que Tomás usava como descanso para o telefone.

- Nem vem capeta. Nem vem que você não me engana. Aqui não, coisa ruim. Aqui não tem pro cê, não.
- Augusto, sou eu, Tomás, seu amigo, seu médico. Eu não vou fazer nada pra te machucar, amigão.
- Amigão?! Amigão o cacete! Eu sei bem reconhecer meus amigos. Fora daqui!
- Como fora, Augusto? Aqui é o meu consultório, eu trabalho aqui.

Tomás testou sua agilidade ao desviar de um telefone sem-fio voador que, por pouco, não atingiu sua testa, indo espatifar-se dentro banheiro, provavelmente próximo à cafeteira do doutor.

- Pare com isso Augusto. O que você quer que eu faça para te provar que não estou possuído pelo demônio? Isso não tem cabimento!
- A fala de Lúcifer me é inconfundível. A mim você não enganará. Não à mim.

Tomás fora pego completamente de surpresa por aquele surto de seu paciente. Augusto era um dos mais antigos freqüentadores do consultório. Devia ter lá seus quarenta e poucos anos e nunca demonstrara nenhum tipo de agressividade. Falava muito de seu dia-a-dia, de sua família, de seus colegas de trabalho. Era uma espécie de relações públicas de uma multinacional fabricante de produtos de higiene, trabalhava muito e reclamava do pouco tempo que tinha para desfrutar das coisas boas da vida.
Agora estava ali, ameaçando Tomás com um banquinho e um cinto, com as calças quase caindo, deixando parte da bunda branca à mostra, tornando a cena ainda mais lamentável.
Numa rápida ponderação Tomás chegou à conclusão de que uma cintada e um golpe com aquele banquinho, que lhe fora dado por uma irmã de sua mãe, não poderiam matá-lo. No máximo algumas escoriações. Partiu para cima do sujeito.

A ação foi rápida, em menos de dois segundos Tomás estava de volta à posição em que se encontrava inicialmente, de pé, próximo à porta do banheiro. Seu cotovelo doía demais devido ao golpe com o banquinho, e seu rosto ardia, ainda menos do que viria a arder depois, graças a uma cintada certeira, coisa de entendido, que lhe atingira uniformemente o queixo, a boca, o nariz e os olhos, deixando-lhe como uma marca vermelha em forma de faixa, atravessando-lhe o rosto, do lado esquerdo do queixo até a têmpora direita.

- Quem tem o Senhor, nada teme! Venha novamente e sentirás a força da mão de Deus.

Não havia nada mais que pudesse ser feito por ele, ali, naquele momento. Procurou uma saída para aquela situação inédita em sua carreira, em sua vida.
Já deparara-se com surtos repentinos de outros pacientes, mas eram situações sem violência alguma, muitas vezes até previsíveis. Mas aquela situação demandava uma ação rápida e eficiente. Confrontar Augusto seria besteira e arriscado, gritar por socorro geraria uma situação constrangedora para ambos, e não lhe traria grandes benefícios com o pessoal do condomínio, que já implicara com alguns condôminos barulhentos no passado.

Tomás olhou ao redor, procurou analisar detalhadamente o espaço de seu consultório e buscou criar possibilidades para uma saída definitiva.
Augusto permanecia calado, ofegante e ostentando um sorriso desafiador, que apavorava Tomás. O que ele estaria tramando. Sim, porque aquele olhar somado àquele sorriso deixavam claro que, por trás daquele cérebro insandescido e perturbado, havia alguma maquinação que não lhe faria bem, aliás não faria bem para ninguém. Costuma-se dizer que o único que lucra com a loucura dos outros é o psiquiatra, e nesse caso Tomás seria incapaz de vislumbrar algum ganho, de qualquer ordem, advindo daquela situação.

Ocorreu-lhe uma alternativa viável. Correr até o banheiro, que estava bem às suas costas e procurar pelo telefone. Havia poucas, mas reais, chances de que o aparelho atirado pelo lunático estivesse apto a realizar ligações. Pelo menos uma, se Deus ouvisse Tomás.

