A terra era como as de Garcia Marques, quente, desértica, mas ainda restavam alguma relva, algumas árvores e um raro bloco de mata por onde passava um filete de água. Ele andara com os pés amortecidos, durante quarenta dias sem encontrar um ser humano. Sentia-se satisfeito e exausto. Já não mais se lembrava do que vinha buscando. Avistou um monte maior e seguiu. O sol se punha e formava uma fotografia de silhuetas; a noite chegava em suas costas.
Um pouco abaixo, do outro lado do monte, avistou uma árvore grande, com uma copa imensa que formava um abrigo perfeito para a chuva, se um dia chovesse, e para o frio, se uma noite ele chegasse. Quando foi se aproximando viu três pares de pernas pendendo da copa. Três homens enforcados como companhia. Sentou-se recostado no tronco, olhou-os durante um tempo e logo adormeceu.
No meio da noite foi acordado por movimentos vindos de alguma parte. Olhou tudo em volta e não havia nenhum ser por perto. Lembrou-se dos enforcados. O primeiro se mexia, tentando livrar-se das cordas. Suas mãos estavam amarradas, seu corpo estava inchado, seus olhos meio que saltados para fora. Ele ficou olhando aquele homem desesperado e disse. "Você está morto, meu amigo." O enforcado tinha uma voz gutural, rouca, provavelmente pelo aperto da corda, quase o ruído de um animal. Era difícil entender o que dizia, mas ele se aproximou e pôde ouvir. "Eu sei." Ele não podia ajudá-lo, então perguntou. "O que você faz aí?" "Não sei." "O que você fez para que o condenassem a isso?" "Não sei, não me lembro. Não consigo entender. Sinto dor. Sinto muita dor. Me ajude aqui, por favor." Ele tirou com dificuldade o morto da árvore e o deitou no chão. Ficaram algum tempo quietos até que o enforcado pediu. "Me bote de novo lá, por favor. A dor não passa. Me deixe lá." Ele o pôs de novo, com muito mais dificuldade.
"Ele vai se acostumar." O segundo enforcado vira a cena toda e tinha um leve sorriso nos lábios. Se bem que nem podiam se distinguir muito seus lábios do restante de seu rosto. Estava em pleno estado de putrefação. Os vermes o comiam e deixavam ver partes internas de seu corpo. A pele era cinza, mas ainda tinha um pouco do nariz e esta distinção do sorriso. "A gente sempre se acostuma. Esta é a eternidade do Homem." A voz era nítida e ele podia ouvi-lo perfeitamente, sem esforço. "Estou aqui há mais tempo, como pode ver. O tempo nos faz refletir e entender o real significado de nossa vida. Eu morri pelo amor de uma mulher. Mas isso eu posso ver hoje. Sei porque o único sentimento que me restou foi a tristeza da ausência dela." Calou-se. Ele perguntou ao segundo morto. "E o que você fez para que o condenassem a isso?" "Não precisei fazer nada. Vivi enquanto ela esteve ao meu lado; quando ela se foi, tornei-me um estorvo para mim e para os outros, principalmente para os outros. O fim é o mesmo e não importa. Sei que agora arde esta lembrança de sua boca macia, de seus olhos grandes, de seu corpo... Não suporto não poder mais vê-la nua. O que fiz não faz importância, assim como minha morte não tem importância. Sei que tudo foi por amor a ela." Ele acompanhou o olhar distante do segundo enforcado e viu que não haveria uma resposta esperada.
A manhã se aproximava. Trazia bem à sua frente um vento fresco, suave. Parecia até que podia ouvi-lo. Passava em ondas e com elas vinham palavras, como se estivessem perdidas e vagavam pela madrugada em busca de sentido, encontrando-se, esbarrando-se. E essa brisa que soprava passou a formar frases, que primeiro eram curtas e desconexas, mas que foram se tornando longas e verdadeiras. Ele olhou para o terceiro enforcado. Um esqueleto envolto em uma camada de pó desmanchava-se. Vinham dele aquelas palavras, saía dele a névoa de letras, as frases. Ele foi se acostumando àquilo e logo podia entender o morto. Dizia. "Todos nós morremos pelas nossas paixões. Ele, aquele outro, e você morrerá também. Sua paixão estará em uma mulher, criará deuses para adorar, pode estar em objetos, em toda parte. Em nenhum lugar. O caminho, o que buscamos, aquilo que ansiamos e perdemos vem deste amor exasperado. Mesmo na ignorância reside a paixão pelo instinto, pelos hormônios. Matamos por sermos passionais, nos rebelamos, agredimos e nos rendemos, somos patéticos pela paixão. Hoje eu sou um morto e logo serei inteiro pó, então realmente terei sido." Ele disse baixo para o terceiro enforcado. "Eu não sei o que busco e agora que cheguei aqui, pergunto: o que eu faço?" E o terceiro enforcado respondeu. "Quando o dia nascer, tomando o rumo do sol da manhã pelas costas e seu caminho da tarde no centro de seus olhos, continue andando. Continue andando, meu filho".