Bateu a porta com suas costas e, antes que pudesse olhar ao redor do recinto e procurar o aparelho, as batidas na porta começaram, ritmadas, sem muita força e constantes, acompanhadas de uma respiração apressada, aterrorizante para aquele momento. Começou a lembrar-se de “O Iluminado”, e por um segundo, festejou que não fosse Jack Nicholson do outro lado da porta. Seu problema afinal não era tão grande. Achou o aparelho, logo abaixo da pia, meio desmontado, mas aparentemente sem nada quebrado.
Montou o aparelho, e já transtornado pela insistência das batidas na porta, começou a discar. Sorriu ao ver que o aparelho funcionava.

Menos de vinte minutos passaram-se até que chegasse o pessoal do resgate. Augusto defendeu-se com as armas que tinha, e não deu muito trabalho para ser imobilizado. Tomás saiu do banheiro e procurou seu paciente para acalmá-lo. Deparou-se com um homem de meia idade, deitado sobre uma maca, amarrado, com o mesmo sorriso nos lábios e uma frase que parecia estar pronta à minutos.

- Essa você levou, sacripanta, mas sua hora vai chegar. Os servos do Senhor serão redimidos pela volta do Cristo.

Nunca imaginara que seria posto do outro lado com relação a Deus. Não era sequer religioso, mas respeitava e nutria um temor sincero a Deus, o que lhe gerara esse certo desconforto em ser tratado, mesmo que por alguém naquela situação, como algum tipo de anticristo.

- Ei, parem aí. Naquele banheiro ele escondeu uma das suas. Abram aquela porta e verão do que eu estava falando. Ela está lá, e se eles acasalarem nascerá mais um. O mal não pode procriar, poderá significar o início do apocalipse.

Pronto, agora havia uma citação de certo modo sexual com referência a ele e Dora. Era o que faltava, jogar no time do capeta e manter relações sexuais com a Dora.

- Levem-no rápido. Irei ao hospital em minutos. Estarei lá quando vocês chegarem.

Por sorte Dora estava fora, provavelmente tomando um café, como ele sugerira, ou redigindo sua carta de demissão, como ele faria em seu lugar. Isso a poupou de ouvir as sugestões do delirante.

Escreveu um bilhete para Dora, comunicando onde estaria e dizendo que voltaria após o almoço. Disse que estaria pronto para a consulta das duas, que a agenda mostrava ser o Natalício, um sujeito mais amigo que paciente, remanescente da enorme turma de amigos que seu falecido pai mantinha no clube. Comemorou o fato de apenas ter essa consulta pela tarde, poderia chegar cedo em casa e fazer algo relaxante.

Vinte para as duas. Dora estava ao telefone quando o Doutor entrou sinalizando a ela que não desligasse.
- Está tudo bem, o cara vai ficar bem, foi um remédio que ele tomou. Automedicação! Se não os mata, pode me deixar rico.

Riu da própria piadinha, e orgulhou-se do improviso.

- Vou relaxar até a chegada do Natalício. Me avise, tá.

Sua sala de consultas era muito agradável, aconchegante. Uma grande poltrona de couro ficava bem no fundo, próxima à janela, esse era o seu lugar cativo. Os pacientes tinham liberdade para escolher por qualquer outra acomodação na sala. O tradicional e folclórico divã ficava bem no meio da sala, encostado à parede. Do lado oposto ficava um pequeno sofá de dois lugares e uma poltrona, uma bem parecida com a de Tomás, além de um pufe branco, meio sujo. Essas eram as opções que seus pacientes tinham para encontrar um pouco de conforto nos momentos que ali passavam. A decoração não obedecia a nenhum estilo específico, nem mesmo ao seu próprio. Fora tanta gente que influenciara na decoração daquela sala, que ela poderia ser uma espécie de quartel general da falta de estilo. Um quadro pintado por ele mesmo, numa tentativa frustrada de encontrar um hobby artístico, ornava a parede logo ao lado da porta. Era um quadro medonho, mas, costumava brincar com seus amigos que valeria uma fortuna em duzentos anos, por ser o único Tomás Marquello do mercado. Um samovar imenso, de origem esquecida, estava logo abaixo do quadro, também ao lado da porta. Várias fotos artísticas, pôsteres comprados por sua mãe para seu quarto na época em que morava com seus pais, além de um pôster com gravura de Miró e outro com um Picasso, davam um toque intelectual ao lugar. Livros se esparramavam por algumas prateleiras de um móvel de madeira, herdado de sua avó, que ainda guardava um aparelho de televisão e um aparelho de som, usados raramente. O tapete marrom-avermelhado, que ganhara de seu sogro por ocasião de seu casamento, cobria quase toda a sala, e embora fosse para ser um “presente de grego”, era bem resistente e felpudo, o que tornava o ambiente mais aconchegante. Não havia plantas, apenas um vaso com flores, que Dora trazia semanalmente, dando seu toque àquela sala.

Sentou-se na poltrona e curtiu o silêncio que preenchia aquela sala. Sentia seu corpo descansar. Chegava a ser rara aquela sensação de descanso. Aquilo, sim, era relaxamento, sentia os músculos de sua perna amolecerem, seus braços jaziam sobre sua cintura, seus pés não se moviam. Chegava a um estado absolutamente zen, podia-se dizer que ele dormia acordado, quando ouviu, melhor, sentiu a campainha tocar. Sentiu um pontada em seus tímpanos, o que lhe fez retesar todos os músculos do corpo e pôr-se em pé. Chegou a imaginar que Augusto pudesse ter voltado e promoveria um episódio bíblico em seu consultório.

A campainha tocou, mas não havia chegado o próximo paciente, ainda. Dora queria falar com o doutor, algo que não poderia esperar.

- Tomás, desculpe-me. Mil perdões, doutor, mas eu fiz uma tremenda cagada na sua agenda de hoje. Eu não sei onde estava com a cabeça, deve ter sido esse encontro de ontem. Eu não parei de pensar nisso durante os últimos dias, e ...
- Fala logo, mulher de Deus. O que foi?
- Eu errei feio no agendamento dos pacientes. A próxima consulta não é o Seu Natalício.
- Ah não? Quem é?
- É aquele paciente que veio do Doutor Jânio. É a primeira consulta dele. O tal que tem fixação nas coisas e quer comprar tudo quanto é cacareco que vê pela frente.
- Meu Deus! E eu não preparei nada. Quanto tempo tenho até ele chegar?
- Dez minutos. Me desculpe, Tomás, por favor me perdoe.
- E agora? Deixe-me pensar por alguns minutos. Vou bolar alguma coisa para fazer com ele. Não se preocupe, isso acontece. Na maioria das vezes comigo, mas eu acredito que aconteça com outros, também.

Tomás sentou-se na poltrona preta, bem no fundo da sala e pôs-se a pensar.
O paciente em questão havia sido transferido para ele pelo Doutor Jânio, amigo de seu pai, uma sumidade entre os psiquiatras locais, porém estava se aposentando e não tinha mais condições de atender a casos que demandavam tratamentos longos e árduos. E esse era um caso assim.
Marcel era dois anos mais velho que Tomás, advogado com grande projeção no início de carreira, licenciara-se havia meses para tratar de seu problema. Tinha uma compulsão por adquirir coisas, as mais diversas. E essa compulsão surgia a qualquer momento, não obedecendo a nada em específico, sem hora pra vir ou para ir.
Voluntariamente ele havia procurado ajuda na clínica do Doutor Jânio, mas o trabalho prometia ser longo e desgastante para o velho doutor, que passou o caso para Tomás, jovem, mas com carreira promissora no ver de Doutor Jânio. Tomás fazia parte de uma facção em seu meio que era absolutamente contra a internação da maioria dos casos psiquiátricos como principal meio de cura, ou tratamento. “Hospício é museu de loucos. Ninguém sai de um melhor do que entrou”, dizia ele a quem quisesse ouvir.

A campainha soou. Desta vez, as vozes denunciavam a presença do paciente na recepção.
Tomás sempre sentia uma certa curiosidade ao abrir a porta para uma primeira consulta. Quem estaria do outro lado? Será que era alguém que ele reconheceria de vista? Será que era alguém que ele simpatizaria de primeira? Seria alguém visivelmente perturbado? Algum ex-colega de colégio, faculdade, clube? Nunca ocorrera nenhum caso desses, mas um dia haveria de acontecer, com quase todo mundo acontecia ao menos uma vez. Por que não poderia acontecer com ele? Por que não hoje? Desejou que não fosse hoje.
E não foi. Deparou-se com um homem alto, magro, precocemente calvo, bem vestido, trajando calças de sarja azul marinho, camisa branca bem passada, sapatos de couro marrom e tinha em suas mãos o que parecia ser um blazer, também azul marinho, na mesma tonalidade da calça.

- Muito boa tarde, senhor Marcel. Eu sou o Tomás.
- Sem o senhor, Tomás. Você abre mão do doutor e eu do senhor, OK?
- Por mim está ótimo. Entre, por favor. A poltrona ao fundo é minha, pode escolher qualquer outro lugar para se sentar. Fique à vontade.
- Vou me sentar nesse sofá, parece confortável.

Conversaram mais de meia hora sobre a história de Marcel. Profissão, família, casamento, divórcio, depressão e desespero, tudo isso foi rapidamente abordado antes que chegassem ao ponto principal daquela consulta.

- Não sei se o Doutor Jânio lhe falou, mas tenho alguns métodos peculiares de tratamento, e também de diagnóstico dos casos que cuido.
- Falou sim, mas você pode me contar novamente.
- Como você sabe, sou partidário da teoria de que não há nada como o convívio social para dimensionar os problemas de alguém e participar ativamente de sua terapia, e até da cura. Procuro inserir a pessoa em atividades cotidianas, que envolvam necessariamente gente, evitando que meus pacientes busquem na reclusão e na fuga uma solução rápida e prejudicial para seus problemas. Na minha opinião só deve ser afastado da sociedade os que lhe podem causar danos, e esses são tão raros que conheci pouquíssimos em toda a minha carreira, e mesmo assim em estudos. Portanto, acredito que a melhor maneira de saber o que você realmente tem, e as conseqüências disso para você e para os outros é vivendo com outras pessoas, dividindo espaço com pessoas, com gente.
- Era mais ou menos o que eu já sabia, e acho muito interessante. Considero-me disposto e à disposição para iniciarmos já.
- Ok, levante-se e vamos pôr os pés na rua.
- Vamos lá.

Passaram pela recepção em silêncio, apenas quebrado por três tchau’s, deles e de Dora.

- Vamos sair a pé?
- Não, vamos de carro, no meu.
- E para onde?
- Você verá quando chegarmos lá.

Atravessaram a escuridão da garagem em silêncio. Podiam-se ouvir os passos dos quatro pés ecoando nas paredes do fundo.

- Uau! Esse é o seu carro? Essa deve ser peça de colecionador, não?
- Na verdade, comprei esse carro num ferro velho no interior do estado, preço de banana. Também, ele não devia rodar há mais de dez anos quando eu o trouxe para cá.
- Quanto?
- Quanto eu paguei por ele, ou para consertá-lo?
- Quanto você quer por ele?
- Ele não está a venda.
- Fale logo, Tomás, tudo tem seu preço.
- Eu concordo. Tudo tem seu preço, e esse carro tem o dele, também, mas nem tudo está à venda.
- Quanto vale essa belezinha? Eu pago vinte por cento a mais do que ele vale.
- Nem sei quanto ele vale, tamanho o meu desinteresse em vendê-lo, Marcel.
- Grana. “Cash”, “uma em cima da outra”!
- Não é o dinheiro. Eu amo esse carro. Vamos fazer assim, se um dia eu resolver vendê-lo, você será o primeiro a saber. Tá bom?

Marcel não respondeu com palavras, mas consentiu com a cabeça, o que Tomás considerou uma primeira “bola dentro” em seu dia.

Para desanuviar o ambiente, Tomás ligou o som do carro, onde estava “engatilhado” um CD que acabara de ganhar de um paciente seu, um disco ao vivo de Dave Matthews Band, do qual ouvira algumas músicas pela manhã e adorara.

- Pô, legal essa música, hein?
- É, nunca havia ouvido esse grupo, mas estou gostando também, chama-se Dave Matthews.
- Você me vende esse CD, ao menos?
- Não, não vendo e você deveria saber disso.
- O que lhe custa me vender esse CD? Eu pago mais do que ele vale!
- Não, isso além de não ajudar em seu tratamento vai acabar te quebrando.
- Trinta paus não quebram ninguém. Venda esse CD para mim, vai!
- Não vendo, mas vou te dar um de presente.
- Não quero mais.
- Tudo bem, eu lhe faço um presente, será um prazer.
- Não quero e não preciso de presente. Não quero mais.

Tomás achou que descobrira algo ali. Talvez uma brecha na compulsão do sujeito. Uma fresta por onde ele poderia trabalhar e progredir no tratamento desse paciente.

- Chegamos!
- Brincadeira, né? Jardim Zoológico? O que é isso, regressão?
- Nada, eu pensei em algum lugar que tivesse bastante gente, muito espaço, e fosse absolutamente livre de qualquer stress. Não pude me lembrar de outro. Você quer ir embora.
- Não, você é o doutor, se aqui é bom pra você, eu não sugiro nada.
- Bem, então você pode decidir por onde vamos começar.

Caminharam por quase duas horas pelas alamedas, por entre jaulas e lagos, visitaram cobras, aves, sapos e leões, viram capivaras, tigres, lobos, gorilas e chimpanzés. Tomás adorava o zoológico, já devia ser a décima vez que visitava aquele lugar com um de seus pacientes. Na sua opinião os animais ajudavam os visitantes a relaxarem.
Conversaram bastante durante a visita, falaram sobre as primeiras ocorrências da compulsão de Marcel, sobre a reação de seus familiares, de seus amigos, dos que lhe venderam algo, dos que recusaram-se, dos problemas causados a esses últimos por sua insistência, às vezes até violenta. Enfim, falaram bastante, e isso fez Tomás sentir-se mais próximo de Marcel, sentir que a fresta estava abrindo-se ainda mais. Confiava que pudesse resolver boa parte daquela compulsão. Talvez aquilo ainda lhe rendesse uma teoria, um livro, ou até um prêmio.

O alto falante anunciou que aquela seria a última hora de funcionamento do zoológico, e eles já haviam praticamente terminado a excursão completa pelo lugar. Iniciavam a última alameda quando Marcel deteve-se diante de uma grade de uns dois metros de altura, que tinha atrás de si um grande gramado e duas casinhas feitas de madeira e cobertas com palha ou algum similar.
- Você gosta de tamanduás, Tomás?
- Acho um animal interessante, mas não chamam muito a minha atenção. E você?
- Nunca havia visto um, pessoalmente. Que beleza, não?
- Interessantes, muito interessantes. Acho a gastronomia deles bastante peculiar.
- Demais! Que animais fabulosos. Já ouvi que são muito forte e têm garras afiadíssimas.
- Ouvi algo assim, também.
- Será que há alguém aqui que poderia nos falar a respeito deles, algum guia?
- Há um quiosque de informações logo ali a diante. Podemos parar lá e fazer algumas perguntas. Que tipo de pergunta você tem?
- Várias, gostei muito desse bicho!

Caminharam até o quiosque pintado nas cores de uma girafa, onde estava uma senhora, seus cinqüenta anos, vestida com trajes apropriados para um safari. Tomás estava achando graça no interesse de Marcel por alguns animais, ele já havia perdido mais de dez minutos observando o lobo guará, do outro lado do zoológico.

- Com licença, a senhora pode me tirar algumas dúvidas com relação aos tamanduás?
- Dependendo da pergunta, acredito que sim.
- Quanto vocês querem pelo menorzinho? Acredito que seja um filhote, não?
- Como assim? Não compreendi!
- Marcel, não comece. O bicho não pode sair daqui.
- O papo é com a senhora, Tomás. Quanto eu tenho que pagar para levar esse bicho?
- Os animais do Jardim Zoológico não estão à venda, senhor. Nenhum deles está. Todos pertencem à Fundação.
- Quanto moça? Não me venha com conversa fiada para aumentar meu lance. Eu estou lhe dando a oportunidade de fazer o preço do negócio. Quanto? Em reais.
- Marcel, os animais não podem sair daqui. Além do mais, o que você faria com tamanduá em casa?
- Sucesso, eu faria sucesso. Meus sobrinho iriam delirar ao ver o bicho comer formigas no quintal de casa. Ele está pequeno, poderia ser facilmente domesticado.
- Que loucura é essa, meu senhor?! Eu não tenho tempo nem paciência para esse tipo de brincadeira.
- Tá bom. Eu compro e deixo o bicho aqui, sob a custódia de vocês. Quero apenas uma placa dizendo que ele pertence a mim, que é meu. Apenas exijo visitas periódicas ao bicho, para que ele se acostume ao dono.

Tomás lembrou-se da negociação sobre seu carro e lançou seu trunfo.

- Se um dia eles resolverem vender esse tamanduá, você será o primeiro a saber, certo senhora?
Ao sinal de Tomás, a senhora de safari acenou positivamente com a cabeça, incrédula com a cena que se passava em sua frente.

- Tomás, você deve achar que além de perturbado, eu deva ser estúpido, né? Ou você já viu anúncio nos classificados vendendo tamanduás? Isso me ofende.

Tomás baqueou com a falha de sua estratégia, não havia uma linearidade na reação de Marcel. Ficara perdido.

- Tomás, você não quer me dar um de presente? Esse eu aceitaria. Com certeza eu aceitaria.

O golpe dessa vez fora maior. Tomás estava jogado contra as cordas, quase nocauteado e sem o menor poder de reação.

- Eu quero esse tamanduá, e ele será meu. Ele será meu a qualquer custo.
- Quanto você pode pagar? - Perguntou a senhora, em tom desafiador.
- Como?
- Quanto você tem para pagar?
- Tenho muito dinheiro, isso não será problema.
- Pois o senhor descubra quanto vale um bicho desses e volte com uma proposta concreta. Isso é um zoológico, não um circo. Não vou bancar a palhaça para um garoto mimado que quer tudo o que gosta. Volte aqui com números, pelo menos três cotações. E, passar bem.

A porta do quiosque-girafa bateu com força, e Marcel ficou estático, da mesma maneira ficou Tomás.
- Droga, isso vai me dar um trabalhão. - Concluiu Marcel.

Tomás custou a acreditar na cena que acabara de viver. Uma senhora, fantasiada como se fizesse parte do elenco de Daktari, que tem por escritório um quiosque em forma de tubo pintado de girafa, acabara de driblar seu paciente de uma maneira que ele jamais saberia fazer, eficiente e rápida. Que dia, aquele!

- Vamos embora, Marcel.
- Vamos, vou mergulhar na internet. Isso vai me tomar horas. Que saco, essa velha!

Tomás deixou Marcel no estacionamento em frente ao seu consultório às sete e quinze, e aguardou até que ele entrasse no seu carro, tendo em mãos uma calculadora, adquirida na portaria do estacionamento do zoológico, e um porta-guardanapos adquirido na lanchonete em que fizeram um lanche rápido, no caminho de volta.

Marcel aproximou as janelas dos dois veículos e dirigiu-se a Tomás.

- Vou tentar resolver esse negócio do tamanduá pela manhã, e podemos nos ver pela tarde. Acho que marquei horário com a sua secretária.
- Ah, sim. Vou pensar em algum lugar para irmos.
- Bacana, adorei o programa de hoje. Acho que vamos nos dar muito bem.

Tomás fechou a janela e berrou, desabafando para o painel da pick-up:

- Aaaaaahhhh, eu vou levar esse louco pro shopping center. Assim ele compra o que quiser, e ninguém enche o saco.

Esses desabafos eram o mais próximo da análise que ele se permitia chegar. Achava um saco contar suas coisas para os outros. Além do mais, ele agia na outra ponta, a dos analistas, seu trabalho era o de buscar o equilíbrio alheio.

Chegou em casa e encontrou Mara no sofá, coberta por um cobertor e xícara em mãos.

- Ainda bem que chegou, o desaparecido. Onde você estava? Liguei no consultório a tarde toda, e aquela piranha não sabia dizer seu paradeiro. Eu não gosto daquela sirigaita. Tive um dia de louca, e você nem...
- O que? Dia de louco? Dia de louco? Você sabe do que está falan....
O barulho da porta batida por ele interrompeu sua própria frase.
- Onde você vai? Que que é isso? Tomás, volte aqui!

Já no carro, Tomás sentiu alívio quando achou o endereço do Doutor Jânio em sua agenda.
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